A Humanidade no século XXI
Edgar Morin
A Universidade de São Marcos, inspirada no projeto Université de tous les savoirs, organizado pela Universidade Sorbonne Paris V, sua parceira institucional, criou em 2004 o Fórum Permanente de Cultura Contemporânea, Universo do Conhecimento,
com o objetivo de reunir intelectuais do Brasil e do exterior para discutir questões cruciais do mundo contemporâneo nas áreas de política, ciências e humanidades.
Com o tema "A Humanidade no século XXI", o ciclo de conferências da edição 2007
do Universo do Conhecimento vem discutindo a nova dimensão d o Humanismo sob uma ótica transdisciplinar. Aberto pelo sociólogo Hélio Jaguaribe, o fórum recebeu também o cientista Marcelo Gleiser e hoje se encerra com a conferência do grande pensador Edgar Morin.
Nesse momento, senhoras e senhores, anunciamos com muita satisfação a palavra da professora Luciane Miranda de Paula, chanceler da Universidade São Marcos.
Senhoras e senhores, boa noite.
A conferência de hoje encerra mais um ciclo do Fórum Universo do Conhecimento.
Já são quatro anos que procuramos trazer questões candentes que afligem a humanidade e o planeta em que vivemos, para a discussão fora dos muros da universidade. E pelo número de pessoas que comparecem a essas conferências
e que também acessam o nosso site, temos certeza que estamos cumprindo a nossa missão.
Hoje também é o dia dos Direitos Humanos. Nesta, em 1948, oi promulgada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, ela Assembleia Geral das Nações Unidas. Vivemos em um cenário, ainda, de um mundo dividido, repleto de disparidades, intolerância e violência, apesar do esforço da ONU e de todas as mulheres e homens que lutaram e lutam pela dignidade humana e pela liberdade contra a opressão e a injustiça. É justamente para lutar pela transformação deste cenário, que o Universo do Conhecimento se propõe à reflexão permanente sobre a nossa condição humana, e, para isso, há muito o que se fazer, que aprender e que conhecer.
Gostaria, primeiramente, de agradecer ao público que nos acompanha com grande entusiasmo desde o início do nosso projeto.
À equipe do Sesc, que se relacionou com grande profissionalismo e harmonia com a equipe do Universo do Conhecimento. Ao Danilo Miranda, figura admirável no cenário cultural do Brasil, que é nosso parceiro na organização CNU Brasil, conversando com as Nações Unidas e agora parceiro no Universo do Conhecimento.
Ao Claudio Szajman, Presidente do CNU Brasil, que adotou a edição 2007 do Universo do Conhecimento como uma das atividades oficiais a serem enviadas à ONU. Ao Fábio Barbosa, Presidente do Conselho de Governança do CNU, e que imprime na filosofia do Banco Real, ideais de valorização da educação e de sustentabilidade.
E ao nosso querido professor Edgar Morin, que nos honra com sua presença no Universo e nos dá a oportunidade de estarmos hoje aqui reunidos para recebê-lo com o carinho e respeito que ele merece. Muito obrigada.
Anunciamos agora a palavra do Professor Danilo Santos de Miranda, Diretor Regional
do Sesc São Paulo.
Boa noite a todos e a todas, bem-vindos a esta nossa conferência. Bem-vindo, professor Morin, é uma felicidade muito grande pra todos nós, recebê-lo mais uma vez entre nós para esse encontro com o público, para conversarmos e discutirmos algumas questões referentes ao momento atual. Obrigado a todos, a todas as presenças. Nessa noite, estamos reunidos pra ver e ouvir o pensador Edgar Morin.
Não é a primeira vez que ele está no Sesc, mas é a primeira vez que realizamos essa atividade junto com a Universidade São Marcos. Essa parceria não é apenas uma soma de esforços, trata-se de uma aproximação entre instituições com afinidades
educativas e culturais. Instituições que cultivam os ideais humanistas em suas ações
e buscam uma permanente reflexão sobre o mundo, a partir de perspectivas críticas e abertas, focadas no humano, nas suas relações com as políticas, as ciências, as artes, as humanidades.
Assim sendo, gostaríamos de agradecer a Luciane Miranda de Paula, em nome de toda a Universidade São Marcos, com quem nós tivemos a oportunidade de negociar, discutir, debater toda essa apresentação, e pela colaboração e troca de ideias
durante toda essa cuidadosa preparação deste evento.
Agradecemos ainda, todo o público aqui presente no Sesc Pinheiros. Como das outras vezes, espero que todos possam fruir do pensamento e da atitude sempre instigante do nosso mestre Edgar Morin. Edgar Morin já esteve conosco algumas vezes, como já disse, e, pela primeira vez, faz mais de 10 anos, participando de um seminário sobre a "Cultura das Metrópoles". Para o Sesc essa vinda representou
a consolidação de nossos modos de pensar a sociedade contemporânea e também de agir, para transformá-la por meio da cultura e da ação sociocultural. Desde então,
o Sesc vem mantendo uma estreita relação com Edgar Morin, um intelectual que não apenas nos tem ajudado a entender a inter-relação entre a cultura com as outras dimensões da vida, mas nos tem contaminado pelo seu espírito vivo, inquieto, instigante, em relação ao olhar para o mundo. Portanto, Morin é um humanista
no seu sentido primeiro, e, como tal, nos lembra que as pessoas precisam ser respeitadas em plenitude. Ser pleno como cidadão é garantir seus direitos e deveres civis, tanto quanto prezar pela sua qualidade de vida, pelo seu direito a sonhar, se divertir e amar. Enfim, Morin nos lembra que o cidadão é um ser humano inteiro, uma unidade de corpo, alma e espírito.
O Sesc na sua missão de democratizar a cultura e promover a qualidade de vida por meio da educação permanente, tem como pressuposto esse entendimento pleno do ser humano, bem como as complexas relações deste com a sociedade contemporânea. Essa ideia nos ajuda a agir, mas também a pensar sobre a ação, ser humilde, aceitar os erros e traçar novas rotas. Ajuda-nos ainda, a nos mantermos em estado de inquietude, como é a atitude de quem olha para o mundo e não se conforma, mas age para a sua transformação e para o desenvolvimento humano.
Portanto, uma boa conferência para todos. Muito obrigado. Muito obrigado, professor.
Nós convidamos neste momento o educador Fernando José de Almeida, Vice-Presidente da Fundação Padre Anchieta e ex-secretário da Educação da cidade de São Paulo, para a apresentação do conferencista desta noite e, posteriormente, moderar o debate.
Bom, antes de chamar o professor Edgar Morin pra compor a nossa mesa e fazer a palestra tão esperada, eu quero saudar a primeira-dama do nosso estado, Monica Serra, em nome de quem eu cumprimento todas as autoridades, ao Danilo Miranda, Luciane Miranda, em nome de quem cumprimento todos os companheiros, amigos
e intelectuais que aqui estão presentes.
O Edgar Morin, de fato, depois da apresentação do Danilo, não precisaria outra apresentação, até porque ele é um dos autores mais lidos em nosso país. Eu tenho a grata satisfação de trabalhar na Universidade Católica de São Paulo, companheira da Universidade São Marcos, onde já orientei algumas dezenas de teses e participei de mais de cem bancas, e é raro o trabalho que queira discutir a realidade brasileira do ponto de vista da educação sem contar com as contribuições do professor Morin. A importância do trabalho dele para aqueles que entram no campo da ciência da educação, na antropologia, na semiótica, é de uma natureza tão grande, tão profunda,
Marcada pela longa experiência dele que, de alguma forma, fez uma síntese das angústias, das esperanças, das utopias do século XX. E hoje, a síntese que ele consegue trazer pra nós, é própria de quem enfrentou a situação das guerras, de quem acreditou em um modelo marxista de interpretação e de vivência política do mundo, com ele rompeu, descobriu novos e fantásticos espaços da epistemologia,
e, ao mesmo tempo, foi com sua enorme capacidade de duvidar, criando, com um conjunto de intelectuais da França, Alemanha, Estados Unidos, um novo conceito de interpretação do mundo, mesmo que também ele, provisório.
