Diários de um caminhante

Edgar Morin

Apresentação de Danilo Santos de Miranda
Boa noite a todos e a todas dessa grande audiência, bem-vindos a esse nosso encontro com Edgar Morin. 
É um prazer muito grande estar aqui nesse momento, nesse dia tão caloroso, aqui em São Paulo. Tenho muito prazer e muita alegria de poder dar início ao nosso encontro. 
Em primeiro lugar, diria para apresentar nosso querido Edgar Morin, que esta é uma coisa muito complexa. É realmente algo muito especial. Não sei se começo falando do amigo, do intelectual, do grande filósofo, do animador cultural mundial, da pessoa que está lançando, hoje, aqui conosco, três publicações. Temos, portanto, uma quantidade imensa de aspectos bastante complexos, todos os temas para poder apresentar para vocês todos e para aqueles que não conhecem Edgar Morin.
Nós do Sesc temos um prazer enorme de tê-lo, já há muitos anos, como nosso amigo orientador, conselheiro, pessoa que tem trabalhado conosco  sobre vários temas, que tem participado inclusive em um trabalho, digamos, de preparação de nossas equipes, discutindo temas, discutindo questões, debatendo conosco a atualização da questão cultural no mundo e no Brasil, da relação do norte e sul entre países mais avançados e países periféricos; como lidar com as questões destes encontros todos e essas diferenças no mundo cada vez mais conturbado e cheio de questões graves.
Então, ele tem sido para nós um baluarte, um farol, um orientador muito importante em nossas reflexões. Tem sido também um grande pensador de todas as questões que hoje interessam ao mundo inteiro: a ciência, a tecnologia, a cultura, a política, as finanças, as relações entre norte e sul no mundo, as relações entre o sul e o sul. Todas essas questões estão presentes no pensamento do Edgar Morin, do sociólogo, do filósofo, antropólogo, alguém que está a tanto tempo refletindo sobre essas questões, de uma maneira tão profunda e tão séria. Assim, a questão da complexidade se torna algo absolutamente fundamental e relevante. Temos, portanto, muitas maneiras de abordar e, simplesmente, vou dar alguns toques muito rápidos para que vocês possam ouvi-lo logo, que é o que interessa nesse momento.
Em primeiro lugar, diria que esta apresentação estará disponível em nosso Portal, onde temos um espaço especial reservado, em um sítio eletrônico para o pensamento e a proposta do Edgar Morin [www.edgarmorin.org.br]. Essas discussões estão lá e vocês terão acesso a todas essas informações, que não mencionaremos aqui, nem mesmo aspectos de sua biografia, para que a gente possa imediatamente chegar à sua fala. Em segundo lugar, gostaria de avisar que este nosso encontro está sendo transmitido na web, pelo Portal Sesc SP, e ficará posteriormente à disposição para aquele que desejar acessar. Estes são os dois elementos muito importantes para entender este momento. 
Finalmente, vou falar dos livros que estão aí à disposição de todos. Tenho o prazer enorme de dizer que nós do Sesc, a partir de todo um estímulo de tantos anos, estamos também não apenas preparando, discutindo, debatendo questões, apresentando propostas, como estamos também, através das Edições Sesc SP, editando esta publicação, estes três diários. 
O primeiro, Diário da Califórnia, relata o ano de 1994, quando Edgar foi convidado, para participar de um grupo de cientistas para refletir sobre questões relativas à ciência, ao conhecimento, à cultura, no Instituto Salk[2], na Califórnia. É, portanto, um relato da sua vivência, dos seus encontros com o pensamento americano, com as características de um país como os Estados Unidos, a sua trajetória pessoal, de como ele, com certo estranhamento no início, aproxima-se da visão americana e da perspectiva da ciência dos Estados Unidos e, com isso, procura entender melhor a realidade daquele país. 
O segundo é O ano Sísifo, que aborda suas experiências no período de 1994-95, enfrentando dificuldades, refletindo sobre a realidade do mundo àquela altura. Trata-se de um relato daquela experiência e daquele momento especial. Vale a pena, portanto, conhecer esse momento e sua reflexão sobre toda a realidade do mundo, Europa, África, América, Ásia e o que estava acontecendo em todos os países, naquele momento. 
E, finalmente, o terceiro livro, Chorar, amar, rir, compreender, que também reflete, sobretudo, o ano de 1995, ano em que essas reflexões são levadas em conta, continuando este processo de compreender, refletir, tentar explicar e aprofundar este conhecimento. E é um grande prazer poder escutá-lo. 
