Latinidade

Edgar Morin

Abertura: Danilo Santos de Miranda
 
Antes de ouvirmos as palavras tão esperadas de Edgar Morin, vou pedir a paciência de vocês, para dizer aqui rapidamente, só para registrar e dizer da nossa alegria, da nossa satisfação, do nosso entusiasmo, enfim, pela presença e pela oportunidade de ouvi-lo. 
 
Bom, Edgar Morin é um dos maiores pensadores vivos, contemporâneos. Respeitado e admirado em todo o mundo. No entanto, o Sesc-São Paulo tem o privilégio de poder recebê-lo, nós aqui, sem fazer uso de etiquetas cerimoniosas, que essa condição impõe.
 
O Sesc pode recebê-lo e quer recebê-lo com afeto, o calor e a informalidade reservada ou reservados aos grandes amigos, pois Edgar Morin é, e temos orgulho de dizê-lo, um grande amigo nosso, amigo do Sesc. Esta é a quinta vez que ele vem a São Paulo a nosso convite, o que ainda achamos muito pouco! Nossa página na internet, o Sesc Online, tem um site destinado especialmente a Morin e à sua obra. Nossos animadores culturais trocam permanente correspondência com Morin e, seja dito, apesar de sua agenda repleta, ele nunca deixou de responder um único e-mail. Mas não é por acaso que o Morin se tornou um amigo tão estimado e uma referência tão forte em nosso trabalho. Acontece que o Sesc dispõe nas suas unidades – são 30 no Estado de São Paulo – que acolhe por mês 1 milhão e duzentas mil pessoas, entre matriculados e visitantes. Os matriculados contam mais de 1 milhão e 100 mil entre trabalhadores do comércio, serviços e seus dependentes. Isso implica, necessariamente em uma responsabilidade considerável, sobretudo porque não queremos que essas pessoas encontrem no Sesc apenas um espaço de entretenimento banal e de consumo de todo tipo de ninharias culturais, fabricado em série. Nosso projeto é bem mais ambicioso, ele visa a possibilitar o diálogo e a solidariedade, provocar leituras do mundo, a partir de experiências diferenciadas, estimular o sentido da participação e da responsabilidade, propor o desafio de pensar, de criar, de transformar. Nossa ação é um trabalho de integração de ideias e de valores. Um trabalho regido pela ética do convívio com a diferença, pela ética do respeito ao outro. 
 
A cultura e suas diferentes manifestações compõem o terreno que escolhemos para nos instalar, tendo em vista incentivar o diálogo e a descoberta do outro. É natural, portanto, que tenhamos nos aproximado de um homem da envergadura moral e intelectual de Edgar Morin. Morin é um onívoro cultural confesso, que constitui seu enorme saber tecendo e integrando fios de diferentes gêneros – conhecimento científico, filosofia, literatura, música, cinema e assim por diante. Foi com base neste saber que estabeleceu seus “Sete Saberes Fundamentais para a Educação do Futuro”, entre eles, ensinar a condição humana, ensinar a identidade terrena, ensinar a compreensão, enfrentar as incertezas. Esses princípios apontam para a necessidade da quebra da fragmentação do pensamento, apontam para a necessidade de reunir o conhecimento científico, as humanidades, as artes, a fim de estabelecer um saber transdisciplinar. Apontam para a necessidade de um pensamento integrador, apto a romper com o isolamento do homem em relação ao próprio homem, tanto do ponto de vista ético, quanto do ponto de vista intelectual. Daí a absoluta sinceridade dessa noção que Morin denomina pensamento complexo. Um pensamento que, conforme ele próprio define, abre aspas: “É o pensamento da solidariedade entre tudo que constitui nossa realidade, que tenta dar conta do que significa, originariamente, o termo complexus, o que tece em conjunto, como tecidos de fios diversos, inseparavelmente associados mesmo em seus antagonismos, que responde ao verbo latino complexere, que quer dizer abraçar. O pensamento complexo é um pensamento que pratica o abraço e ele se prolonga na ética da solidariedade”. 
 
Quanto à ética da solidariedade ela é, conforme nos ensina Morin, a mesma ética da resistência à imensa crueldade do mundo. Devemos, portanto, resistir àquilo que separa, desintegra, distancia. A resistência à crueldade do mundo deve tentar unir o que está solto, deixando-o livre. 
 
Para encerrar, desejo frisar que, ao convidarmos Edgar Morin para esta palestra de hoje, a qual integra a programação da Mostra Sesc de Artes – Latinidades, tivemos em mente situar a discussão do tema Latinidade sobre o signo que ele próprio nos propõe e este signo é: tecer e resistir, ou seja, unir e resistir. 
 
Vamos ouvir Morin. 
 
 
Edgar Morin 
 
Retomando o título das palestras do ciclo da Mostra de Artes realizada pelo Sesc, encontramos o termo latinidade no plural: latinidades. Isso é muito importante Nas latinidades existe a latinidade e é interessante explorar a noção a partir de sua origem, ou seja: Roma. 
 
Existem duas faces sucessivas daquilo que chamaremos de “romanidade”. A primeira é histórica e surge de conquistas extremamente bárbaras, tendo como ponto de partida a cidade de Roma e subjugando de forma implacável e destrutiva a Itália e o mundo mediterrâneo. 
 
Os estudiosos da história antiga recordam-se da destruição total de Cartago, da sua grande civilização púnica, do saque e da destruição total da grande cidade grega de Corinto. Do cerco de Numância, povoado espanhol com sua vã resistência e por fim exterminado. Mesmo no próprio mundo romano aconteceram ferozes repressões às revoltas de escravos, como a de Espártaco, e a destruição da república e da democracia para o surgimento de um império com seu imperador divinizado. Em seguida, defrontamos uma segunda face, paradoxal, dessa latinidade. Dessa conquista feroz da qual falamos, emerge um império não somente pacífico como também civilizador. Uma grande civilização com virtudes ao mesmo tempo integradoras e universalistas. 
 