Pra não falar mais do que o nosso próprio convidado, eu quero dizer que...
Dar mais alguns dados sobre ele. Tem muitas pessoas jovens aqui que estão entrando nesse mundo, que o professor Edgar Morin é Doutor honoris causa em mais de 15 universidades do mundo, tem livros publicados em mais de dez línguas,
e a bibliografia dele no Brasil é uma bibliografia extensíssima e resultante de toda
sua história de vida.
Para apresentar aqui o trabalho dele, é muito importante que se tenha em consideração o tempo que ele viveu no Brasil, o tempo que ele viveu na América Latina, o empenho dele e a dedicação para com as causas do Camboja, do Vietnã, do Japão. A visita dele à China, que ele retrata tão bem e tão alegremente, e ao mesmo tempo, tão criticamente nesse livro que está sendo lançado, o "Diário da China".
E, finalmente, o professor Morin traz pra nós uma esperança de que esse mundo, em um momento tão sem síntese, com tanta dificuldade que temos de descobrir um norte,
o professor Edgar Morin é uma esperança pra esses jovens que entram no mundo da pesquisa e para nós que estamos tentando também com ele, desenhar uma nova interpretação do mundo. Muito obrigado, e, com vocês, o professor Morin.
Boa tarde, boa noite.
Estou muito feliz de estar aqui em família, em família espiritual. Com a Luciana e o Danilo, com tantos amigos presentes, e, acredito que, nessa noite, a tarefa... Que a Universidade São Marcos confiou a mim, é uma tarefa imensa, magnífica, terrível e perigosa, que é falar da humanidade no século XXI.
O século XXI talvez seja um momento, o momento atual, de uma aventura que começou alguns milhões de anos atrás, quando, no meio dos primatas, algumas espécies ficaram de pé, e começou o desenvolvimento da mão, o desenvolvimento do cérebro. Elas começaram a provocar uma evolução, na qual apareceram, num determinado momento, diversas espécies que, retrospectivamente, devido às qualidades que possuíam, nós chamamos de espécie Homo. Homo era uma pequena espécie de humanidade frágil.
Havia existido o Homo erectus, que apareceu na Ásia, talvez 300 mil nos atrás. E talvez seja através desta espécie que nossa linguagem surgiu. O que aconteceu
é que, em seguida, houve ao menos duas espécies que são o Homo Neandertal e o Homo sapiens, chamada, Sapiens, nossa espécie.
Ou seja...
Primeiro, podemos ver que a humanidade não nasceu somente uma vez. Ela renasceu muitas vezes e se transforma, do primeiro humano ao Homo erectus,
do Homo erectus ao Homo sapiens, e depois veremos outras transformações.
Mas o que eu quero dizer, para começar, é que nossa espécie, Homo sapiens, tendo origem na África ou talvez também na Ásia, ela se difundiu pela terra, pelo planeta. Essa foi a primeira planetarização, ou, se preferirem, globalização. Eles foram não somente para todos os continentes, mas também para as ilhas da Oceania, e, ao mesmo tempo, esses seres humanos tiveram um tipo de sociedade que, com suas
diferenças específicas, tinham em comum serem sociedades pouco numerosas,
sociedades formadas por caçadores e coletores, sociedades que veneravam um ancestral comum, sociedades sem Estado, sem hierarquia, sem cidades, sem agricultura. Isso aconteceu em alguns lugares do globo, na Ásia menor, na bacia do rio Indo, na China, e mesmo na América, no México, com a grande civilização Asteca,
no Peru, onde houve a grande civilização Inca.
Surgiram as sociedades históricas, saímos da Pré-História e entramos na História.
O que isso quer dizer?
As sociedades históricas são sociedades com agricultura, aldeias, cidades, Estado,
com grandes religiões, hierarquia, classes sociais, cultura, arte, mas também com barbárie, e não somente a barbárie de guerra.
Porque o que é a história que começa há 8 ou 6 mil anos?
É uma história de guerra ininterrupta, na qual morrem os impérios, cidades, onde houve escravidão, destruições, mas também à magníficas obras de arte, o pensamento dos filósofos. É sempre o lado ambivalente que marca a história humana.
E no tempo que podemos chamar de Moderno, o que surgiu além da cidade e do império? As nações que possuíam um Estado, que se difundiram pelo mundo, a partir de um primeiro tipo de nação, que se formou em Portugal, na Espanha, na França, na Inglaterra, e, após a descolonização, a nação se tornou um fenômeno universal. Então, talvez tenhamos um novo nascimento da humanidade, através das sociedades históricas, um novo nascimento que inclui, de uma forma extremamente conectada, a barbárie e a civilização, pois a barbárie não é somente a guerra, mas também a escravidão, a dominação, a proletarização, a injustiça, a crueldade interior. Walter Benjamin dizia, com muita razão, que não há nenhum sinal de civilização que não seja, ao mesmo tempo, um sinal de barbárie. Mas, nesse processo do mundo moderno, que, na verdade, se inicia no fim no século XV ou XVI, principalmente com a conquista das Américas por pequenos países da Europa, começando por Espanha e Portugal, que, através desse processo, dá início a uma segunda planetarização.
A primeira foi a dispersão da espécie humana, e a segunda é a comunicação, as interações entre diferentes pontos do globo. Esse processo foi feito de uma forma extremamente cruel e longa, através da dominação, através da colonização. Mas também, pela interdependência, pois o filósofo Hegel dizia, com razão, que o mestre depende do trabalho do escravo, e, de alguma forma, os países dominante, que primeiramente eram os países europeus, dependiam das riquezas, do trabalho das colônias que eles exploravam, primeiro no continente americano, em seguida, na África, fazendo com que os próprios oprimidos, os escravos pudessem se emancipar.
Eu voltarei a esse processo, tão mais interessante, porque se a Europa foi o centro
da dominação mais longa e dura sobre o mundo, foi nessa mesma Europa, onde se criaram pequenos focos de ideias humanistas, ideias de liberdade, que, finalmente,
foram adotadas pelos colonizados para se libertarem.
Vimos na primeira fase da formação dos Estados da América Latina, que no início eram colônias europeias, que pegaram a ideia de nação para se opor à nação à qual eram subordinadas. É preciso também dizer que nesse grande processo múltiplo de interdependência, a partir de 1989/1990, começou o que podemos chamar de etapa da globalização.
O que é essa etapa da globalização?
Quer dizer que o mercado tornou-se realmente mundial, com a expansão da economia liberal e do capitalismo nas imensas regiões onde eram proibidos, a ex-União Soviética, a China, o Vietnã, os países que eram socialistas. E esse processo de globalização do mercado está, ao mesmo tempo, ligado ao fato que, no mesmo momento, há um desenvolvimento de todo tipo de comunicação e imediata, que permitia todos os contatos, por telefone, fax, internet, de um lado a outro do mundo. Nós podemos ver que essa globalização é um fenômeno que não podemos considerar de forma simples. O processo dominante, como eu disse, é um processo tecnológico e econômico. Mas, ao mesmo tempo, temos, a partir dessa época, uma globalização mais modesta, mais restrita, das ideias de democracia, dos direitos do homem e dos direitos da mulher, e, hoje nós festejamos mundialmente os Direitos Humanos. Então, é um sinal desse movimento que, infelizmente, não é tão forte quanto desejaríamos. E assim foi criada uma cultura mundial.