Não teremos condições de fazer uma sessão de autógrafos, eu lamento, mas não há possibilidade, dado a seus compromissos posteriores. O Edgar está indo amanhã cedo a Natal, no Rio Grande do Norte, para uma série de conferências e, em seguida, tem compromissos no Marrocos, no México, enfim, está vindo de Berlim... Trata-se de um homem do mundo, um homem com muita atuação, que depende, naturalmente, de cuidados especiais que teremos que ter. Nesse sentido, não temos a possibilidade de prolongar a nossa conversa e termos aqui uma noite de autógrafos, que seria muito desejada por ele também, mas não é possível. E agora, vamos ouvir Edgar Morin e o que ele vai nos falar a respeito desta experiência extraordinária e dessas três publicações que estão aqui à disposição de todos.
Edgar Morin, é com você. Obrigado.
 
Edgar Morin
Querido amigo Danilo, queridos amigos, pessoas aqui presentes, amigos, amigas, conhecidos e desconhecidos, que me ajudam tanto. 
Vou falar em francês. 
Por que os diários? Por que escrever diários? Por quê? No que me diz respeito, acho que quando eu era adolescente, a partir de doze, treze anos, era filho único, minha mãe morreu quando tinha dez anos, claro que eu tinha muitos colegas de escola, mas sentia uma grande solidão interior e não falava dos meus problemas com os meus amigos, dos meus problemas mais profundos, os mais vitais. Então, fiz um diário.  Eram notas, escrevia ali naqueles blocos e aquele bloco se tornou um confidente, meu confidente. Era a ele que eu confiava minhas preocupações, meus sofrimentos, meus pensamentos, minhas reflexões. E esse diário, esse confidente era um tipo de amigo íntimo. Vocês sabem que depois, quando escrevi a máquina de escrever e depois de muitos anos, no computador, era evidente que não havia mais a presença física do bloco que eu levava no bolso, mas passou a ser de outra forma. 
Os diários, eu os mantive na adolescência, na juventude, até os vinte anos quando, sob a ocupação nazista na França, tomei a decisão de entrar para a resistência francesa, ou seja, correr riscos, ter uma vida extremamente ativa e abandonei o diário durante muitos anos. Mas retomei o diário, aliás, retomei uma primeira vez depois de uma hospitalização em Nova York, quando fiquei um mês em coma e disse para mim mesmo: depois de uma vida assim dispersa, o que eu devo fazer? O que é essencial para mim? O que é secundário? O que é importante? O que devo abandonar? Em que acredito? Eram questões que sempre me colocava, então, disse, ‘bom, vou escrever um pouco para meditar’. Depois, voltei para a França, fiz minha convalescença na Côte D’azur, diante do mar Mediterrâneo e comecei a escrever essas reflexões.  E quando saí pela primeira vez - pois eu ainda estava de cama e cadeira de rodas - , quando ali dei meu primeiro passeio a pé, ou seja, deixei aquela vida vegetativa para entrar numa vida animal: andar ao sol, ver as plantas, as flores, as pessoas. Vendo aquilo tudo, aquilo me fascinou e comecei a anotar tudo. E continuando as minhas reflexões, recomecei a minha vida. Encontrava as pessoas, ia ao cinema, preparava as minhas refeições e daí fiz um tipo de diário que alternava essas meditações e a minha vida cotidiana, que publiquei dez anos mais tarde. Claro, tive algumas interrupções.
Mas, no fundo, um diário, o que ele é fundamentalmente? Um diário, que a gente escreve a cada dia da nossa vida é, primeiro, uma luta contra o tempo, para fazer com que os dias que passam não se dissolvam inteiramente e que fiquem deles alguns vestígios, a partir dos quais eu poderia, mais tarde, ressuscitar pelo menos através da memória e do espírito. Um diário significa querer correr atrás da vida que está passando, recolher migalhas dela, às vezes, na sua passagem. Vocês sabem, é verdade que quando eu releio dez, vinte, quarenta, cinquenta anos depois essas notas do diário, eu sempre tenho um grande prazer de encontrar aquelas pessoas que estão ali, acontecimentos que de outra forma eu teria esquecido completamente. 
Um diário é também o que podemos chamar de um caldo de cultura, ou seja, ali existem reflexões, anotações, ideias, pensamentos, tudo isso fervilhando. Aquilo, de alguma forma, poderá ser o germe de algo que virá mais tarde. De qualquer maneira, para mim são interessantes sempre, porque aquilo me traz uma ideia que vem como uma andorinha e se eu não anotar, a andorinha voa de novo e eu não sei mais o que era aquilo. Então, vejam qual é o encantamento que esses diários têm para mim. 