A primeira integração foi a do grego, assim que Roma conquistou a Grécia.  Nas carruagens triunfantes dos vencedores chegaram escravos gregos e, com eles, a cultura grega, que foi progressivamente difundida no império. E, como todos sabem, finalmente o grego tornou-se o idioma do Império Bizantino, após a desintegração de sua porção ocidental, tornando verdadeiro o adágio latino: “A Grécia vencida venceu seu bárbaro vencedor”. Qual foi a contribuição da Grécia vencida? Um pensamento universalista criado e desenvolvido por seus filósofos e, principalmente, a célebre máxima humanista de Protágoras: “O homem é a medida de todas as coisas”, que encontra eco em Terêncio, autor de teatro latino, totalmente influenciado pela cultura grega. Em uma de suas obras, encontramos a célebre frase: “Homo sum: humanin nihila me alienum puto”, ou seja: “Eu sou homem: nada do que é humano me é estranho”
 
Naturalmente, esse universalismo e esse humanismo são extremamente limitados, sem a participação dos escravos. Na Grécia, na Atenas da grande filosofia de Aristóteles, este dizia: “O escravo é uma ferramenta animada”. Isto é, um objeto e não um ser humano; portanto os não cidadãos são excluídos, mas esse universalismo é potencial da mesma forma que a democracia nascida em Atenas, que é reservada exclusivamente aos cidadãos. A ideia da democracia, porém, carrega em si a possibilidade de enriquecer o que a fez nascer e que se tornou tarefa da democracia moderna. Pois, então, contamos com esse humanismo universalista que irá impregnar a cultura latina e, em seguida, teremos uma integração, eu diria, cidadã e política dos habitantes dos países conquistados por Roma. Referimo-nos ao édito do imperador Caracala, no século III, que concede a cidadania romana a todos os habitantes do império. A partir desse momento, o Império Romano não é mais somente dos povos da Itália ou de Roma, mas também dos espanhóis, dos africanos do Norte – como Santo Agostinho, um berbere, africano do Norte - que se tornam cidadãos romanos de pleno direito. 
 
É incrível que, enquanto observamos ainda nos dias de hoje essa tendência de dominação de uma etnia sobre outras, no Império Romano tenha havido uma tendência absolutamente não racial, não racista e tenham existido imperadores que não eram romanos nem mesmo italianos. 
 
Nessas condições, constitui-se de certa forma a unidade das diversidades; as tolerâncias - que são tolerâncias religiosas próprias da Antiguidade pagã - os deuses estrangeiros foram adotados pelos romanos: Osíris, o deus egípcio; Orfeu, o deus grego, que morre e renasce tal qual Osíris, e por fim a integração da mensagem de Jesus, que, uma vez integrada, desintegrará todos os outros deuses com seu monopólio da verdade. De qualquer modo, quero dizer que é real essa aceitação de outras crenças, pois aceitar os deuses dos outros povos significa reconhecê-los. Eliminar os deuses dos outros povos, como fez, por exemplo, a conquista espanhola, bem como a portuguesa, é negar de fato a identidade dos outros povos. 
O terceiro aspecto da latinidade é a integração do cristianismo a partir de um momento extremamente importante, isto é, do encontro do judaísmo de Jesus com a cultura grega, com a cultura greco-latina. Essa extraordinária circunstância histórica é a de Paulo, patrono desta cidade de São Paulo. Ele que, na realidade, se chamava Saul e era judeu, fariseu, anticristão, que perseguiu os primeiros cristões e, como sabem, viu um clarão, teve um êxtase – há um belo quadro de Caravaggio em uma igreja de Roma, na Piazza del Popolo, onde o vemos caído do cavalo, fulminado, tombado – ao receber uma revelação de Jesus, que lhe disse: “Paulo, ou melhor, Saul, Saul, por que me persegues? ” Como é do conhecimento de todos, essa conversão de Saul, que se tornou Paulo, e que trouxe consequências enormes, enunciará esta ideia básica: não há mais judeus e não há mais gentios – a palavra “gentio” significando todos os outros povos, todas as outras nações – mas uma só humanidade. Esse pensamento da mensagem de Jesus, potencialmente universalista, tornou-se de fato universal, também com suas limitações, já que o cristianismo, como sabem, não aboliu a escravidão, contribuiu para sua abolição. 
 
Houve uma longa incubação, durante dois ou três séculos, da mensagem cristã em todo o Império Romano e em todas as camadas da sociedade, até que, com a conversão do Imperador Constantino, tornou-se não somente a religião do império como também a única religião oficial. Nesse momento, o cristianismo integra a romanidade, integra a latinidade que o havia integrado anteriormente. Existe um duplo aspecto nessa integração: a integração de uma mensagem de abertura, de amor, como a do Sermão da Montanha, mas há um outro aspecto que é a intolerância de uma religião que se declarava detentora exclusiva da verdade, que possuía o monopólio da verdade e que eliminaria todas as outras de forma impiedosa. 
 
Essa tendência ao monoteísmo – lembrando, aliás, sua origem egípcia, pois foi o faraó Akhenaton o primeiro a adorar um deus único – é possuidora de aspectos universalistas, pois é dirigida a todos os seres humanos, com aspectos também – e infelizmente, em certos momentos históricos, numerosos demais - extremamente intolerantes e fanáticos: como as incessantes guerras religiosas na Europa, como o Islã, possuidor do mesmo caráter monopolista do monoteísmo. Vemos, então, que as guerras religiosas são, assim, um monopólio ou uma característica específica do nosso mundo ocidental e mediterrâneo, enquanto na China e no Japão, por exemplo, percebemos a pluralidade das religiões; uma mesma pessoa pode professar o culto dos ancestrais, o culto xintoísta ou o culto budista. Finalmente, essa questão é o grande êxito do mundo, não somente da latinidade em si como de todas as latinidades. 
 
E o que são as latinidades
 
A latinidade surgiu a partir da desintegração do Império Romano do Ocidente, isto é, com a chegada dos povos bárbaros que integraram, em parte, a civilização e a língua latina. A língua latina transformou-se – como aconteceu com todas as línguas na História -, dando origem às línguas nacionais a partir das linguagens populares, já que os letrados continuaram usando o latim clássico, o da Igreja. Contudo essas línguas nacionais detêm um cunho latino, como naturalmente possuem o italiano, o espanhol, o português, o francês, o romeno etc. Presenciamos, então, o surgimento das latinidades, das línguas mestiças evidentemente marcadas durante a Idade Média pelo monopólio teológico da religião. Porém, no âmago da latinidade ocorreria o que denominamos Renascimento, ou seja, a ressurreição da herança grega, que já havia penetrado a latinidade do Império Romano. 
 