Karl Marx, no século XIX, já dizia que o capitalismo permitiria a formação de uma cultura mundial. Se pegarmos a literatura, hoje, nós, europeus, que conhecíamos só literatura francesa, inglesa, alemã, russa, nós podemos conhecer a literatura do mundo inteiro, chinesa, japonesa, latino-americana e vice-versa. Mas essa cultura mundial também é uma cultura mediática, uma cultura onde temos um processo de homogeneização, que traz conformismo, estandardização, mas vemos também encontros, encontros culturais, que criam a miscigenação, e as miscigenações são também criadoras. Então, temos esses processos que não podemos ver de forma simplificada.
O que também temos nesse processo e que é muito visível a partir do início dos anos 90, é que essa globalização é, ao mesmo tempo, um processo de ocidentalização, ou seja, que os padrões, as concepções, os estilos de vida, típicos da civilização ocidental europeia, se difundiram pelo mundo. Mas essa ocidentalização que ela mesma inclui e produz uma unificação tecnológica e econômica, provoca também resistências. Resistências tanto maiores, quanto mais se tratar de civilizações antigas, de religiões diferentes das religiões ocidentais, e, nesse momento, a tendência a preservar as raízes identitárias provoca fechamentos
e provoca até divisões. Não foi só a ex-União Soviética que se dividiu em nações,
a ex-Iugoslávia se dividiu, a Checoslováquia se dividiu, e temos esse fenômeno curioso, que é a balcanização, a divisão do mundo que, ao mesmo tempo, é inseparável
da unificação tecnológica e econômica. No mais, quando vemos um grande país, como o Irã, que atualmente tenta manter uma identidade religiosa e étnica profunda, esse mesmo país, por outro lado, desenvolve todas as técnicas do ocidente, os aviões, técnicas militares, energia nuclear etc. Então, temos esse processo duplo, quer dizer, existe, ao mesmo tempo, a unificação do mundo, provocando novos antagonismos, que são antagonismos entre estados, entre ideologias, entre religiões, e chegamos a esse paradoxo atual, onde o mundo é por um lado um só, quer dizer, unificado, e, ao mesmo tempo, dividido, quebrado em partes, em estado caótico.
Essa é a ambivalência fundamental do processo histórico que nos importa. Ou seja, essa globalização é, ao mesmo tempo, uma e múltipla, de modo inseparável, ela inclui dentro dela processos antagonistas, como o processo da democratização, das leis, e processos puramente econômicos, do lucro, ou seja, a dominação das grandes potências. Estamos no centro desse processo. No entanto, no coração desse processo criou-se no planeta uma Comunidade de Destino.
Por quê? Porque todas as partes do mundo estão a partir de então em relação inseparável. Todos os seres humanos, todas as comunidades humanas vivem as mesmas ameaças coletivas, o mesmo problema de vida e de morte fundamentais.
A disseminação de armas de destruição em massa, que, se em algum momento um conflito se inicia, poderia eliminar a vida humana. A ameaça ecológica, ou seja, a degradação da biosfera que nos envolve, da qual fazemos parte, mas que, ao mesmo tempo, temos tendência a degradar. Essa ameaça, com o aquecimento global, com a poluição, isso também pode provocar uma grave degradação da vida social e humana.
É uma economia que se difundiu pelo mundo, mas que não conhece uma regulamentação verídica e que pode não somente produzir desordens, que produz ilhas de prosperidade, mas, ao mesmo tempo, zonas de miséria maiores do que antes, e que, por não ser regulamentada, pode criar novas e gigantescas crises econômicas. Então, todos nós vivemos nessas condições, e são essas condições que eu chamo de Comunidade de Destino.
Mas, nessas mesmas condições, o que se criou? Criou-se uma infraestrutura de um tipo de sociedade que não existia ainda, mas que podemos chamar de uma Sociedade Mundo. Uma sociedade na escala do planeta. E por que infraestrutura
de uma Sociedade Mundo? Porque, para que haja uma sociedade, é preciso um território com comunicações. Hoje, o planeta é um território onde as comunicações que existem são mais intensas, mais numerosas, mais fáceis, do que jamais foram dentro de uma nação. Para que haja uma sociedade, é preciso uma economia própria.
A economia é mundializada, no entanto, como havia dito, ela não é regulamentada. Uma nação, um estado pode controlar e regulamentar sua economia. Mas nessa economia que se difunde em escala mundial, os estados nacionais são cada vez mais desprovidos da possibilidade de a controlar, e não há nenhuma instância ao nível planetário que a possa controlar.
Então, temos mais um paradoxo, ou seja, que esse processo econômico e tecnológico, que produz a infraestrutura de uma Sociedade Mundo, é o mesmo processo que impede a Sociedade Mundo de existir, de criar suas próprias estruturas,
porque para que haja uma sociedade, é preciso que haja um poder legítimo, é preciso haver uma consciência comum.
Sabem o que é muito notável em todas as sociedades humanas?
Os membros das sociedades arcaicas da pré-história se sentiam ligados fraternalmente, porque todos descendiam de um ancestral comum, mitológico, mas concebido como comum.
A proposta das nações é desenvolver um sentimento coletivo que nós chamamos de patriotismo. E o que é o patriotismo? É quando nos sentimos dependentes de uma entidade que, ao mesmo tempo, é maternal e paternal. Assim, a palavra "pátria"
começa no masculino com "pai", paterno, e termina no feminino, com "mãe", e falamos a "Pátria Mãe".
Ao mesmo tempo, nós cremos que há uma autoridade justa que é aquela, paternal,
do Estado. É isso que permitiria que a Comunidade de Destino se realizasse em uma sociedade de novo tipo. E quando eu falo dessa consciência que eu chamei de Terra Pátria, não me refiro a uma exclusão ou a uma deterioração das nações existentes, pelo contrário, essas devem continuar, devem prosperar, elas têm seus setores, suas culturas, suas vidas. Claro que não deveria mais existir um poder soberano absoluto,
que permitiria iniciar guerras ou recusar meios de proteção necessários a toda a humanidade.
Então, assim sendo, vamos falar do Humanismo. O Humanismo, repetindo, uma questão sempre atual, ainda mais porque estamos no dia dos Direitos do Homem.
O Humanismo tem um significado inicial. É a ideia, ou a fórmula de Terêncio, o poeta e dramaturgo romano da antiguidade, que dizia: "Sou um homem e nada do que é humano me é estranho." É a ideia de que os humanos de nações, de línguas, de raças diferentes das nossas, têm alguma coisa em comum conosco mesmo tendo suas diferenças, e devemos agir em relação a eles com o mesmo respeito, com a mesma consideração que temos em relação a nós mesmos, nas nossas próprias condições de nação ou de raça. O Humanismo é o reconhecimento da universalidade
do valor humano, não importando sua origem. E essa ideia surgiu para o ocidente no pensamento grego. Ela surgiu também na palavra em latim. Ela vai se difundir nas religiões universalistas que se dirigem a todos os seres humanos, como o budismo, o cristianismo e como o islamismo, que, mesmo cada um tendo sua origem étnica, se espalharam pelo mundo, como o islã de origem árabe, e que agora é praticado na Indonésia e no Paquistão, em um mundo indiano.