Depois desse primeiro, que escrevi em 1962, passaram-se alguns anos, mas quando fui convidado a visitar o Instituto Salk, em San Diego, na Califórnia, e ficar lá um ano, eu disse: vão me acontecer coisas interessantes, é preciso que mantenha um diário. A primeira coisa interessante e desoladora que me aconteceu foi que no aeroporto, enquanto estávamos eu e minha mulher dentro do taxi, foi feita a chamada para o voo e, quando chegamos à sala de embarque, nos disseram, a nós e a mais quatro passageiros, que o avião estava lotado. A companhia aérea tinha feito um overbooking e havia mais pessoas do que lugares no avião. Não parti imediatamente e fiquei com outras pessoas que tinham sido rejeitadas pelo avião. Tivemos de ir para um hotel, pegar um avião para Chicago e em Chicago pegar outro avião. Mas isso não era o interessante, o interessante é que ali eu vivi uma bela dupla experiência. Daí, o Diário da Califórnia. 
Qual foi essa dupla experiência? Uma experiência existencial: era uma época em que havia o que nós chamávamos de movimento hippie, a contracultura e havia uma inspiração e alegria de viver naquela juventude californiana que era traduzida pelo nome de Peace and Love, paz e amor. Havia aquela vontade de vida comunitária, livre de qualquer limitação, de qualquer peso, uma vida mais simples nas suas relações, nas suas paixões, nas suas amizades. Naquela época, havia essa onda e havia também manifestações gigantescas, às vezes eram cem mil jovens que se reuniam num parque com uma banda de rock que, claro, chegava sempre atrasada ou num estado alterado, digamos, e com um som, uma sonorização muito potente e, naquele momento, éramos levados pela música e pelos êxtases coletivos. Eles viviam assim, havia muitas outras coisas, não vou contar para vocês o livro todo agora, mas havia algo ali, um momento maravilhoso -, que não durou muito, mas que foi um daqueles grandes momentos em que a gente se confraterniza, em que a gente olha o outro e todos se compreendem mutuamente. Além disso, é preciso dizer que, com os amigos que conheci naquele instituto de pesquisa de biologia, os biólogos todos, nós passávamos o tempo juntos e quando voltava para casa, mergulhava na onda, ia ver aquelas ondas enormes do Pacífico e ia nadar e, à noite, podíamos ir jantar, dançar, fumar. Foi um momento muito especial, que durou alguns meses e, evidentemente, também tomei nota de tudo aquilo.
Também fiz descobertas no plano das ideias que eram muito importantes para mim, porque posso dizer resumindo, que até então o que eu fazia era tentar tratar as coisas complexas e aí está a complexidade das coisas. Mas eu não tinha a palavra. Nessa ocasião, me veio a palavra por meio de alguns pensadores, que eram muito marginais, pouco conhecidos, como Gregory Bateson, Heinz Von Foerster, todos que me influenciaram. De certa maneira, nasci de novo intelectualmente e, quando voltei para a França, começou para mim um novo período do meu trabalho intelectual. Foi muito interessante anotar, dia a dia, cada um dos acontecimentos. 
Também mantive um diário de pesquisa numa comunidade na Bretanha, que não foi publicado. Foi muito interessante utilizar o diário como instrumento de trabalho. Quando escrevi um livro, Para sair do século XX, fiz um diário do livro.  Quando fui convidado a visitar a China, em 1991, fiz um diário. Meus diários estão sempre ligados a experiências e a descobertas de outros mundos, sobretudo porque essa viagem à China foi ainda mais interessante, porque Deng Xiaoping acabara de abrir um novo período, uma mudança extraordinária, uma mudança total que desembocou na China de hoje.