Essa ressurreição teve início na Itália e fez brotar algo que romperia o isolamento religioso, já que representava o despontar de um pensamento não religioso, de um pensamento laico, autônomo, com ou sem Deus. Essa corrente humanista surgiu com muita força na Itália, com Pico dela Mirandola, com Giordano Bruno – que foi queimado em Roma, como sabemos -, com Leonardo da Vinci e, ao mesmo tempo, com o advento da tecnologia, da ciência, da filosofia.
 
E não existia somente essa corrente italiana que iria se propagar pela Europa ocidental e influenciar principalmente Erasmo. Havia uma outra corrente subterrânea, escassamente conhecida, que podemos denominar corrente marrana: a dos convertidos. Eram os judeus convertidos ao catolicismo pela força ou por vontade própria ou mesmo pelo medo. Entre esses marranos, havia certamente alguns que acabaram esquecendo suas origens e tornaram-se católicos; outros permaneceram judeus secreta e clandestinamente, mantendo uma aparência católica. Porém, há uma outra categoria bastante minoritária para quem o confronto, o choque entre as religiões cristã e hebraica, fez emergir algo novo que ultrapassaria uma e outra religião. O mais belo exemplo disso é o pensamento de Espinoza. Espinoza é um filósofo de origem judaica, que naquele momento promoveu essa revolução mental própria do mundo moderno: eliminou a ideia de um Deus exterior ao mundo, que cria o universo tal qual um arquiteto. Eliminou essa ideia que, na mesma época, permaneceu muito forte em Descartes e Newton, situando a substância criadora no âmago da própria natureza. A fórmula de Espinoza é: “Deus sive natura”, isto é, “Deus, quer dizer, a natureza”. Não podemos dizê-lo com mais ênfase. Esse seria o problema fundamental, isto é, o fato de como a criação, as ideias, a humanidade, a evolução, origina-se do próprio mundo que permanentemente se cria e recria.  
 
Como já haviam percebido os inquisidores, perseguidores dos marranos, o marranismo era fonte do ceticismo e do racionalismo. Além disso, o exemplo mais claro é o de Michel de Montaigne, cuja hereditariedade é toda de origem marrana, isto é, judia, que possuía, para sua época, um conceito extraordinário das guerras religiosas: o pensamento do ceticismo e do   relativismo. Foi Montaigne o primeiro a dizer, quando da conquista da América: “Chamamos de bárbaros os que pertencem a uma civilização distinta da nossa”. É a ressurreição da mensagem universalista greco-latina em um mundo pós-cristão. Ao lermos Os ensaios, de Montaigne, encontramos inúmeras referências aos gregos, aos poetas gregos e latinos, porém nenhuma menção à Bíblia ou ao Evangelho. 
 
Podemos, portanto, dizer que a filosofia e a ciência moderna tiveram origem no Renascimento e que, a partir desse momento, a latinidade não pôde mais ser confundida com a cristandade, que se estabelecia de maneira mais ampla na Europa. Sob a influência desse pensamento – do Renascimento e do catolicismo – ocorreu então na Europa o que chamo de dialógica, ou seja, uma relação ao mesmo tempo complementar e antagonista entre a religião e a razão, entre a fé e a dúvida, graças à qual podemos reconhecer os limites da razão e na qual podemos, como o demonstra Pascal – e isso é muito importante e moderno -, concluir que não existe nenhuma prova lógica nem empírica da existência de Deus. O que diz Pascal? Diz: “É preciso apostar. ” É o grande tema da aposta de Pascal: “Doravante, devemos apostar”, seja em Deus ou, de acordo com nossos valores, no bem, no aprimoramento da humanidade, em um mundo melhor, devemos sempre apostar. Nunca teremos certeza do êxito em nossas iniciativas e eis aqui, também, essa sólida ideia em um país de língua latina, a França, e que é de suma importância. 
 
Não devemos esquecer que a latinidade contém duplamente o helenismo – helenismo significando a herança grega, já que os gregos são helenos. Existe a herança grega encontrada dentro da latinidade do Império Romano e a herança grega ressuscitada dentro da Europa latina e, de forma mais extensa, na Europa moderna e, por fim, nos tempos modernos. 
 
Chegamos, portanto, a uma nova aventura da palavra latinidade. Da mesma forma que Roma conquistou de maneira bárbara o mundo mediterrâneo, as nações latinas católicas, primeiramente Espanha e Portugal, realizaram uma conquista bárbara da América, principalmente da América Latina, com a pavorosa destruição das civilizações como a asteca e a inca, com uma subjugação maciça. 
 
Nessa conquista bárbara, podemos observar a capacidade dos conquistadores e a imposição imperiosa da fé católica, com algumas exceções, como sabemos, dos jesuítas das missões, que se encontravam no sul do Brasil e na Argentina e que, mesmo impondo a fé católica, tentaram respeitar a humanidade dos índios. 
 
Ao lado desse aspecto bárbaro, assistimos à introdução do português, do espanhol e de novas latinidades. Nessas novas latinidades foi que se iniciou o processo de emancipação. Primeiramente, a dos criollos, isto é, dos colonos desses países, ao se emanciparem das coroas espanhola e portuguesa e, na nova nação, a emancipação dos escravos, no caso do Brasil, no século XIX, e que ainda hoje não terminou e está longe de terminar, se pensarmos em países como o Peru, a Bolívia e mesmo aqui, o problema dos indígenas da Amazônia e de outras regiões do Brasil. Porém, mesmo assim, temos um processo que chamarei de civilizador, como o da mestiçagem, que contribui para a integração e emancipação dentro de um novo complexo nacional e civilizador. Realmente, embora o processo não esteja acabado, o exemplo mais marcante de uma nação que criou uma civilização pela mestiçagem é, sem dúvida, o Brasil, exemplo de miscigenação civilizadora e criadora. 
 
Da mesma forma que na Europa, desde o Renascimento, não existe mais uma latinidade, mas sim latinidades, na América Latina também existem latinidades em que o termo latinidade torna-se um componente linguístico e cultural das civilizações mestiças e não a essência dessas civilizações. Não podemos reduzir todos esses países à simples latinidade, nem mesmo a Argentina, que é o país mais europeu da América Latina, mas também o Brasil, a Colômbia, o Peru, o México etc. Em outras palavras, o termo latino deve ser considerado um adjetivo, e não um substantivo. 
 