Então, temos essa ideia universalista, mas que potencialmente inclui o Humanismo, em uma base laica, laicizada, que, a partir, principalmente, do Renascimento, na Europa ocidental, então a partir dos séculos XV, XVI surgiu um Humanismo ativo,
ou seja, manifestando algo importante, em reação ao fechamento da nossa própria civilização. Tenho dois exemplos. O primeiro, sobre Bartolomeu de las Casas, o padre que defendeu frente à Igreja Católica, que os indígenas da América eram seres humanos como os outros, que eles tinham uma alma, mesmo se Cristo não viveu na América. Montaigne diz que chamamos de bárbaros as pessoas de outras civilizações. Ou seja, essa ideia de que outras culturas também têm o seu valor. E Montaigne, no seu capítulo sobre os canibais nos seus “Ensaios”, fala desse indígena da América conquistada que foi chamado de bárbaro, porque eles comiam os inimigos mortos. E Montaigne diz que nós somos ainda mais bárbaros, porque eles, que comem inimigos mortos, não fazem mal a eles, sendo que nós os torturamos, nós os destruímos...
E, vejam, é essa maravilhosa ideia do Humanismo que ainda é muito restrita. São algumas pessoas, alguns indivíduos, mas isso vai se espalhar, vai se desenvolver. Temos o pensador francês do século XVIII que se chama Montesquieu, e que diz que, se uma coisa é favorável à minha pátria, mas desfavorável à humanidade, eu não farei o que é favorável à minha pátria. E se for favorável à humanidade e desfavorável à minha pátria, eu farei essa escolha. Tudo isso surgiu no Século das Luzes, nas ideias do fim do século XVIII, e elas são retomadas no Romantismo e no Romantismo tardio de Victor Hugo. Victor Hugo dizia: "Queremos fazer os Estados Unidos da Europa, como um prelúdio aos Estados Unidos do mundo”. Visão profética, mas que mostra de certa forma como o Humanismo se desenvolve, simplifica, e vai também tomar forma nas diversas Internacionais que vão ser criadas a partir do século XIX,
e que tentam criar uma ligação entre, ao menos, os trabalhadores de todas as diversas nações.
Então, essa foi a primeira face do Humanismo, mas não podemos esconder que houve um equívoco na palavra "Humanismo" e a existência do que podemos chamar de segunda face. Qual é...? Qual é essa segunda face?
Essa segunda face é a ideia de que o homem deve ser o mestre e o possessor da natureza, ele deve conquistar o universo. E essa ideia é expressa por Descartes, que disse justamente que a ciência deve fazer de nós o mestre e possessor da natureza.
Ela foi repetida por Buffon, repetida por Karl Marx...
É a ideia que, quase até o fim do século XX, anima todo o curso da nossa civilização ocidental planetarizada. "Nós devemos conquistar a natureza, o mundo, a Terra." Hoje, essa ideia entrou em colapso, e devemos rejeitá-la com o maior vigor, por quê?
Porque, de um lado, nós descobrimos que a vontade de possuir e manipular o mundo terrestre, ou seja, os seres vivos conduziu a essa degradação ecológica da biosfera, e, finalmente, quanto mais conquistamos, mais riscos temos de nos destruir. Nós devemos rever totalmente nossa relação com a natureza, não ser mestres e manipuladores da natureza, mas copilotos da vida, copilotos do planeta Terra.
De outro lado, quase no mesmo momento, nos anos 1960, pareceu evidente que não somente o Sol não era mais o centro do mundo, mas que a galáxia da qual ele faz parte, a Via Láctea, é uma pequena galáxia mesmo tendo milhares de estrelas nela,
que entre as galáxias existem outras ainda maiores, como a Galáxia Andrômeda, que, às vezes, podemos ver em noites claras mesmo estando a 2 milhões de anos luz. Que o Universo é gigantesco, sem um centro, nós somos excêntricos nós somos...
Então, nesse momento, como pensar que a humanidade possa conquistar o Universo?
Talvez, no futuro, se a Terra se tornar impossível de ser habitada, sem Sol, talvez possamos ir para outro planeta, mas não devemos nos entregar à ambição. É preciso reconhecer com modéstia nosso destino, mas isso tem consequências éticas, antropológicas e políticas consideráveis. Ou seja, devemos cuidar do nosso jardim.
Não como o Cândido de Voltaire que dizia: "Vou cuidar do meu jardim" quer dizer "vou cuidar da minha vidinha". Nós devemos cultivar nosso jardim coletivo, a Terra. Devemos humanizá-la, devemos fazer da Terra, como diz Gorbachev, a nossa casa em comum. É isso que aparece hoje como um aspecto fundamental do Humanismo.
Hoje, podemos dizer que o Humanismo, que era algo ainda abstrato, há um século,
porque hoje se virmos os chineses, os chineses são humanos como eu, era isso o que Voltaire dizia, que os chineses têm as mesmas paixões, os mesmos desejos, as mesmas ambições que nós. Ele não via as diferenças, mas havia essa verdade também. Não podíamos de jeito nenhum intervir ou agir por eles, pelos chineses.
Era um outro universo. Mas, nos dias de hoje, tudo está ligado. Nós podemos, no mínimo, dizer ao poder chinês para respeitar os direitos humanos e as liberdades.
Podemos nos considerar presentes, concretamente presentes quando, por exemplo,
houve o tsunami, o Humanismo nos leva a agir de maneira solidária, a tentar enviar ajuda, as ONGs a ajudarem os que sofreram com a catástrofe. Então, hoje vemos o Humanismo tomando uma forma concreta através de várias ONGs, como Médicos do Mundo, Médicos Sem Fronteiras, que cuidam dos doentes, dos que sofrem, não importando sua religião, sua etnia, no mundo inteiro. Então, temos essas situações, mas obstáculos também. Os obstáculos são as anti-nações, com a soberania absoluta, tornando impossível o exercício desse Humanismo. Não podemos conseguir que Estados tiranos parem com sua tirania, e, quando há um pedido, como para a Birmânia, ele continua impotente. Então, temos o grande problema comum de ultrapassar a soberania absoluta dos Estados nacionais, claro, sempre os conservando em seus próprios níveis.
Como fazer isso, como chegar a uma nova consciência, a uma verdadeira Comunidade de Destino, vivida pela humanidade?
Aqui, somos obrigados a nos perguntar sobre os processos de transformação que começaram no século XX e que se desenvolvem hoje no século XXI.
Primeiro de tudo, no que concerne as ciências e a tecnologia, que vocês sabem, estão estreitamente associadas, hoje em dia, ao ponto que muitos pensadores falam em "Tecnociência", onde a ciência está a serviço da tecnologia, talvez até mais do que a tecnologia à serviço da ciência. Então, do ponto de vista das "Tecnociências", há um fenômeno que emergiu no meio do século passado. É uma novidade considerável no mundo das máquinas, das máquinas artificiais que nossa civilização criou cada vez mais. Mas o que vemos com a Teoria da Informação e a Cibernética, o que vemos são máquinas cognitivas, dotadas de qualidades intelectuais que acreditávamos ser somente humanas. O raciocínio, a correção de erros, a heurística, quer dizer a pesquisa de soluções.
E isso tem um lado, eu diria, filosófico muito grande. É que entre o mundo da subjetividade humana, o mundo onde dizemos "eu", que é propriamente humano,
e o mundo dos objetos puros, desprovidos de qualidades humanas, qualidades vivas
temos um campo intermediário, aquele das máquinas onde elas vão cada vez mais desenvolvendo suas qualidades intelectuais. Até onde? Não sabemos, mas o que sabemos, ou o que podemos supor, e é o que eu suponho, é que alguma coisa permanece irredutível, é aquilo que nos permite dizer "eu", ou seja, o coração da subjetividade. E o coração da subjetividade é uma experiência que vem da vida, da evolução da vida, os primeiros seres celulares vivos possuem essa qualidade de poder, de dever, ser egocêntricos, ou seja, de primeiro querer se alimentar, se defender, continuar vivos.
