Células-matrizes
Edgar Morin
O sociólogo e filósofo francês Edgar Morin fala de como a Latinidade, e todos os elementos que a compõem, pode culminar em um novo paradigma da civilização. A seguir trechos de sua palestra no Sesc Avenida Paulista:
"Deparamo-nos, hoje, com uma nova aventura para a palavra Latinidade. Da mesma forma que Roma conquistou de maneira bárbara o mundo antigo, a Europa conquistou a América. E sabemos que, no caso da América Latina, essa conquista se deu com uma pavorosa destruição das civilizações asteca e inca, numa subjugação maciça. Concomitante e paralelamente ao aspecto bárbaro, assistimos à introdução cio português, do espanhol e de novas Latinidades. É nessas novas Latinidades que se inicia o processo de emancipação.
Porém, assim mesmo contamos com um processo que chamo de civilizador, como o da mestiçagem, que contribui para a integração e emancipação dentro de um novo complexo nacional e civilizador. Realmente, embora o processo não esteja acabado, o exemplo mais marcante de uma nação que criou uma civilização pela mestiçagem é sem dúvida o do Brasil, exemplo de mestiçagem civilizadora e criadora.
Da mesma forma que na Europa não existe mais, desde o Renascimento, uma Latinidade, mas sim Latinidades, na América Latina também assim é, com o termo Latinidade tornando-se um componente lingiiístico e cultural das civilizações mestiças, e não sua essência. Não podemos reduzir todos estes países à simples Latinidade - nem mesmo a Argentina, que é o país mais europeu da América Latina. Em outras palavras, o termo latino deve ser considerado como um adjetivo, e não como um substantivo."
LATINIDADE PLURAL
A Latinidade é um traço que caracteriza os povos, as nações, da América Latina. E, portanto, podemos dizer que as Latinidades se enriqueceram e continuarão a se enriquecer pela mestiçagem e pelas diversidades no seio das unidades nacionais. Tendo dito isto e nessas novas condições, devemos examinar um novo aspecto, aquele próprio às Latinidades. Primeiramente, quando examinamos os mapas geográficos, percebemos que as Latinidades são do Sul: o Sul da América - e naturalmente o México, culturalmente parte integrante da América Latina, que se situa ao sul dos Estados Unidos - e a Europa do Sul: Portugal, Espanha, França, Itália e Mediterrâneo. Existe, portanto, uma característica comum: o Sul."
VALORES HUMANOS
"Hoje, e isso ocorre já faz alguns anos, não falamos mais da oposição Leste/Oeste. Após a queda do império soviético, falamos do Norte e do Sul. Dizemos: o Norte é rico, o Sul é pobre; o Norte é desenvolvido, o Sul é subdesenvolvido; o Norte é muito técnico e industrial, o Sul é principalmente rural etc. De alguma forma o desenvolvimento e a riqueza significam Norte; subdesenvolvimento e pobreza significam Sul. Porém, na realidade, as coisas são muito mais complexas.
E verdade que o Norte detém a hegemonia da técnica, da indústria e do capitalismo -que também é a hegemonia do cálculo, do economismo. Isso significa que o pensamento do Norte tende sempre mais a se concentrar no cálculo, na economia -que, por sua vez, também é cálculo, embora saibamos que o conteúdo humano não se resume meramente a isso. O sofrimento não pode ser calculado, por exemplo. Assim como também o amor não pode. Mas a tendência do Norte é reduzir tudo ao cálculo: reduzir a política à economia, ao crescimento, à renda bruta. São meras noções estatísticas formais. Em outras palavras, é a hegemonia da quantidade em detrimento da qualidade.
No entanto, o atraso econômico do Sul comporta a salvaguarda dos valores humanos não redutíveis a quantidades nem a moedas. São os valores de convívio, de hospitalidade, valores de qualidade de vida. E o Norte sente uma necessidade crescente desses valores."
O NORTE
"Hoje, na Europa, vê-se uma grande massa de veranistas alemães que acorrem para as praias do Mediterrâneo, para as ilhas gregas, para o Sul, para o sol, que buscam algo que não lhes é oferecido por sua cultura e sua civilização - por que vocês acham que a pizza difindiu-se pelo mundo inteiro, inclusive pelo Norte? Porque ela é um símbolo daquilo que o Sul pode nos trazer; alguma coisa que não pode ser encontrada no chucrute nem na salsicha.
Por outro lado, é claro que não se deve denegrir o Norte. É preciso dizer também que o Sul, durante muito tempo, manteve certas desigualdades bastante marcantes. Porém, ocorre que nessa simbiose vemos o que a Latinidade pode trazer: uma fonte de universalidade e humanismo em que ela mesma pode se transformar, acrescentando às reivindicações locais, particulares e singulares, o elemento de universalidade indispensável.
Por isso, creio que o papel da Latinidade pode ser extremamente importante, podendo mesmo integrar o que há de positivo na idéia de desenvolvimento, como, por exemplo, o acesso aos medicamentos. Vê-se hoje, ainda, as indústrias farmacêuticas impondo grandes dificuldades para reconhecer a países como o Brasil o direito de fabricar seus medicamentos genéricos. Logo, precisa mos de uma política da civilização, da simbiose da civilização, da humanidade, uma política que se dirija às necessidades mais prementes, mais fundamentais para o nosso planeta."
O TERRORISMO
"Sabemos que uma política da civilização não pode limitar-se a uma luta militar contra o terrorismo, porque a própria luta continua, desenvolve a violência e desenvolve um outro terrorismo, o terrorismo de Estado, de extrema brntalidade. A política da civilização deve lutar contra a violência, e não pela simples repressão, mas sim pela mudança das condições humilhantes e de dependência existentes no mundo atual. Mas como fazer essa regeneração da humanidade, para salvá-la da catástrofe para a qual ela se dirige? Cada ser humano - e não somente ele, mas cada coletividade humana - possui em si potências regeneradoras que são o equivalente às existentes nas células-matrizes. Elas ficam adormecidas enquanto estamos numa sociedade especializada, burocratizada, que busca exclusivamente a quantidade e o lucro. Mas, quando há uma crise, as células-matrizes podem despertar. É o que Karl Marx chamava de homem genérico. Ele se referia à capacidade de criação e de regeneração presentes no ser humano. Nós dispomos dessas capacidades. Elas estão adormecidas. E temos entre essas células-matrizes as matrizes do humanismo greco-latino. Assim, as Latinidades podem estar na vanguarda dos esforços para salvar a humanidade do desastre para o qual ela corre."
tradutor: Liliane Lea Beraha e Luciano Loprete
fonte: Revista E, ano 10 nrº4, outubro de 2003