 Em 1993, acho, meu editor das Éditions du Seuil pediu que eu fizesse um diário do ano de 1994, pois ele havia pedido a diferentes autores que escrevessem cada um sobre um ano diferente. Isso me estimulou porque quando escrevia um diário, gostava de fazê-lo e o meu diário é de um tipo muito particular, pois não escolho apenas os acontecimentos belos que sucedem, os belos filmes que vejo. Anoto também os pequenos acontecimentos da vida cotidiana, banalidades, minhas refeições, pois gosto muito de comer. Quando fico muito contente com uma refeição, me expresso e quando não fico contente, também me expresso. Então, é toda uma camada da vida que está presente no diário e pude me dar conta daquilo que faz parte da vida cotidiana muito mais conscientemente que antes. A vida cotidiana é feita de uma série de descontinuidades, passamos de uma pequena coisa, um café da manhã, por exemplo, para um telefonema que vem do Brasil. A gente escreve alguma coisa, depois tem um encontro. A vida é isso. Depois escrevo, anoto e me dei conta que nessa descontinuidade, as pequenas coisas muito próximas nos provocam grandes emoções e, muitas vezes, grandes coisas que estão longe, que deveriam provocar emoções mais fortes, provocam emoções mais atenuadas. Para dar um exemplo a vocês: gosto muito de ovos quentes e gosto muito porque quando a gente quebra a casca, pode mergulhar o pão com manteiga em algo que ainda está viscoso, que é um ovo que não é muito cozido, é um pouco líquido e um pouco sólido. Ele precisa ficar cozinhando por três minutos e meio exatamente e fico furioso quando alguém cozinha esse ovo por quatro minutos! É uma bobagem, mas às vezes anoto esse tipo de coisa, porque essa é uma das minhas verdades, é uma das verdades do que sou. Ao mesmo tempo, é uma lição de sabedoria, porque digo a mim mesmo, ‘é ridículo, não posso me emocionar tanto por uma coisa tão pequena, tão secundária, preciso guardar minhas grandes emoções para as coisas mais importantes, não apenas da minha vida, mas dos acontecimentos do mundo’. E tudo isso me fez refletir sobre os acontecimentos. 
Esse diário de 1994-95, cujos dois volumes estão sendo lançados aqui no Brasil, são realmente pedaços de uma vida, pedaços da minha vida, plenos de descontinuidade e, também, preenchidos com viagens, com um retorno à Califórnia, com uma viagem ao Japão, sem falar do Brasil e de outros países europeus, mas ao mesmo tempo, foi um período em que houve dois acontecimentos trágicos, a guerra da Iugoslávia que continuava, começou em 1990 e terminou em 1995. E houve também a tragédia de Ruanda, um verdadeiro genocídio que ocorreu naquele país. 
Acreditávamos e muitos acreditavam que, com a queda do império soviético, entraríamos numa era de harmonia, de paz e nos demos conta de que começavas uma nova era de barbárie. Para mim, eu posso dizer que a guerra da Iugoslávia foi uma tragédia pessoal, porque a Iugoslávia era um microcosmo da Europa. A Iugoslávia tinha ao leste os sérvios, que eram ortodoxos, onde havia a cultura grega bizantina; no oeste havia os croatas católicos, que haviam sofrido a influência da Áustria e da Romênia; no norte havia a Eslovênia, que também era diferente e na Bósnia havia muçulmanos que eram eslavos convertidos e que constituíam uma importante população do país. A Iugoslávia era, então, uma espécie de pequena união europeia. Lá, já havia muitos casamentos mistos entre essas populações e esse país explodiu sob o impulso dos nacionalismos regionais, primeiro os sérvios e depois os croatas. E houve a tragédia sofrida na Bósnia, no cerco de Sarajevo. Eu estive lá, mas isso não aparece nesse, mas em outro livro. E quando a Iugoslávia se desmembrou, pensei que isso significava a morte da Europa, não a Europa econômica, que continuava, mas o sonho de uma Europa unida, de uma Europa capaz de unir a diversidade de seus povos e culturas. Essa Europa não existiria mais e, hoje, estamos numa crise da Europa, que não representa apenas a ausência de instituições comuns, mas essa ausência de instituições comuns afeta a economia, o euro. E essa guerra da Iugoslávia foi, de certa maneira, premonitória. 
Há um problema muito importante que se colocava quando escrevia esses diários. O primeiro diário que foi chamado Le vif du sujet, quando o escrevi, escrevi para mim mesmo, só depois foi decidido publicar. Mas, esses diários, o Diário da China, o Ano Sísifo e Chorar, amar, rir, compreender, sabia que eles seriam publicados. Havia, então, a questão: em que medida devo colocar a minha vida particular nesses diários, será que posso falar das pessoas abertamente, não posso falar de coisas nefastas, nocivas para elas, devo tomar cuidado. Tenho uma parte da minha vida que permanecerá subterrânea, talvez alguns se decepcionem com isso, mas nada se passa abaixo da minha cintura nos meus diários. Então há uma vida mais ou menos clandestina, cada um tem sua parte de sombra, sua parte subterrânea e isso é o que não aparece nos diários. Mas é claro, há muitas outras coisas particulares e há o fato de que muitos aspectos da minha vida particular se tornam transparentes. Então, surge um problema, uma questão, mas assumi plenamente essa questão, uma vez que de certa maneira sou discípulo de Jean Jacques Rousseau, que escreveu As Confissões e que tenta se mostrar como ele é. Aliás, o que é muito bonito em Rousseau é que ele estava persuadido de que falava toda a verdade sobre si mesmo, era muito sincero. Mas a sinceridade não basta para que digamos a verdade, porque nós mesmos mentimos para nós mesmos, nós nos enganamos. E é isso o que os anglo-saxões chamam de self-deception. Então, por mais sincero que eu seja, pode ser que ainda eu esteja fazendo um teatro, enganando a mim mesmo. Eu sei disso. 