E nós, seres humanos, temos na nossa subjetividade essa lógica dupla. Uma lógica egocêntrica, que consiste em ter em primeiro lugar nossos interesses e que nos leva ao egoísmo, mas também uma lógica que nos coloca em um "nós" coletivo, com nossos entes queridos, nossa família, com a nossa pátria, nosso partido etc. Nós temos esses dois lados, e isso é o que desenvolvemos por sermos seres vivos, pensantes. E, com nossa originalidade de vida, não acredito que as máquinas poderão adquirir esse "eu". Eu disse "não acredito", mas não tenho certeza absoluta.
Porém há um problema que se coloca de uma forma interessante, que é: somos nós
que domesticamos as máquinas? E quando digo máquinas, são as novas máquinas cognitivas, que vão desautomatizar a humanidade. Já as máquinas artificiais de algum modo, faziam tarefas pesadas que liberavam os seres humanos de trabalhos mais penosos. Um tipo dessas máquinas é o computador, que nos permite fazer tarefas intelectuais maçantes, que vão nos liberar para ter muito mais liberdade criativa. Então, é verdade que temos promessas maravilhosas, mas, ao mesmo tempo, sabemos pela experiência das máquinas artificiais que criamos, que a lógica dessas máquinas artificiais, ou seja, uma lógica determinista, uma lógica do cálculo, da hiperespecialização, da cronometrização, essa lógica se impõe cada vez mais sobre nós humanos e sobre a sociedade. Nós somos condenados ao que na França
falamos "métro-boulot-dodo", fazer as mesmas tarefas repetitivas, nos fechar em especializações. Claro que lutamos e resistimos contra isso e, talvez, vamos conseguir nos libertar disso.
Mas, não temos certeza que as novas gerações de máquinas vão nos libertar totalmente. É possível também que aconteça o fenômeno inverso, como indicam algumas ficções científicas. Além disso, também temos o desconhecido da nanotecnologia. Não sabemos até onde podemos controlar essa pequena entidade organizadora que vamos desencadear contra nós, ou não. Então, percebemos, que quando vemos processos tecnológicos científicos atuais, vemos promessas incríveis
e vemos ameaças aterrorizantes. Essa pode ser uma das características dos processos evolutivos, ao mesmo tempo uma promessa, e ao mesmo tempo uma ameaça.
Vocês verão isso considerando as conquistas da biologia que são inseparáveis das novas conquistas da medicina. Podemos considerar o que chamamos de medicina preditiva, que, pelo conhecimento da hereditariedade genética, pode determinar a que tipos de doença são mais ou menos sensíveis, tais ou tais categorias de indivíduos,
em função de suas características hereditárias. Acreditamos que será uma medicina
não mais somente curativa, que cuida, mas preventiva, que impedirá certos males de se desenvolverem. É uma perspectiva benéfica, evidentemente. Mas temos outras perspectivas, como a prolongação da vida humana que acontece pelo desenvolvimento da higiene, da saúde e também pelo progresso da medicina.
Mas temos um novo elemento, que apareceu justamente no século XXI. Foi a descoberta de que o organismo adulto possui dentro dele células tronco. O que são essas células tronco? São as células do embrião que são capazes de produzir todas as células diferentes: do fígado, do cérebro, do intestino, da pele etc. São células que chamamos de totipotentes que têm o poder de criar os diferentes órgãos e tecidos que existem em nós, mas elas estão dormindo. Elas também estão no cérebro, na medula óssea, mas elas dormem. Com certeza, alguns cientistas pensam já que podíamos utilizar as células dos embriões e transportar para os seres vivos. Agora imaginem o que poderia acontecer. Já fizemos esses testes com ratos, para regenerar o coração dos ratos que tinham lesões cardíacas. Imaginem o que poderiam fazer para os seres humanos se, a partir das células tronco de cada um, ou seja, tendo a mesma individualidade, sendo capazes de regenerar o coração, regenerar o cérebro, regenerar os órgãos. Provocando não uma eliminação da morte, porque podemos ser vítimas de algum acidente, mas criar novas condições de prolongação de uma vida ativa, que não inclui o envelhecimento fisiológico, ou seja, todas as incapacidades
do envelhecimento atual.
Eu me lembro que quando escrevi meu livro "O Homem e a Morte", que foi lançado
há mais de meio século, em 1951, no último capítulo, eu pensava que o progresso das ciências biológicas permitiria, efetivamente, prolongar a vida humana de um jeito indefinido, não infinito, mas indefinidamente. E, depois, quando eu fiz novas edições desse livro, eu corrigi isso, dizendo: "Não levei em conta um processo de degradação irreversível, que é o segundo princípio da termodinâmica. Não levei isso em conta e acredito que foi uma utopia total."
Qual não foi minha surpresa e alegria, quando um grande biólogo francês me disse: "Você tinha razão na primeira edição e você fez mal em corrigir nas edições seguintes. É isso mesmo que está acontecendo."
Então, isso é uma perspectiva tão mais importante quanto a desaceleração, podemos dizer, do desenvolvimento humano que cresce cada vez mais. Sabem que é uma característica própria do humano em relação ao animal, que o tempo de seu amadurecimento é muito longo, sua infância, sua adolescência, e, quanto mais se avança na civilização, mais existe um retardo. Hoje em dia, por exemplo, nas universidades da França, ainda somos adolescentes com 27 ou 28 anos, porque ainda estamos em uma fase de estudantes, de não autonomia, de um tipo de vida adolescente, e é só depois disso que encontramos uma profissão, que nos casamos.
Não é somente nesse plano, mas é certo que no nosso mundo é difícil a aquisição
da experiência ela se dá em ritmo muito lento. É só a partir dos 40 ou 50 anos,
às vezes 60 anos, que começamos a compreender quem nós somos de verdade, que é quando começamos a compreender melhor os outros, que adquirimos o que chamamos de experiência. E, certamente, se houvesse a possibilidade de ser espiritualmente, intelectualmente e fisicamente ativos, em um período que durasse 150 anos, teríamos um amadurecimento muito maior do ser humano. Podemos dizer que isso é uma promessa, mas ao mesmo tempo que temos a promessa, temos também a ameaça. Quais são essas ameaças?
São as possibilidades de manipulação da vida, de genes, das células, a capacidade não só de clonagem, mas de se fazer monstros a partir de duas informações genéticas diferentes, monstros que nunca existiram. A possibilidade com o desenvolvimento do conhecimento de mecanismos cerebrais, de manipular e controlar o cérebro, ou seja, o progresso da neurociência, é, ao mesmo tempo, uma grande ameaça e uma grande promessa. Podemos imaginar um novo totalitarismo, muito mais aperfeiçoado que o antigo, pois o último se apoiava unicamente na propaganda e na polícia, mas dessa vez poderíamos ter não somente o controle informativo de cada pessoa por satélite ou pelo controle do que ele faz no telefone celular, mas também o controle cerebral.
Mais uma vez, vocês veem que temos uma transformação acontecendo, mas rica em promessas e ameaças ao mesmo tempo. Vamos falar também, rapidamente, pois meu tempo é limitado... Estou controlando pelo meu relógio.
Temos, digamos, novos relacionamentos com o imaginário. O imaginário sempre fez parte da realidade humana, em particular através dos mitos, depois dos contos, lendas, e depois se desenvolveu no mundo moderno graças ao cinema e à televisão etc... Mas podemos dizer que a realidade moderna cria uma espécie de consolidação do imaginário, nessa região da realidade virtual, o que chamam de “Second Life”.