A latinidade é um dos traços que caracteriza as nações, os povos da América Latina e, portanto, podemos dizer que as latinidades se enriqueceram e irão se enriquecer [Morin tosse, toma chá e diz: “Saúde! Infelizmente não é cachaça! ”] pela mestiçagem e pelas diversidades no seio das unidades nacionais. Digo “irão se enriquecer” porque nos encontramos em um processo nos países vizinhos como o Peru, o Equador, a Bolívia em que há o despertar das realidades quéchua, aymara. Assistimos a esse impulso indigenista muito forte, que deverá nos levar a uma nova ou a novas simbioses. 
 
Isso dito e nessas novas condições, devemos examinar um novo aspecto, aquele próprio às latinidades. E qual é esse aspecto? Primeiramente, quando examinamos os mapas geográficos, percebemos que as latinidades são do sul, do sul da América – e, naturalmente, incluímos o México, culturalmente parte integrante da América Latina e que se situa ao sul dos Estados Unidos – e do sul da Europa: Portugal, Espanha, França, Itália e o Mediterrâneo, que está ele próprio no sul da Europa. Portanto, essa característica é do sul. 
 
Hoje, e isso ocorre já faz alguns anos, não falamos mais da oposição Leste e Oeste. Após a queda do império soviético, falamos do Norte e do Sul. Dizemos: o Norte é rico, o Sul é pobre; o Norte é desenvolvido, o Sul é subdesenvolvido; o Norte é muito técnico, industrial, o Sul é principalmente rural etc. De alguma forma, o desenvolvimento e a riqueza significam Norte; subdesenvolvimento e pobreza significam Sul. Porém, na realidade as coisas são muito mais complexas que isso. Por quê? Porque o Norte, de fato, detém a hegemonia da técnica, da indústria, do capitalismo, que é, também, a hegemonia do cálculo, do economicismo. Isso significa que o pensamento do Norte tende, cada vez mais, a se reduzir ao cálculo, à economia. Quer dizer que todo o conteúdo humano fica fora do cálculo. O sofrimento não pode ser calculado, assim como o amor. Mesmo que se invente uma unidade de medida para o amor, que chamaríamos de Cupido, nunca faríamos uma declaração de amor a uma jovem dizendo-lhe: “Sinto trezentos Cupidos por você”. Absolutamente não! Nada disso é quantificável e a tendência do Norte é reduzir tudo ao cálculo: reduzir a política à economia, ao crescimento, à renda bruta, que são meras noções estatísticas formais. Em outras palavras, é a hegemonia da quantidade em detrimento da qualidade, das qualidades, tendo à frente a qualidade de vida. No entanto, o atraso econômico do Sul comporta a salvaguarda dos valores humanos não redutíveis a quantidades nem a moedas. São os valores de convívio, de hospitalidade, valores de qualidade de vida. De resto, o Norte sente uma necessidade crescente desses valores. Desde o século XIX, o Norte busca o Sul: o Norte germânico preso em um mundo fechado apelava ao Mediterrâneo por meio de seus poetas, notadamente Goethe que, referindo-se à Itália, dizia: “Conheces o país onde floresce a laranjeira? ”. Pode-se encontrar esse apelo ao Mediterrâneo também em Hölderlin e, hoje, na Europa, vê-se uma grande massa de veranistas alemães que acorrem às praias do Mediterrâneo, às ilhas gregas, ao Sul, ao sol, que buscam algo que não lhes é oferecido por sua cultura e sua civilização. Aliás, por que será que a pizza se difundiu pelo Norte e pelo mundo inteiro? Ela é um símbolo daquilo que o Sul pode nos trazer; alguma coisa na gastronomia do Sul que não pode ser encontrada no chucrute nem na salsicha. Claro que não se deve denegrir o Norte. É preciso dizer também que o Sul, durante muito tempo, manteve certas desigualdades bastante marcantes, principalmente a da condição da mulher. Na Espanha, por exemplo, há trinta anos, uma mulher não podia entrar desacompanhada em um bar. A chegada das mulheres ao mundo do trabalho, ao mundo externo, é recente. O feminismo, a defesa dos direitos da mulher começou incontestavelmente no Norte e, por essa razão, é preciso não somente pregar, como eu faço, a resistência do Sul, mas também a simbiose civilizadora entre o que há de importante e útil no Norte com o que decididamente deve ser conservado no Sul. 
 
Nessa simbiose vemos que a latinidade é fonte da universalidade e do humanismo e é, ao mesmo tempo, uma latinidade que pode se tornar porta voz do sul do planeta, acrescentando às reivindicações locais, particulares e singulares, o elemento de universalidade indispensável. 
 
Quando, num primeiro momento, houve resistência à globalização econômica e alguns tendiam a dizer que deveríamos nos fechar em nossos países – chegou-se a existir essa posição -, houve também uma outra mensagem trazida por José Bové, um homem da latinidade e pastor de rebanhos francês, que disse: “O mundo não é uma mercadoria”. Isso quer dizer que se aceita a ideia de uma civilização global, porém, com suas diversidades. Não queremos nos fechar. É evidente que se deve respeitar os valores de cada cultura. Nesse ponto, reaparece a questão do Sul. 
 
Pensadores africanos de expressão francesa, da França enquanto pátria das ideias universais, da Revolução Francesa e dos Direitos do Homem, pensadores negros como Aimé Césaire, martiniquês, ou como Léopold Sédar Senghor, africano senegalês, são pensadores universais sem abandonarem o pensamento da negritude, isto é, das qualidades do negro, do black is beautiful. 
Para uma simbiose criativa, uma civilização planetária, o papel da latinidade, a meu ver, é o de ser porta-voz ao mesmo tempo do Sul e do universal. Mas, para isso, é preciso ultrapassar a noção de desenvolvimento que, em minha opinião, é uma noção totalmente subdesenvolvida, por se tratar de um conceito técnico e econômico que o Norte ocidental quer impor ao mundo, propondo-se como modelo, como se somente a técnica e o capital fossem locomotivas capazes de puxar um trem contendo a democracia, o humanismo e o aperfeiçoamento do destino humano, com a visão de que a pobreza se mede apenas pelas estatísticas e pelo PIB e não, também, por  traços humanos, como a humilhação pelo  fato de não dispor de medicamentos ou de acesso às fontes de informação. 
 
Em outras palavras, a medida puramente quantitativa da pobreza é um erro, porque primeiramente podemos considerar paupérrimos os camponeses que vivem numa economia de subsistência, numa policultura, produzindo eles próprios o que necessitam para viver. Mas isso pode ser falso. Esses mesmos camponeses, uma vez lançados nas favelas das periferias dos grandes centros, não possuem nenhum recurso, vivendo de bicos, em uma verdadeira miséria. 
 