Sei que muitas pessoas escrevem suas memórias e também publicam seus diários. Muitas pessoas fazem isso para enaltecer sua própria e preciso me ‘desestatuificar’, preciso ‘destransformar’ essa estátua. De certa maneira, preciso mostrar que sou um ser comum, normal. É claro que, em toda parte, recebo honras, sou aplaudido e, de certa maneira, isso me estatuifica, me transforma em estátua, mas por outro lado, em minha vida, em Paris, pego ônibus, pego metrô, vou à feira, gosto de fazer a minha própria feira, gosto de falar com os feirantes, há uma série de bobagens que faço, que digo, no meu dia a dia. É difícil, então, alcançar essa transparência. É preciso ficar atento. 
No fundo, a imagem é o problema, é o problema da imagem de si. Cada um tem a tendência de querer mostrar uma bela imagem de si. Queremos nos mostrar belos como a lua, a lua mostra sua parte luminosa para o mundo, mas existe uma parte obscura. Quando vivemos uma história de amor, cada um dos apaixonados mostra sua parte luminosa, sua dimensão luminosa e às vezes, depois de algumas semanas, de alguns meses, começamos a descobrir a parte obscura um do outro e ficamos estupefatos, isso às vezes leva a separações. Esse é o problema, essa imagem de si. E acho que ao assumir o que existe de banal na minha vida, o que há de trivial, o que existe de insignificante, por exemplo, um ovo quente ao qual eu dou tanta importância, tudo isso faz parte da minha iniciativa de ‘destransformar’ a minha estátua. 
Entendido isso, minha vida então é uma vida, uma vida individual. O que isso significa? Significa que há duas coisas mescladas, existe minha própria singularidade de indivíduo que se manifesta e, ao mesmo tempo, existe o que tenho em comum com todos os outros seres humanos, a curiosidade, a capacidade de amar, a revolta etc. Eu sou um microcosmo do ser humano. Montaigne dizia, ‘cada um traz em si a condição humana’. Eu trago em mim a condição humana não apenas pela minha singularidade individual, mas também pelo fato de ter sido educado numa dada cultura, na França, minha cultura é francesa, estou num tempo dado, no fim do século XX, e todas essas coisas singulares que me constituem. Isso não impede que problemas universais se manifestem, se coloquem, se apresentem.
Há também outra coisa que se expressa, algo que também tento compreender quando fiz a minha concepção do sujeito humano. O sujeito é aquele que diz ‘eu’ e quando eu digo ‘eu’, me coloco no centro de meu mundo, dizer ‘eu’ é o ato de egocentrismo no sentido literal: o ego se coloca no centro de seu mundo. É evidente e que ninguém escapa, de certa maneira, de um egocentrismo vital de se nutrir, se defender, se proteger, cuidar de si, da própria saúde. Se estivéssemos limitados a isso seríamos monstros egoístas, mas há um segundo princípio. Não existe apenas o princípio do ‘eu’, existe um segundo princípio, o princípio do ‘nós’. E esse segundo princípio aparece no recém-nascido. Os estudos atuais sobre a etologia infantil, sobre o comportamento do recém-nascido, mostram que ele é muito mais esperto, muito mais inteligente do que imaginamos. O recém-nascido precisa do sorriso, precisa do carinho, precisa da carícia, precisa do amor do outro. E, assim, o ‘nós’ se desenvolve na família, o ‘nós’ se desenvolve na pátria, o ‘nós’ se desenvolve eventualmente no partido político, numa comunidade de amigos. E o ‘nós’, se tivermos uma consciência humanista verdadeira, são os seres humanos que atualmente vivem neste planeta na era da globalização. Essa dualidade, portanto, é que é revelada pelo diário. Eu fiquei ainda mais consciente dela pelo fato de em um livro anterior ter tentado definir essa noção de sujeito que é considerada de maneira superficial, a meu ver, até hoje. 