“Second Life” é um universo vizinho ao nosso, parecido com o nosso, e onde nós podemos interferir através de um avatar. O que chamamos de avatar é um personagem que nos representa, mas podemos dar ao nosso avatar, ao nosso alter ego, certas características, por exemplo, eu escolho como avatar uma linda jovem
que se chama Edgarine Moreno. Então, eu posso viver aventuras através dela.
Primeiro, voar. É uma coisa que não posso fazer, voar sem asas. Ter encontros, fazer amigos, muitas coisas. Temos lá um novo universo imaginário que se abre, talvez onde poderemos ficar intoxicados, eu não posso dizer. Ou seja, rico em promessas,
rico em perigos.
E entre os perigos do mundo virtual...Vocês assistiram aquele filme, o primeiro filme, são três no total, o primeiro é ótimo, "Matrix". O primeiro "Matrix", no qual vemos um computador central enorme, que tenta escravizar totalmente os humanos, e uma minoria resistente, que também graças ao universo virtual tenta resistir à Matrix, e vocês sabem que o fim do filme é muito evasivo, não sabemos. Eles não foram exterminados e também não ganharam, não sabemos o que vai acontecer. Então, sempre temos a mesma coisa, estamos vivendo nesse momento processos extraordinários, que são tanto ricos em promessas, quanto ricos em ameaças, e são, ao mesmo tempo, ricos de promessas e de ameaças. Não é de um lado ameaças
e de outro promessas, é o processo que desenvolve os dois ao mesmo tempo.
Então, assim temos, nesse universo, um estado de caos. É um universo onde a humanidade ainda é incapaz de se tornar humanidade. É um universo onde temos uma crise, a crise planetária, com todas as contradições que eu falei para vocês,
e os perigos que também falei. Com a gestação de novas formas. Com as transformações que começaram e que podem mudar tudo nas nossas vidas e na organização da nossa vida social.
Então... O que será disso tudo? Se considerarmos as probabilidades... As probabilidades são catastróficas, por quê? Porque se pensarmos em uma nave espacial Terra, é uma nave espacial impulsionada por quatro motores, sendo todos os quatro incontroláveis. O motor Ciência, que, como já disse, produz o melhor e, ao mesmo tempo, o que é mais perigoso. que é totalmente ambivalente. Os motores Economia e Lucro. Esses motores não têm nenhum controle, então, nos conduzem para todas as degradações e perigos dos quais já falei para vocês. Desse modo, aqui estão as probabilidades. Podemos dizer uma coisa. É que, não somente a catástrofe
se ela parece cada vez mais ameaçadora, vai permitir termos consciência e tomarmos atitudes de lutar contra ela, como. também podemos dizer que o próprio processo de natureza catastrófica pode produzir, como reação, a possibilidade de salvação. Como?
Bom, quando um sistema não pode cuidar de seus problemas vitais, então, o que acontece? Ou esse sistema se desintegra e aparece uma regressão formidável, ou ele é capaz de suscitar uma transformação, um novo sistema mais rico, que seja uma metamorfose. A metamorfose é o mesmo que se torna outro. Igual quando temos uma lagarta que entra dentro de um casulo e começa a se autodestruir para se autoconstruir, como um ser que é o mesmo, porém totalmente diferente, com novas qualidades, a borboleta que tem asas e voa. Então, o processo de metamorfose que existe na natureza, o processo de metamorfose que eu acabei de falar para vocês, falando como as sociedades pré-históricas, arcaicas, pequenas sociedades se reagruparam, se integraram para criar grandes sociedades. Essas sociedades históricas são verdadeiras metamorfoses sociais.
Será que não podemos chegar em uma metamorfose, eu diria, meta-histórica? Por que eu falo meta-histórica? Porque a História, ou seja, a história das sociedades nascidas há 8 mil anos, com a barbárie dessas civilizações, com as guerras, e justamente aquela história na qual as guerras se tornaram cada vez mais mortais,
com o desenvolvimento das armas a partir do fim do século XIX, duas guerras mundiais do século XX e as ameaças atuais com as armas não somente nucleares, tóxicas, químicas, bactericidas, entre outras. Tal História, chega ao seu limite, não ao seu limite, como dizia Fukuyama, que não temos mais nada para inventar chegamos a um estado supremo e ideal da democracia moderna e do liberalismo econômico. Não.
Chegamos ao limite porque vamos explodir. E, ao contrário, uma nova criação é possível. Uma metamorfose. O contrário do que pensa Fukuyama. Então, foi...
Um filósofo que o nome me fugiu nesse momento, mas que dizia que a humanidade não está condenada a ficar o tempo todo na História, temos 8 mil anos de História, não mais que isso. Tivemos 100 mil anos de Pré-História e depois temos a Pós-História, e esse é o problema da metamorfose. Claro que não podemos conceber
antes da metamorfose, não podemos saber as novas formas que virão. O que sabemos é que devemos sair, podemos sair da História, podemos chegar a essa comunidade da Terra Pátria. Se a transformação for positiva, poderíamos provocar uma simbiose de culturas e de civilizações, onde as culturas compartilhariam o que têm de melhor, pois acreditávamos, erradamente, que só existiam verdades no mundo ocidental, sendo que hoje nós entendemos que existe sabedoria, arte de viver, conhecimento, em todas as culturas, também nas grandes culturas asiáticas. E também nas pequenas culturas, como aquelas que existem na Amazônia.
Então, uma simbiose, uma nova vida é possível, com uma harmonia talvez não total,
mas sabem que a harmonia é uma das inspirações fundamentais da humanidade.
Quanto mais liberdade, mais comunidade. Podemos talvez ter essa sorte, mas também temos a possibilidade da metamorfose produzir o pior, com novas formas de barbárie, com novas ambivalências, então nós estamos na incerteza. Estamos na incerteza do que vai acontecer, e com a atualidade de uma frase de Ortega y Gasset.
Ortega y Gasset dizia: "Não sabemos o que está acontecendo e isso é o que está acontecendo." Nossa ignorância é um elemento fundamental daquilo que acontece.
Eu diria que essa é a verdade dos dias de hoje, não somente porque a consciência
está sempre atrasada sobre os acontecimentos, mas também porque nossos conhecimentos...
Ainda não temos uma sociedade do conhecimento, ou seja, que permite ligar os conhecimentos. Nossos conhecimentos são divididos, são separados, compartimentados. Temos conhecimentos parciais, que nos impedem de apreender
os problemas fundamentais e globais, que hoje são nossos problemas vitais. E esses conhecimentos, que trazem uma luz múltipla em todas as áreas: demográfica, econômica, religiosa, histórica, trazem uma grande cegueira sobre o essencial e o fundamental.
Heidegger já dizia que nunca tivemos tanto conhecimento em relação ao homem, e nunca soubemos tão pouco sobre o que é ser homem. Nunca tivemos tanto conhecimento, sobre a globalização e a mundialização. E nunca soubemos tão pouco, nunca tivemos ideias tão simplistas. Alguns querem só saber da importância dos fenômenos demográficos, outros só da economia, outros só da religião etc. É a cegueira, a ignorância que vêm do conhecimento, e sabem que os riscos de erro e cegueira são riscos mortais tanto para os animais quanto para os humanos.