Em suma, é preciso repensar essa ideia de desenvolvimento. E a ideia de subdesenvolvimento, a meu ver, é abjeta, porque nos faz ver os subdesenvolvidos como aqueles que nada conhecem a não ser superstições. Na realidade, chamamos de subdesenvolvidos os povos que possuem culturas multimilenares. Os índios da Amazônia possuem tesouros em conhecimentos medicinais sobre as plantas, sobre os animas. Esses povos têm uma sabedoria e uma cultura oral de enorme riqueza. Em minha opinião, é terrível pensar que tudo isso nada representa e que pura e simplesmente devemos lhes levar o alfabeto e as ideias abstratas. É preciso ir além desse conceito de desenvolvimento.
 
Nós, franceses, europeus, que nos consideramos desenvolvidos, percebemos que nossa civilização traz uma pobreza moral, o isolamento no egocentrismo e toda uma série de problemas até então inexistentes: a poluição urbana, a degradação da biosfera, o desencadeamento das armas nucleares. Estamos vendo que caminhamos para um impasse. E dizemos aos demais países para seguirem esse caminho, quando seria preciso dizer que escolham um outro. Esse é o problema fundamental. 
 
Por isso creio que o papel da latinidade poderia ser extremamente importante, podendo integrar o que há de importante na ideia de desenvolvimento, como por exemplo, o acesso aos medicamentos. Veem-se, ainda hoje, as indústrias farmacêuticas impondo grandes dificuldades para reconhecer aos países, inclusive ao Brasil, o direito de fabricar seus medicamentos genéricos. Logo, precisamos de uma política de civilização, de simbiose das civilizações. Precisamos de uma política da humanidade, voltada para as necessidades mais prementes, mais fundamentais de toda a humanidade, no nosso planeta. É uma necessidade urgente!
 
E sabemos que uma política de civilização não pode se limitar a uma luta militar contra o terrorismo, porque a própria luta militar continua e desenvolve a violência e um outro terrorismo, o terrorismo de grupos clandestinos, um terrorismo de Estrado, de extrema brutalidade. Portanto, a política de civilização deve lutar contra a violência, e não apenas pela repressão, mas sim pela mudança das condições humilhantes de dependência existentes no mundo atual. 
 
Como fazer, porém, essa regeneração da humanidade para salvá-la da catástrofe para a qual se dirige? Muitas vezes eu disse que a nave espacial Terra era propulsionada por quatro motores:  o motor ciência, o motor técnica, o motor economia e o motor lucro, mas que não havia piloto e que os passageiros não se entendem uns aos outros e se disputam entre si. Nessas condições, que fazer? É um trabalho de fôlego. É preciso conscientização. Quanto mais a catástrofe estiver visível, quanto mais tivermos consciência de que estamos caminhando em direção a algo terrível, a reação surgirá e, talvez, possamos salvar a humanidade ou o mundo... mas, já à beira da catástrofe!
Hölderlin, naqueles versos de seu poema à Grécia, chamado “Pathtmos” diz: “Quanto maior o perigo, maior a salvação”. E penso que isso pode ser obtido pela consciência. Para entendermos o que pode acontecer, vou dar um exemplo biológico: sabemos há pouco tempo que as células-mães, aquelas que no embrião humano têm a capacidade de criar as células de todos os órgãos, como o fígado, o baço, o cérebro etc. –, têm a possibilidade universal, o que se chama, em linguagem biológica, tutti potente. Acreditava-se que essas células desaparecessem depois da criação dos órgãos com células especializadas. Mas há dois anos houve uma descoberta muito importante, feita durante as pesquisas sobre regeneração de órgãos e sobre culturas de embriões, hoje, este problema está ultrapassado, sem que tenha começado, por quê? Porque mostrou que um ser adulto possui células-mães em sua medula, em seu cérebro, em seu corpo, mas que estão adormecidas. A questão a ser levantada pela medicina nos próximos anos é como despertar essas células. Já foram feitas experiências em um camundongo com lesão cardíaca e, graças ao despertar dessas células, foi possível reconstituir um coração válido, normal. Problemas da medicina. 
 
Mas deixemos a metáfora e voltemos a falar da humanidade. Cada ser humano e não somente ele, mas também cada coletividade humana possui em si potências regeneradoras que são como o equivalente das células-mães. Elas ficam adormecidas enquanto estamos numa sociedade especializada, burocratizada, que busca exclusivamente a quantidade e o lucro. Mas, quando há uma crise, elas podem despertar. É o que Karl Marx chamava de homem genérico. Ele se referia à capacidade de geração e regeneração presentes no ser humano. Nós dispomos dessas capacidades. Elas estão adormecidas. E temos, entre essas células-mães, as matrizes do humanismo greco-latino. 
 
Assim, as latinidades podem estar na vanguarda dos esforços para salvar a humanidade do desastre para o qual ela corre. 
 
Perguntas do público

 (As perguntas foram enviadas à mesa, por escrito, e lidas por Nurimar Falci) 

1.    O que você pensa da crítica nietzscheniana à tradição judaico-cristã? Como o pensamento do anticristo de Nietzsche pode interferir na latinidade cristã? 
 
2.    Nurimar Falci: Esta pergunta foi feita em francês por Felipe Mortara do Liceu Pasteur. Da mesma maneira que os estados da União Europeia têm laços entre eles, o senhor acredita que os estados da América Latina poderiam ter um laço mais estreito, cultural, do que o Mercosul? 

(Nurimar Falci entrega os papeis com as perguntas ao Morin e leem juntos)

3.    Outra pergunta é: Como usar esta capacidade regenerativa da cultura com públicos tão diversos, de diferentes estratos sociais e diferentes leituras da arte? Silvia Bittencourt

Nurimar Falci: o professor Morin prefere que sejam lidas todas as perguntas e, depois, ele faz um resumo. Aqui tem outra pergunta: 

4.    Aqui tem outra pergunta: Quando o sr. se refere à tomada de consciência certa em direção a poder salvar a humanidade e o mundo...  (Nurimar: Não está muito clara). É belo o pensamento, mas não seria messiânico, apesar de concordar com a sua tese de regeneração do pensamento humano? (Etoalá de Barros, psicólogo e psicoterapeuta)  
 
Morin: entendi. 
 