O que eu pratiquei? É aqui que podemos ver a relação entre esses diários e, no fundo, o conjunto do meu pensamento e da minha obra. Eu sou animado por uma ética da auto-observação e acredito que essa prática é necessária em função daquilo que acabei de dizer. Cada um acredita conhecer a si mesmo, mas na verdade se conhece muito mal. Por quê? Porque mascaramos nossas carências, nossos defeitos e ressaltamos aquilo que nós acreditamos ser as nossas qualidades, ou um teatro das nossas qualidades. No fundo, cada um se conhece muito mal. O que é uma pena é que na nossa cultura, na nossa sociedade, não se ensina as crianças a tentarem se observar, por exemplo, por meio de um diário. Se eu fizesse uma reforma no ensino, diria aos professores que pedissem aos alunos, assim que eles começassem a escrever, que eles mantivessem um diário e todas as semanas eles trocassem os diários entre si para entender como cada um viveu os mesmos acontecimentos. Porque isso é que é interessante também, o mesmo acontecimento, um acidente de carro, por exemplo, é visto de uma maneira diferente por aqueles que estavam dentro do carro, pelos observadores. Nós sabemos que existe esse problema da percepção, por isso é muito importante se auto-observar para se tornar capaz de observar os outros. E se começamos a compreender que cada um de nós tem suas carências, suas misérias, suas fraquezas, se sentirmos isso em nós, seremos muito mais compreensivos para com as fraquezas, os erros, as misérias do outro.
Existe toda uma ética implícita em um diário e explicita, no meu livro sobre a Ética, que é o último livro de O método. Eu diria também que isso faz parte da ética do conhecimento, um princípio fundamental que pude afirmar e desenvolver nos volumes de O método. O conhecimento de um objeto é insuficiente. É preciso que o sujeito, que conhece, tente observar a si mesmo no ato de observar, que ele tente conhecer a si mesmo no ato de conhecer, porque um conhecimento nunca é uma fotografia da realidade. Até mesmo uma percepção visual é uma transformação, é uma tradução de toda uma série de estímulos ópticos que chegam a nossa retina e que são traduzidos em código binário, transportados pelo nervo ótico até o cérebro que faz uma reconstrução. Em outras palavras, se eu vejo as pessoas nesta sala o meu olho vê as pessoas da primeira fila muito maiores do que aquelas que estão no fundo da sala, que estão bem menores, quanto mais longe menor ao olho. Mas aí é que, automaticamente, minha mente reestabelece a constância perceptiva e sei que os que estão lá no fundo não são anões e os que estão aqui na frente não são gigantes. Se soubermos isso, que todo conhecimento é uma tradução, uma reconstrução vinda através da percepção, isso é válido para as teorias, então é preciso conhecer um pouco como fazem os tradutores, os reconstrutores, o que já havia feito por seu lado o filosofo Kant. Então é preciso certo número de pessoas que trabalham com o cérebro, como Antônio Damásio, para citar pessoas recentes. Então isso está no nosso sistema profundo. Não há conhecimento sem autoconhecimento. É um ciclo permanente entre a coisa que estamos observando e o sujeito que quer conhecer. Sempre o sujeito autocrítico.
Digo que esses diários, e vou dizer isso de outra forma, tentam integrar a experiência com a consciência, com a inteligência. É evidente que os diários da Califórnia contribuíram para fazer com que integrasse tudo o que aprendi como sujeito vivido e aquilo tudo faz parte agora da minha vida. Mas devo dizer também que a guerra da Iugoslávia foi uma experiência muito profunda para mim, que acreditava que a Europa poderia ter criado uma federação que teria sido um modelo para a América Latina, para a África do Norte, para tantos países que têm necessidade de se unir. Se vocês concordam, acredito que isso faz parte, todos esses diários estão profundamente integrados. 
Acho que foi Nietzsche que dizia que não fazia diferença entre sua vida e sua obra. Quando vocês têm também muitos acadêmicos, muitos escritores que de um lado escrevem coisas muito belas e de outro lado tem uma vida que não corresponde absolutamente em nada às suas ideias e princípios. No que me diz respeito, a minha vida sempre fecundou meu pensamento e meus pensamentos sempre tentaram fecundar a minha vida. E isso desde muito jovem, porque quando era jovem, quando passei pela resistência francesa, o ciclo em que fui comunista, tudo aquilo foram experiências muito profundas e das quais tentei tirar uma lição que está num livro chamado Autocrítica, que é cheio de observações. Tento entender como me converti ao comunismo durante a guerra e como me desconverti depois. De fato, nestes diários sou fiel à minha obra. 