É por isso que precisamos de uma reforma do conhecimento. Essa reforma é necessária, mesmo que seja insuficiente para cuidar de todos os problemas. Mas se não tivermos essa reforma do conhecimento, um conhecimento capaz de apreender
a complexidade do universo e a complexidade dos processos, acredito que estaremos perdidos. Então, já estou chegando à minha conclusão, eu fui um pouco demorado,
me desculpem.
Cheguei à seguinte conclusão:
Eu diria que a área do planeta sempre foi uma coisa ambivalente e polivalente,
e mais ainda hoje em dia, tem essa nova ambivalência e polivalência, visto que as promessas e ameaças são inseparáveis, e onde as razões de desespero são inseparáveis das razões de esperar, já que acredito que a salvação só poderá vir
da aproximação da catástrofe, talvez até mesmo no início da catástrofe, ou seja, não podemos mais separar a esperança da desesperança.
Então, vou terminar com esse pensamento: existe um princípio de esperança. Eu vou responder o que acredito ser esse princípio. O primeiro princípio de esperança está
nas possibilidades criativas que estão dentro do ser humano, como indivíduo, bem como nas sociedades humanas, e que já se manifestaram no passado, mas não nas novas condições atualmente. Quer dizer que as sociedades, em seu estado normal,
são fenômenos esclerosados, endurecidos, onde os espíritos estão domesticados
e as capacidades criativas se manifestam somente nos artistas, nos criadores, nos músicos, poetas, inventores, pensadores, porém essa capacidade criativa está em cada um, mas ela está adormecida, inibida. É como as células tronco das quais falei agora há pouco ,elas estão inibidas, elas dormem, a criatividade dorme.
Nosso escritor Antoine de Saint-Exupéry, no seu livro "Terre des Hommes", ele está em um trem que conduz crianças refugiadas da guerra da Espanha, da Catalunha às minas do Norte da França, onde essas crianças vão trabalhar. Ele vê os rostos inocentes dessas crianças e diz: "Quantos pequenos Mozarts assassinados!", ou seja, assassinamos sem parar, no ovo, as possibilidades criativas. Mas é nos períodos de crise que as sociedades podem despertar as possibilidades criativas, e, ao mesmo tempo, as possibilidades destrutivas, porque criação e destruição são coisas que aparecem simultaneamente, sendo que a criação de um novo mundo leva à autodestruição do mundo antigo.
Então, é nas épocas de crise, e, como estamos em uma crise planetária, então podemos pensar que as possibilidades criativas, as possibilidades de geração, de reprodução, podem aparecer. Por outro lado, estou convencido de que estamos ainda
na pré-história do espírito humano. Einstein dizia que só 15% da mente humana se expressa. O importante não é a porcentagem, o importante é a ideia. O tanto de coisa no nosso espírito que ainda não apareceu, que está ainda em estado virtual. Vocês sabem que o cérebro que temos é o mesmo cérebro de 5 mil anos atrás, no Homo sapiens, o que chamamos na França de Homme de Cro-Magnon, o homem que foi capaz de fazer pinturas incríveis nas cavernas, que não tinha a genialidade de um músico como Mozart, mas tinha o mesmo cérebro que Mozart, que Kant, que Proust ou Beethoven? É o mesmo! Então, eles não sabiam que tinham essas possibilidades.
Nós também não sabemos ainda quais são nossas possibilidades, seja na comunicação, seja na compreensão do outro, talvez até na telepatia.
Eu diria que o subdesenvolvimento do espírito humano nos mostra essas possibilidades de desenvolvimento e é também um princípio de esperança. Em seguida, temos essa possibilidade de uma revolução cognitiva que nos torna capazes
de um pensamento muito mais rico, muito mais complexo que possa contribuir para encontrar soluções, se não as melhores, ao menos as menos piores. Então temos tudo isso, e, no mais, às vezes, a revolução começa aqui e ali. Temos também, vou dizer em duas palavras, as aspirações à harmonia, que sempre existiram e, sem dúvida, eram mais fortes nas sociedades arcaicas muito antigas, mas que hoje não existem. Temos uma organização rígida, despótica, hierárquica, compartimentada.
Quando eu estive na Califórnia no fim dos anos 1960, havia toda uma juventude, uma adolescência, vinda de famílias com muitas posses... Mas eles queriam fugir dessa vida artificial, viver em comunidade e procuravam mais comunidade, mais liberdade. Essa aspiração renasce sem parar. Claro que na parte menos resignada, menos domesticada da população, que são os adolescentes, evidentemente com suas possibilidades destrutivas e criativas.
Temos também essas aspirações humanas que existem desde a pré-história e que vão fazer esse papel. Temos o fato de que no decorrer da História, o improvável aconteceu mais vezes do que o provável. Vou dar rapidamente dois exemplos.
O primeiro é quando, cinco séculos antes da nossa era, na Grécia, a pequena cidade de Atenas, que era minúscula, foi atacada pelo gigantesco império Persa, e esse império Persa que iria, provavelmente, aniquilar Atenas, foi reprimido pela primeira vez por um pequeno exército espartano e ateniense, em Maratona. Depois, o império Persa atacou uma segunda vez, e, dessa vez, ele conquistou, incendiou e destruiu Atenas. Mas a frota ateniense, em Salamina, conseguiu fazer a frota persa cair numa armadilha e a destruiu. E a frota persa não voltou mais. Ou seja, 50 anos mais tarde,
nascia a democracia e a filosofia.
E em dezembro de 1941, a vitória nazista parecia certa na Europa, e talvez sobre uma grande parte do mundo, e dois novos eventos aconteceram o primeiro contra-ataque
soviético vitorioso, libertando a sitiada Moscou, e a entrada dos americanos na guerra,
depois do ataque de Pearl Harbor. Em alguns dias, o que era provável começou a se tornar improvável, e o que era improvável começou a se tornar provável. Então... A questão é que, mesmo sendo improvável, pode ser possível. Será que a imaturidade afetiva, intelectual dos seres humanos, pode ser ultrapassada, ser superada? É possível, mas ainda é improvável.
Vocês sabem que, na História, os grandes movimentos começam de forma minúscula,
como Nietzsche dizia, avançam em passos de pombo. O cristianismo começou com um profeta, Jesus e alguns apóstolos. O islamismo começou com um profeta que foi expulso de Meca e se refugiou em Medina, e todos eles se transformaram em fenômenos imensos. Então, vejam que era improvável a vitória do cristianismo, era improvável a vitória de Maomé. Tudo isso nos mostra que devemos ter esperança no improvável. Evidentemente, é uma luta duvidosa, que permanece incerta. Não podemos eliminar a incerteza, mas é essa incerteza que nos permite não sermos desencorajados, mas ao contrário, entrar revigorados nessa grande causa, a maior causa que já vimos na história humana.
Quando muitos jovens franceses me dizem: "Você teve sorte, pois lutou quando estava na Resistência contra uma ocupação bárbara, contra o nazismo, e o que nós temos agora? Nada! Não temos nenhuma causa, não temos nada para fazer, não temos futuro, não temos segurança..." Eu digo: "É verdade, mas vocês têm a maior causa que já se viu na humanidade, é a nossa causa, mas é a sua causa, ali está o seu destino." E acredito que é assim que temos que considerar o futuro, sem apagar
a possível desesperança, mas com a possibilidade de uma esperança.
Obrigado.
Perguntas do público.
Eletrizados ainda que estamos pela esperança que o professor Morin nos trouxe, com essa argúcia de análises sobre a contemporaneidade, e com a capacidade de síntese
e de criar um espaço de esperança, como aqui termina. Acho que todos nós saímos daqui com, logo depois das perguntas, entendendo a importância e cultivar nosso jardim coletivo. Acho que essa é a tarefa de todos nós após essa conversa.