Respostas de Edgar Morin
 
Bem. 
A pergunta concernente a Nietzsche. Nietzsche é um grande pensador, um pensador bastante complexo, que tem diversos aspectos, diria, extremamente diferentes e sua crítica ao cristianismo não é somente uma crítica feita frequentemente, laicamente, sobre o fundamento da religião, sobre a crença. É uma crítica feita sobre a mensagem, isto é, penso eu, que Cristo é uma mensagem que amolece a humanidade, enquanto seu tema do superhomem, é de criar homens duros. Este é um aspecto do pensamento niestzschiano sobre o qual pessoalmente não estou de acordo, o que não me impede de reconhecer Nietzsche como um gigante do pensamento e, mais que isso, o que é muito interessante na história do pensamento pós-cristão, é que há uma diversidade de críticas e de pontos de vista, e que vão continuar. Na minha opinião, o que é importante em Nietzsche é que ele mostra fortemente o fundamento, isto é, não há mais fundamentos, a base/ a rocha primeira sobre a qual construir um pensamento. Nós somos objeto de pensamento sem fundamento. É mesma coisa que as casas de palafitas, que estão sobre a lama, a várzea. Da mesma forma, podemos pensar hoje que é possível construir um pensamento como as casas sobre palafitas, cujo fundamento, cujo alicerce é a lama. 
 
Outra questão. Estou totalmente convencido de que a América Latina deve procurar uma união, uma confederação que vai bem além do Mercosul e, além disso, estou impressionado pelos esforços e pela política do presidente Lula neste sentido, com suas relações com a Argentina, recentemente com o Peru e com outros países. Certamente, uma das causas da fragilidade dos países da América Latina é o fato de que eles estão separados um dos outros, fechados em si e têm a necessidade de se unir não somente para confrontar a força hegemônica do vizinho do norte, mas também para enfrentar o mundo atual. É um pouco o problema da Europa. A Europa começou com a dificuldade das línguas extremamente diferentes, enquanto a América Latina tem apenas duas línguas – espanhol e português, que são línguas que se comunicam. A Europa deu a partida, mas ela ainda está caminhando, é um caminho longo, um caminho que não se baseia na hegemonia. A Europa, em primeiro lugar, partiu da ideia de acabar com as guerras suicidas, com guerras mundiais, com a ideia, naquela época, de não continuar dividida frente à enorme União Soviética. Em seguida a Europa deslanchou por um boom econômico e pela multiplicação das comunicações e houve resistência em relação à multiplicação das comunicações. E é a comunicação múltipla entre os europeus que favorece o desenvolvimento de uma Europa unida. Então, o paradoxo para a América Latina é que há uma língua comum, mas há muito pouca comunicação, há muito poucas estradas e redes ferroviárias. As comunicações por avião são raras e extremamente caras, e eu penso que é preciso utilizar o recurso dessas duas línguas comuns para caminhar nesse sentido, no sentido da necessidade de autonomia. Hoje precisamos de grandes conjuntos, mas que respeitem as realidades de cada nação. Eu diria que se pode pensar no neo-bolivarianismo, que não é o do seu líder Bolívar do século XIX, mas com as condições atuais. Bolívar ficava apenas no nível dos criollos, dos colonos, enquanto essa ideia deve estar aberta à realidade, à especificidade da composição indígena da população. 
 
Outra questão é sobre a grande diversidade social, econômica etc. e como pensar na regeneração? Dei o exemplo da regeneração porque é muito interessante, pois é uma regeneração que cria e recria a diversidade, que vai contra a homogeneização. Da mesma forma que as células tronco podem fazer um fígado, um coração, coisas completamente diferentes, da mesma forma a regeneração deve existir em cada indivíduo, na potencialidade individual, qualquer que seja sua situação, sua classe social. É um problema dos indivíduos. Mas esse problema dos indivíduos é também um problema da coletividade. Numa nação, se a democracia não estiver esclerosada, empobrecida, ela é um meio capaz de regenerar a partir dessas células tronco. 
 
A última questão é de saber se não é um messianismo lançar essa mensagem nas condições atuais. Seria messianismo se me apresentasse como um profeta e dissesse: sigam-me, eu sou a solução. Não, o que disse é: esta é a via. Mas, evidentemente não começamos nesta via. Nós estamos antes mesmo de começar. As tomadas de consciência são muito esparsas, muito separadas. É preciso um longo trabalho. E sempre foi assim na história: as grandes inovações históricas começam sempre por um desvio, e se esse desvio não for esmagado pelo conformismo dominante, ele pode se desenvolver e virar uma tendência e essa tendência se transforma em força, uma força moral, uma força social, uma força política. Foi assim que começaram todas as grandes religiões. É preciso pensar que Jesus foi um divergente no mundo judaico da sua época. É preciso pensar que Maomé, Mohamed foi um divergente, ele precisou fugir de Meca e se refugiar em Medina. É preciso pensar que até a ciência moderna nasceu como um desvio na concepção aristotélica e teológica do mundo, e no século XVII, os cientistas como Gassendi, como Leibniz, como Descartes, foram indivíduos que trocavam correspondências e no final do século foi criada a primeira sociedade, a Royal Society na Inglaterra e, depois, na Europa, nasceram sociedades reais que uniram e associaram cientistas e as ciências se desenvolvem. No século XIX, ela entra nas universidades e há uma ruptura com as universidades medievais. E hoje sabemos que as ciências que começaram como um desvio no século XVII, adquiriram uma força formidável, se desenvolveram e foram financiadas pelos Estados, pelas economias. Mas o início é sempre modesto. Alguém citou Nietzsche, que dizia que as ideias novas avançam como passos de pombos, quer dizer, muito lentamente, não os escutamos e é essa a minha. Não é um messianismo. Eu penso que esta é a via e que devemos começar. Portanto, vamos tentar começar! Obrigado. 
 
(Nurimar Falci entrega a Morin papeis com questões)
 
Nurimar Falci: Enquanto o professor Morin lê as duas questões, a Maria Cecília Sanches nos propôs: gostaria que a palestra de hoje estivesse disponível no site do Sesc. Então, informamos que ela estará disponível no site: http://edgarmorin.sescsp.org.br e nós aproveitamos a ocasião para dizer que este site – Sesc Edgar Morin -  abriu um fórum e é muito importante que todo mundo participe e envie suas contribuições. Existe também uma bibliografia que deve ser atualizada, um círculo poético. Bom, então, repito: http://edgarmorin.sescsp.org.br
E obviamente, não vai ser possível responder a todas as perguntas. Inclusive elas poderão ser enviadas para o próprio site e o professor poderá lê-las e vocês mesmos poderão fazer esse diálogo entre vocês, o que é bastante dinâmico. 
 
