Para uma leitura de Edgar Morin

Hugo Neira

Torna-se conveniente reinscrever o texto que passaremos a comentar na totalidade da obra de seu autor. Edgar Morin, há anos, afirmou que o conhecimento “que não conhece seus limites se automutila e, por isto, o que limita nosso conhecimento é o que o possibilita” (El conocimiento del conocimiento, 1988). No texto comentado aqui, é posta em questão uma ideia única do progresso vinda do Norte, isto é, a de uma modernidade sob um só padrão dominante. Mas Morin não vem nos propor uma ideia opositora, não menos única e salvadora, o Sul. Pelo contrário, com um método próprio de “princípio dialógico”, opõe ao conceito dominante uma série de matizes e alterações. A seguir, o comentário.
 
“A ideia do Sul é uma noção falsamente clara.” O primeiro fator que surpreende, nessas primeiras linhas, são as precauções feitas pelo próprio Morin. “A noção de Sul é relativa”. E não quer dizer Sul, simplesmente, um lugar geográfico, “o Magrebe, o Norte da África, ou as Metrópoles do Sul”, e “São Paulo é muito impregnada de Norte”. Além disso, há outra preocupação: evitar substancializar. Se um conceito se substancia, seu conteúdo se propõe como permanente, fixo, durável. Por outro lado, atribuir valor eterno a fatos culturais — raça, classe, nação — provoca algumas reações. De um lado, um uso sectário; do outro, abandonar o terreno das ciências do homem. Não procuramos, de fato, essências, mas situações. O conceito é de Sartre. As ciências humanas, desde o início, nasceram para o pluralismo explicativo. Há uma ética do trabalho intelectual que habita nestes dois esclarecimentos prévios.

Dando continuidade a outra grande ideia do texto, existem “vários suis” . E ainda assim, o olhar do Norte (porque disso se trata, de olhares) tende a encerrá-los numa “concepção única, de atraso, de subdesenvolvimento”. Esses “suis”, observa Morin, são habitados por “qualidades, virtudes, artes de viver”. Convém destacar o uso do plural aqui. Nesse ponto, o autor insiste novamente que, sendo Norte e Sul noções relativas, não se deve nem idealizá-las, nem desvalorizá-las. Novamente, “o princípio dialógico” utilizado por Morin. Nem tudo é errôneo nessa ideia proveniente do Norte, a quem também chamamos de ocidente europeu e, outras vezes, mundo anglosaxão. O autor considera uma lista de instituições e condutas que não podemos desestimar: democracia representativa, direitos humanos, direitos da mulher, autonomias individuais, apesar das “cegueiras e ilusões”.

Este é o momento de enunciar a problemática do texto. O que está em jogo? O que Edgar Morin questiona, afinal? O autor questiona a redução das múltiplas culturas do mundo a apenas uma lei inelutável da história humana, a uma visão proveniente do ocidente europeu, mas que não abrange todo o planeta. Refuta a redução, o que é quase impossível no estado do mundo atual. Soma-se a isso um dos maiores erros em termos de epistemologia, segundo Morin, que é a disjunção. Trataria-se também de salvar o próprio Ocidente de algumas de suas maiores ilusões, suas dicotomias. Separação de natural e cultural, de emoção e paixão, homem e mulher, e a redução do complexo ao extremamente simples, coisa que Morin combate há anos. Para concluir este comentário, me ocuparei do resto da argumentação de Morin, que nos lembra de outras fontes que precederam o atual Ocidente e o nutriram: os  deuses politeístas, o sentido da diversidade, os gregos e os latinos, Paulo de  Tarso dirigindo-se aos judeus, a assembleia de cidadãos diferentes e, ao mesmo tempo, iguais em Atenas, a importância do debate, o Renascimento capaz de problematizar o mundo, a natureza, o homem. Chegando aos tempos modernos, há uma cara do progresso que precisamos abandonar, a do homem (ocidental) senhor e mestre da natureza. Assim, em poucas linhas, Morin, com veste seus sapatos de sete léguas e une o faraó Akenaton à “Terra-pátria” dos atuais ambientalistas.

Para responder sobre as experiências inovadoras que ilustram o pensamento do Sul, destaco que, em minha opinião, Morin parece atuar em três perspectivas. Em primeiro lugar, nos fatos, diante da coincidência de culturas e civilizações diversas, em presença e ao mesmo tempo antagônicas, neste momento mundial. Em segundo lugar, a insuficiência da racionalidade e da lógica convencionais. Em terceiro lugar, perante a ciência e a técnica, sua necessidade, mas também o fato de sua ambivalência. Há uma última aposta que remete aos “poderes que pode ter o improvável”, diante do inesperado no curso da história humana. Por trás desta postura se encontra a noção do caos criador, ao que remete o fundamental de Morin e seu modelo da complexidade.