O livro Amar, chorar, rir, compreender é um pouco para marcar a insuficiência de um princípio formulado por um dos grandes pensadores, para mim ao menos, que é Espinosa, pelo qual tenho não só uma admiração enorme, mas também considero um pensamento fundamental para mim. Espinosa disse ‘não chorar, não rir, mas compreender’ e digo que a emoção, o sofrimento, o amor, podem ajudar a compreender, nem sempre necessariamente, porque o amor pode ser cego. Isso quer dizer que o amor pode ser ajudado pela racionalidade. Um dos meus emblemas é ‘não há razão sem paixão nem paixão sem razão’, É como o sofrimento.  O sofrimento pelo qual passamos pode nos ajudar a entender o sofrimento dos outros, aquele que é humilhado ou perseguido vai compreender o outro que é humilhado e perseguido, mas, às vezes, não basta que o sofrimento seja vivido para entender o sofrimento dos outros. Foi Victor Hugo que disse ‘o oprimido de ontem é o opressor de amanhã’ e, às vezes, um dominado se transforma num dominador, num carrasco, vejam o Oriente Médio por exemplo. Esse é o problema da compreensão que deve mobilizar os sentimentos, a paixão. Não há uma razão fria, uma sabedoria fria. É preciso estar na vida, arriscarmo-nos na vida. Essa é a primeira lição para compreender.
A segunda lição é um livro que se chama O ano Sísifo. Ele se chama assim porque tenho a impressão de que quando ele estava terminado, era preciso recomeçá-lo. O problema da Iugoslávia não tinha sido resolvido, nem o de Ruanda.  Nada havia avançado. Foi um ano cheio de acontecimentos, mas não se via nenhum progresso, mas até regressão. Desse lado Sísifo, mas não só por esse ano, havia um problema mais geral e acho que tudo deve sempre recomeçar, no sentido que nada é irreversível. É como uma democracia, ela não é irreversível, ela pode se esclerosar, ela pode secar, se degradar, é preciso que ela seja revitalizada e meu o princípio é ‘o que não se regenera, degenera’. É o princípio da regeneração permanente.  É como Sísifo, ele sobe a montanha com seu rochedo e lá no alto a pedra cai e ele tem de recomeçar. Ele faz um trabalho necessário, não há vida sem esse recomeço permanente. E depois há essa ideia permanente de afrontar a complexidade.
E, finalmente, no meu livro Chorar, amar, rir, compreender tratei da complexidade e de um grande homem de Estado que foi o presidente François Mitterrand. Porque ele morre ali, mas é preciso dizer também que no diário anterior. Antes de falar disso, é preciso dizer que conheci François Mitterrand muito de perto, na resistência. Ele havia me impressionado muito por sua coragem. Ele tinha um lado corajoso e aqueles que estavam com ele foram mais do que seus discípulos, ficaram realmente ligados a ele. Ele era alguém muito corajoso, mas havia também um lado ambicioso nele. Eu conheci o lado bom. Depois, ele se tornou um político, um homem de Estado, presidente. E havia um jornalista que quis fazer um livro sobre ele, sobre sua juventude, sobre sua juventude francesa, porque antes de pertencer à resistência o Mitterrand esteve em Vichy, como muitas outras pessoas que, antes de se tornarem resistentes, foram para Vichy, que havia sido invadida por alemães. Havia outros generais como de Lattre de Tassigny e outros que estavam do outro lado. Pois bem, esse escritor veio me ver, porque eu sabia de algumas coisas. E quando ele fez o livro, houve naquele momento muitas pessoas no partido de Mitterrand que diziam: como é possível? Nós todos sabíamos daquelas coisas, mas as novas gerações vivem às vezes em uma ignorância cultural e não falo só dos jovens, mas de pessoas que hoje têm quarenta e cinco, cinquenta anos e que ignoram um passado fundamental. Eu defendi a honra de Mitterrand. Na época, ele foi muito atacado, ele mesmo se defendia, mas tive a oportunidade de, mesmo depois de sua morte, pensar na complexidade daquele homem. Por um lado, era um padrinho, como o filme, O Poderoso Chefão, tinha seu chicote, era fiel em suas amizades, mas fiel em seus ódios também. Ele podia ser capaz de tudo, do melhor e do pior. Eu conheci esse homem. Então, tento nas últimas páginas do diário mostrar essa sua complexidade. O que alguns viam naquele bom Mitterrand, e outros no mau Mitterrand e tentar entender.
Se vocês acompanharem, a complexidade está sempre presente nestes diários e, vocês sabem, o grande problema da vida é reconhecer a complexidade, a complexidade da vida, a complexidade humana. 