Bom, aqui existem 2 perguntas, praticamente similares, do Jonatas de Vargas: Duas ideias opostas - a afirmação de que os jesuítas respeitaram a humanidade dos índios e que é preciso resgatar os conhecimentos deles, sua cultura. Os jesuítas com suas reduções no sul do país, reduziram para alguns milhares os milhões de nativos que viviam antes dos desbravadores. Não tiveram eles, em nome do cristianismo, o papel de destruição da cultura indígena e pelo trabalho escravo dos índios nas reduções jesuíticas? Não é contraditório crer que os jesuítas foram humanistas? 
 
E uma da professora Ada Pelegrini: Por que as raízes de um movimento universalista e integrador vai se encaminhando para um movimento excludente e tirano, como por exemplo, o próprio cristianismo? 
 
(Nurimar Falci entrega mais papéis a Edgar Morin e diz baixo que as 2 perguntas são parecidas). 
 
Nurimar Falci: E estas duas, também, praticamente próximas: 
 
Como os países do Sul podem conseguir expressão planetária? Não os países da Europa do Sul, todos como desenvolvidos, mas do sul do sul: México, Brasil, África. 
 
Outra pergunta, do Heitor Peixoto: Qual seria o primeiro passo para nós, latinos, ou sulistas, mostrarmos aos povos do norte que o desenvolvimento não é só medido por dados estatísticos e econômicos? 
 
O senhor poderia explicar melhor de que maneira as religiões nos países orientais, China, não são monoteístas, considerando a opressão ao Tibet? Acho que seria: considerando também a opressão ao Tibet... porque ...
 
E agora, a última, de Eliete Pereira, Universidade de Brasília: Como pensar Latinidade sem a contribuição africana, japonesa, na cultura, por exemplo, na América Latina? Como ainda pensar em latino-cultura? 
 
Então, são três blocos de respostas. 
 
 
Respostas de Edgar Morin
 
Bem. 
Há uma pergunta. Não é bem uma pergunta, mas é uma contestação sobre o papel dos jesuítas, das missões na América Latina. Efetivamente, quem me fez esta crítica tem razão, pois há todo um aspecto que sempre digo, que o catolicismo contribuiu para a escravidão, mas também gosto de pensar que, em alguns casos, os jesuítas quiseram ao menos preservar um pouco de dignidade para os indígenas, mas eu exagerei. Talvez eu tenha visto demais o filme “Missão”, com Roberto de Niro.  (Risos) 
 
Há uma questão sobre o cristianismo, mas penso que o cristianismo, acho que disse muito rapidamente, tem 2 faces: há uma face que é universalista, que é uma religião da fraternidade, uma religião da caridade, no sentido de que vem do coração, e do outro lado, é uma religião extremamente dogmática e que se mostrou extremamente intolerante. Não podemos esquecer que houve as Cruzadas, que houve a conversão forçada dos muçulmanos e dos judeus na Espanha. Enquanto o Islã é muito mais tolerante e mesmo no Império Otomano tolerou as outras religiões. Mas há outros aspectos. Estes aspectos do cristianismo regressaram sob o impulso do pensamento laico. Por exemplo, na França, porque houve a república, uma república laica, porque houve um ensino laico, não teológico, que empurraram a religião para a vida privada, a vida pessoal, para não ser mais uma força política dominante e nestas condições o catolicismo se humanizou bastante nos últimos anos. Mas não se deve esquecer que todas as religiões monoteístas contêm um aspecto de intolerância e de exclusão dos outros. No judaísmo, com a noção de povo eleito, noção que Espinoza contestou, e vocês encontram isso também no Islã. 
 
Há uma questão que demanda um pouco de esclarecimento sobre o que eu disse das religiões não monoteístas, e que fala do Tibet. O Tibet, onde há efetivamente a dominação do budismo tibetano, foi, durante séculos, no topo do Himalaia, um lugar isolado, onde dominou este budismo tibetano, incorporando algumas práticas ao budismo. Mas, um fato muito marcante foi o exílio do Dalai Lama e a descoberta do resto do mundo pelo Dalai Lama, que tem um pensamento completamente universalista. Uma coisa que me impressionou muito foi quando fui um dos seus convidados para uma reunião que foi organizada na França, onde ele perguntou a pessoas representando outras religiões, mas não somente as grandes religiões que conhecemos, como o cristianismo, mas também as pequenas, como o xamanismo de países como o México. O xamanismo da Sibéria, quer dizer, as religiões de pequenos povos que não são consideradas como religião, que são consideradas como magia. Foram convidados em respeito a suas crenças. Eu fui convidado, talvez de maneira excessiva, por representar a filosofia laica e também havia outro convidado representando a ciência. Portanto, há essa possibilidade universalista que encontramos no budismo, que não é um monoteísmo, pode até ser um teísmo. No budismo, deixando de lado os charlatães que são inúmeros, a mensagem é clara: Buda não é um Deus. É um homem que teve uma experiência fundamental que chamamos as quatro verdades. A do sofrimento, a da impermanência: ele diz que precisamos nos libertar desse universo. Bom. É uma mensagem libertadora. E, agora, devo dizer que fiquei muito impressionado, na China e no Japão, de ver as mesmas pessoas poderem praticar ao mesmo tempo o culto dos ancestrais, que é uma religião, que se faz em casa, com um altar, o culto budista e o culto xintoísta. Ou seja, é como na antiguidade do mundo mediterrâneo ocidental, antes do cristianismo, em que os diferentes cultos coexistem, pacificamente e o monoteísmo traz em si uma intolerância específica, e isto é a complexidade das coisas, pois há aspectos positivos e aspectos negativos e é preciso que vejamos os diferentes aspectos, notadamente ao que concerne a este problema. 
 