Morin é sociólogo e ninguém se surpreende que se apoie no concreto e imediato. É evidente que há uma sorte de relógios mundiais e mapas de fusos horários que reúnem os aeroportos do mundo, mas são os mesmos mundos? O mesmo mundo ao sair de Nova York que ou de Abuja, na Nigéria? De Bogotá e de Nairóbi? O que fazer diante da unidade e da diversidade humana? “O tesouro da humanidade”, diz ele, “é diverso”. E evoca o gênio Leibniz, “o uno conserva e salva o múltiplo”. Eu diria, em minha opinião, que o contrário também é possível. Morin se inclina pela mistura, pelo que chamaríamos de cultura da mestiçagem, “que não deve ser confundido com uma cultura mestiça”, adverte o antropólogo Laplantine. Isto é, literaturas, línguas, religiões, música, tudo o que vai além da reprodução, a imitação, a cópia ou o calco, e que ocorre no encontro com o outro, o mestiçado adota, mas para transformar, anexar, modificar. Sua lealdade é a da transgressão, desde o tango à saudade. Culturas híbridas, frutos inesperados da alteralidade. Este mundo sem limites, do fora que se transforma no que está dentro, é um mundo da vida e, portanto, de suas impurezas, e vai desde o “caboclo” brasileiro, ao “achorado” peruano, povoando o mundo de Megalópoles tão imensas quanto as ocidentais, mas pobres, periferias de periferias. Mas lugares de novos sentidos. As ideias de Morin chamam a uma outra sociologia e antropologia, a outra filosofia e história do mundo.

Enfim, a questão prioritária é dupla. Por um lado, atender o mundo multipolar no qual vivemos, de economias emergentes. Índia, China, Brasil, e as duas primeiras, não são muito o Sul, mas também não são o Norte. Então, Norte e Sul têm um valor combinatório na interação de economias e civilizações em curso. Por outro lado, há um valor epistemológico no texto de Morin (e, pessoalmente, foi de grande utilidade para mim em meus livros, desde o ano de 1996). Desta forma, o tema do Sul conduz a uma questão teórica e prioritária. Edgar Morin advogou por uma transversalidade de conhecimentos (ver Relier les connaissances, Paris: Seuil, 1999). Há 40 anos Morin lidera uma grande mudança de rumo e, atualmente, outros autores também buscam outro paradigma científico, desde o que se chamou “a galáxia de Stanford”. A ideia da auto-organização pode ser encontrada em vários domínios do conhecimento e em vários pensadores, como o biólogo Henri Atlan, o matemático René Thom e sua tipologia, Ilya Prigogine, René Girard. As teorias do caos auto-organizador são aplicadas ao sistema solar, à atmosfera terrestre, às flutuações das bolsas de valores. Para Morin, os eventos não ocorrem na ordem progressiva que se pensa. Seu esquema dinâmico de um anel recursivo-rotativo une a base e o topo, tomado da cibernética dos anos 1960, a ideia do feedback. E da biologia, a capacidade de autorregenerar-se da vida. Os anéis causais existem, mas não são simples, são complexos. Podem ser compreendidos se mudamos nossos hábitos de pensar. Em suma, o texto propõe uma divisão de naipes em ideias do Norte e contribuições do Sul, e nas mesmas relações internacionais.

Hugo Neira Sociólogo, historiador, politicólogo. Peruano e cidadão francês. Estuda História na Universidade Nacional Mayor de San Marcos, em Lima, Peru. Está se formando no Instituto de Ciências Políticas, Paris (Sciences Po), onde será pesquisador. Tese de doutorado pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). Fará parte do Ensino Superior da França por meio de concurso público. Será professor até aposentar-se no Taiti, Polinésia Francesa. Morou algumas temporadas entre a Europa e seu país de origem. Diretor de Difusão no governo revolucionário do general Velasco Alvarado (1970-1976). Diretor do Instituto de Governo (2005-2006) da Universidade San Martín de Porres, Lima. Diretor da Biblioteca Nacional do Peru (2006-2009). Como escritor, recebeu diversos reconhecimentos. Prêmio de Incentivo à Cultura, Peru, 1965, por Cuzco, terra e morte. Prêmio Casa das Américas, Cuba, em 1975, por Huillca, habla um campesino peruano. No concurso internacional de ensaio na cidade de Weimar, na Alemanha (2000), foi finalista considerado um dos “seis melhores ensaístas de língua espanhola em vida”. Condecorado pelo governo francês em 2010 como Chevalier de l’Ordre des Arts et Lettres.



fonte: ANAIS ENCONTRO INTERNACIONAL PARA UM PENSAMENTO DO SUL, SESC, Rio de Janeiro, agosto 2011