Finalmente, acredito que, a leitura desses diários me permitiu tentar me reconhecer e reconhecer o que é importante e o que é secundário. O que já estava no primeiro diário, às vezes eu me deixava levar, dispersava-me. Depois, havia períodos de concentração, agora estou em um período de dispersão. Mas me permitiu reconhecer o que era importante e o que era secundário. Isso quer dizer, será que isso é necessário também na idade em que estou? Acredito que o amor e a amizade são as coisas mais importantes. Hoje mesmo, recebi pela Internet um comunicado de um amigo, o desenhista Siné. Não sei se vocês o conhecem. Siné é um desenhista panfletário, um caricaturista, um anarquista. Ele fez um comunicado, porque neste momento ele está sofrendo de uma leucemia aguda, muito grave que, infelizmente, talvez o leve daqui. Então, ele lançou esse comunicado: “a morte me chamou e disse: ‘vem, meu querido’. E eu respondi ‘morra você’”. Nesse comunicado, que é algo incrível, ele disse isso: “agora, no estado em que eu estou, sou obrigado a liquidar, a me livrar de todas as coisas secundárias, de tudo o que não é importante e ficar só com as coisas importantes e as importantes são essas – o amor, a amizade, os companheiros”. Aí está, essa é a lição final.
 
Encerramento de Danilo Santos de Miranda
 
Grande Edgar, muito obrigado pelo seu testemunho, pela generosidade de compartilhar conosco as suas ideias, os seus sentimentos, a sua percepção. É absolutamente extraordinária, para todos nós, a sua presença e a satisfação de dividir suas revelações conosco. Muito obrigado. Eu diria que todos nós estamos profundamente tocados, emocionados e agradecidos por essa oportunidade. Você pode contar realmente com todo público aqui presente e outros que estão nos vendo aí pelo mundo afora, não apenas na sala aqui ao lado, mas também em outros lugares desse país e desse mundo. É um prazer muito grande compartilhar com você esse momento e uma alegria tê-los aqui para dividirmos o prazer de ouvir Edgar Morin. Esta ocasião merece este registro. E, ainda, mais uma vez, é uma grande satisfação de nossa parte e queria dizer a todos vocês, que é uma alegria tê-los aqui conosco, neste momento, para compartilhar e ter o prazer de ouvir Edgar Morin. É verdadeiramente um prazer extraordinário e nos sentimos honrados com esta oportunidade de revê-lo. O registro, em seguida, estará na web, como já disse, além de estarem disponíveis as publicações que foram objetos destas considerações. 
Gostaria também de, ao terminar esse encontro, dizer para vocês que todo esforço para estarmos juntos aqui se deve, em grande parte, ao entusiasmo e à paixão do Edgar Morin de estar aqui conosco com toda sua vitalidade, com todo seu empenho. 
Há muita gente testemunhando esse momento e, claro, gostaria de mencionar todos vocês, mas não é possível. Mas gostaria de ressaltar, além da nossa equipe do Sesc, todos que trabalharam nas diversas áreas, seja na publicação, no setor especializado, em toda a infraestrutura necessária para que isso acontecesse. 
Quero ressaltar duas presenças importantes necessárias para que vocês entendessem a força e o magnetismo do Edgar Morin. Primeiro, da Nurimar Falci, tradutora do livro Chorar, amar, rir, compreender, que está aqui conosco e é a figura que intermedeia nossa relação com Edgar Morin. Em segundo lugar, da querida Claudia Fadel, funcionária do SESC, diretora da Escola SESC de Ensino Médio, no Rio de Janeiro. Ela deve a Edgar a sua iniciação, seu caminho por uma educação renovada. Sei do sacrifício que significou para a Claudia, em particular, vir do Rio e estar aqui nesse momento. Muito obrigado. É um prazer muito grande termos vocês aqui. Um beijo para todos. Edgar, muito obrigado, mais uma vez.

[1]  Palestra proferida por ocasião do lançamento da coleção DIÁRIOS DE EDGAR MORIN, composta por três títulos: Diário da Califórnia, Um ano Sísifo, Chorar, amar, rir, compreender – Edições Sesc SP, 2012.  [2] O Instituto Salk, voltado para pesquisas biológicas (Salk Institute for Biological Studies), na Califórnia (EUA), foi fundado por Jonas Salk e construído por Louis Kahn com o objetivo de servir a pesquisas biológicas nas áreas: biologia molecular, genética, neurociência e biologia de plantas. http://www.salk.edu