Há também uma questão sobre a latinidade integradora, com a contribuição dos africanos, dos japoneses, não somente os japoneses de São Paulo, mas de toda cultura japonesa. Efetivamente, temos uma coisa que é muito interessante, pois estamos numa época transcultural, onde há aportes de diferentes culturas que migram de uma cultura a outra, por exemplo, o que veio do Japão para os países ocidentais, com o budismo Zen, o que veio da medicina chinesa, com a acupuntura e, cada vez mais, devemos reconhecer que isso não acontece somente no Ocidente. Em todos os lugares existem cultura, saberes, conhecimentos, virtudes, sabedorias que não existem no Ocidente. Portanto, quando defendo a ideia da latinidade, não se trata de envolver e dominar tudo. Não. É preciso haver trocas. E para trazer um pensador de origem africana, não, martiniquense que diz que é preciso ir em direção ao encontro do dar e do receber, contrariamente ao comportamento do ocidente que, por muito tempo, só deu lições e tomou as riquezas. Hoje, o Ocidente continua a dar, com os produtos farmacêuticos contra a Aids, com as técnicas de irrigação etc. Mas ele deve receber contribuições formidáveis. O Ocidente não é o proprietário monopolista da racionalidade e da verdade. Mas, penso que, quando se tem esta ideia da latinidade que defendi, quer dizer ser portador de alguma coisa que é universal, essa mensagem universal grega, aí incluída, um universalismo que não traz a ideia da apropriação, mas uma ideia da latinidade como abertura, e, evidentemente, o objetivo da latinidade não é de controlar o planeta. O objetivo da latinidade é ser o porta-voz daqueles que no planeta são os mais humilhados e torturados. É um pouco esta a minha concepção. 
 
Há um problema do Sul, da concepção de desenvolvimento do Sul. Penso que se permanece prisioneiro desta dupla odiosa de que o norte é desenvolvido e o sul subdesenvolvido. Digo que a ideia do Sul, quando se considera do ponto de vista econômico, da técnica, ou de muitos fenômenos que podemos considerar ligados ao atraso, é negativa, o que não é correto, necessariamente. Por exemplo quando se tem o desenvolvimento de uma agricultura intensiva, industrial, com pesticidas, que vão poluir os alimentos, que destroem a fauna, os insetos, os pássaros, quando se vê na França planícies imensas onde não há um só pássaro cantando, onde não se vê nenhuma papoula, nos damos conta de que este progresso técnico nos traz problemas e percebemos que devemos caminhar em direção à agricultura biológica, para uma agricultura que não produza poluição, que talvez seja um pouco mais cara, mas vale mais a qualidade do que a quantidade. Lenin dizia menos, mas melhor. Hoje não é o caso de dizer menos para aqueles que têm fome. Não se trata de dizer menos, mas melhor, para aqueles que têm fome, mas para aqueles que não têm fome, mas consomem abusivamente, tudo o que se encontra no supermercado, doces, o que leva à obesidade. Cada vez mais, nos Estados Unidos encontramos pessoas imensas. Para essas pessoas temos que dizer: Não vão no Mac Donald (risos). Comam melhor! Portanto, é preciso deixar de ser prisioneiro desta noção de desenvolvido e subdesenvolvido. São Paulo é uma cidade desenvolvida. Mas no Brasil, encontramos regiões imensas menos desenvolvidas e, portanto, a realidade é muito mais complexa e devemos nos libertar dessa noção e ver todos os aspectos das coisas. E é por isso que, hoje, é preciso, para a agricultura, por exemplo, retornar, como estamos fazendo na Europa, à agricultura biológica, um retorno à agricultura artesanal. Qual é a virtude do vinho em muitos países, na França. É que é uma produção de artesãos, de meios de exportação. E não um vinho de produção industrial. Claro que, na Austrália, o vinho é de produção industrial, de grandes empresas, que compram uva de todos os cantos do mundo. Tudo bem, mas o vinho de qualidade... ontem a noite bebi um vinho do Rio Grande do Sul, que se chama, acho, Miola, um merlot excelente (risos. Pergunta algo para Nurimar). Miolo, desculpem! Bem, já não sei muito bem o que estava falando. Então, é preciso pensar de uma outra maneira, e não no Sul e no Norte, no desenvolvimento e no subdesenvolvimento. É isso que eu peço. Claro que estamos numa situação extremamente difícil porque, durante muito tempo, muitos acreditavam que havia dois modelos: um deles que é o que chamamos de capitalismo, de liberalismo, de neoliberalismo e que havia outro modelo que é o socialista e que tem como exemplo a União Soviética ou a China maoísta. Estes modelos acabaram por si mesmos. Na China, Vietnam. E que fique claro, há os países onde o poder do partido permanece e exclui os outros partidos, mas o modelo econômico e social se desintegrou. Infelizmente, ele foi substituído pela irrupção do que há de pior no Ocidente, como vemos na Rússia, porque quando se restabelece as liberdades econômicas, não se estabelece necessariamente a concorrência, que é uma coisa muito útil. O que se estabeleceu foi a máfia. Nós precisamos elaborar modelos. Se não tivermos alternativas, vamos ficar presos, fazendo críticas e mais críticas. Mas a crítica é estéril, não basta lançar imprecações. É preciso elaborar. Acho que a reunião de Porto Alegre foi um laboratório muito interessante, uma tentativa de elaborar, estamos apenas no começo, no estado embrionário. Há lá algumas células tronco em Porto Alegre, mas não somente, quando se reúne tanta gente, também há pequenos grupúsculos que querem se infiltrar em tudo. Mas, enfim, é um lugar de elaboração, onde se tenta elaborar ideias. Ideia de uma economia plural, de uma participação democrática na administração municipal, de um comércio justo, sem exploração. Há exemplos desse tipo na América Latina, com pessoas que suprimiram os intermediários entre os produtores de café colombianos e o mercado europeu, intermediários que chamamos coiotes – os coiotes. É uma luta muito difícil. Mas precisamos elaborar uma outra visão e é a elaboração desta outra visão que pode, efetivamente... talvez por um acaso esse laboratório aconteceu em Porto Alegre, isto é, no Sul. Escutem, acho que respondi, não sei se respondi mal. 
 
(Interrompe para conversar com a Nurimar. A plateia ri)
 
Morin: Há uma outra questão, que deixamos para uma outra ocasião, não? 
 
Nurimar: Então, gostaria de dizer que temos muitas perguntas e que elas fossem encaminhadas para o site, que torno a repetir http://edgarmorin.sescsp.org.br e que é muito importante a participação de todos vocês, pois é o site do professor Morin. 
 
Palmas. 
 
Nurimar: Queríamos agradecer a presença de todos e principalmente esta
maravilhosa conferência de Edgar Morin. Obrigada. 
 
Palmas. 
 
Cumprimentos e abraço entre Morin e Nurimar. 
 
Palmas.

 
 

fonte: Mostra Sesc de Artes Latinidades Sesc Paulista, 29 de agosto de 2003