Nós tivemos aqui... Mais de 50 perguntas, as quais foram agrupadas por... Mas ele só pode responder a 40. Foi... Foi o que ele nos disse, só 40.
Ele propôs responder a três, ou quatro, porque amanhã ele tem compromisso muito cedo. Mas, de qualquer maneira, a equipe de seleção das perguntas juntou as perguntas por temas e destacou três muito fundamentais que aqui apareceram.
Outras perguntas serão respondidas pelo site do Sesc em um fórum destinado ao professor Morin. Isso quer dizer que o nosso debate continuará na perspectiva de cultivarmos o nosso jardim coletivo.
A primeira pergunta que fizeram aqui se refere a um artigo que o professor Morin
escreveu no "Le Monde" um tempo atrás, pouco antes das eleições na França, e a pergunta é a seguinte: No seu artigo "Si j'avais été candidat", o senhor falou em relação aos cursos superiores, sobre a criação de uma disciplina orientada à compreensão do outro, do próximo. Como seria este curso? Quais os pontos
ou os aspectos principais? E, se possível, uma sugestão de como isso se desenvolveria.
Umas três ou quatro questões foram feitas nesse sentido também, que foi um artigo que muito impactou ao grupo aqui presente.
Sim, isso faz parte de uma das minhas preocupações... Especialmente, no meu livro que se chama "Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro", um desses sete saberes, talvez um dos mais importantes, é o ensino da compreensão humana, que é uma coisa que deveria ser feita desde as primeiras séries. Então, o que quer dizer
compreender? Primeiro, quer dizer compreender a nós mesmos. E isso é uma das coisas mais difíceis que existem, porque nós temos uma possibilidade de ilusão sobre nós mesmos. Aquilo que os ingleses chamam de self-deception. Nós mentimos para nós mesmos sem perceber. Queremos sempre nos dar o melhor papel, tentamos apagar o que não nos agrada. Tentamos sempre atribuir a culpa aos outros, nunca a nós mesmos. Então, é muito importante o ensino de uma cultura psíquica, a capacidade de se auto enxergar, é uma longa aprendizagem. Alguns autores praticavam esse autoconhecimento, especialmente escritores, como Montaigne.
Acredito que cada um deveria ter um diário para tentar contar sua vida e depois tentar ver com a distância. É um trabalho de cultura psíquica sobre nós mesmos, e é um trabalho de cultura sobre a relação com o outro. Por quê? Porque quando uma relação se torna ruim, quando se torna uma relação de brigas, a incompreensão cresce. Ou seja, peguem a incompreensão mais cotidiana, aquela que pode se manifestar em uma cena entre um casal. Cada um vai pensar que o outro é que está errado, que o outro foi quem começou, e que ele mesmo é, com certeza, a vítima. Mas se cada um puder compreender que quando começa uma discussão, uma briga,
tanto nas pequenas discussões concretas numa família, como nas grandes brigas e raivas entre nações, tudo isso leva a um círculo vicioso, e é esse círculo vicioso que aumenta a raiva de um e do outro, levando a um aumento de inconsciência generalizado. Vivemos isso anteriormente, por exemplo, na Grande Guerra de 1914,
na qual havia um importante partido internacionalista alemão, socialista, que queria a paz, e também um importante partido socialista francês que queria a paz. Mas, assim que a guerra começou, os socialistas, cada um de um lado, se mobilizaram em uma união sagrada, criando um clima de ódio, de desprezo, uma verdadeira histeria de guerra. Hoje em dia, nós somos ameaçados por tal histeria, que tem um caráter maniqueísta, que diaboliza o outro e nos coloca como santos. Acredito que aqui também temos um trabalho enorme, pois é um trabalho ao nível da vida quotidiana de cada um, ao nível da vida coletiva e ao nível da vida planetária.
A partir desta resposta e de toda a conferência que vimos, a gente tem a íntima percepção da importância desse evento organizado pelo Sesc e pela Universidade São Marcos. A segunda questão aqui trazida fala o seguinte: O mundo globalizado
e o conhecimento cibernético podem gerar o ostracismo do homem, a ponto de no futuro não nos relacionarmos mais, ou seja, não haver relação do ser humano com o ser humano por causa do mundo cibernético?
Olha, eu não acredito que possamos chegar a esse ponto. A cibernética de Norbert Wiener, o inventor da cibernética, foi feita para nos ajudar a compreender os fenômenos que são a retroação negativa, o feedback negativo e o feedback positivo,
ou seja, compreender fenômenos complexos dos quais não tínhamos consciência.
Então, acredito que foi um pensamento libertador, mas agora vemos uma utilização da cibernética unicamente para as máquinas artificiais, que, realmente, se tornam um obstáculo para as relações humanas. Eu falei das máquinas agora há pouco, mostrei que as relações humanas podem se enriquecer graças às máquinas, mas também serem ameaçadas por causa das máquinas, e que é um processo ambivalente.
Há mais duas questões. Pode ser mais duas?
A primeira questão... Há um grupo grande aqui que se preocupou com a questão religiosa. Como é que o professor Edgar Morin vê a relação entre a física quântica,
a Teoria da Complexidade e a questão da espiritualidade de Deus? E uma pergunta chegou a perguntar se ele acreditava em Deus. Como o senhor vê a religião do ser humano como um conceito de Deus? Qual a importância disso para o futuro da humanidade?
Sim, é uma questão múltipla.
Primeiro, eu diria que Deus, no que diz respeito a mim, não creio em um Deus exterior ao mundo e que cria o mundo. Penso que há um mistério profundo na existência do mundo e da realidade. Eu acredito em um mistério, mas esse mistério eu não chamo de Deus. Eu sei que existem alguns teólogos que praticam a teologia negativa, dizendo que não dar nenhum atributo e nenhuma característica a Deus, no fundo, na verdade, se junta a essa ideia de mistério. Mas eu acredito mais no que dizia Espinoza, pois Espinoza descartou a ideia de um Deus exterior ao mundo para colocar a substância criadora no coração da natureza. Sua fórmula famosa é: “Deus sive natura”, "Deus, ou seja, a natureza". Ou seja, é a natureza.
E, na minha opinião, tudo o que nos mostra a evolução da vida, a evolução múltipla, com a criação dos olhos, das asas, dos cérebros, de todas essas coisas fabulosas
no mundo vegetal. Nos mostra que a criatividade está acontecendo na natureza, não é o criacionismo, não é um criador que inventou isso tudo, é o processo vivo, e eu acredito nessa criatividade.
Agora, em relação à religião. As grandes religiões também têm uma dupla face. Eu penso, por exemplo, que tanto o cristianismo quanto o Islã, penso que, de um lado,
no coração deles, há um princípio de fraternidade, de compaixão, de abertura em relação ao outro, o que podemos chamar de "caridade", no sentido literal da palavra,
daquilo que vem do coração. Como diz São Paulo em Coríntios: sem amor, eu não sou nada, seria como um sino vazio. É muito claro que existe esse princípio. Mas vimos que a institucionalização da religião, principalmente do catolicismo, provocou
primeiro, as guerras entre heresias, entre diferentes interpretações da mensagem divina, guerras religiosas, as Cruzadas, entre outras. Guerras religiosas dentro do cristianismo, entre protestantes e católicos. Então, uma mesma religião que possui um princípio de abertura, possui um princípio de dogmatismo e de fechamento. Eu diria que no mundo moderno, seria desejável que as grandes religiões pudessem desenvolver seus princípios de universalismo e de compreensão humana. E, quando penso no Islã, no início da reza islâmica, diz: "em nome do Todo-Poderoso e misericordioso", ou seja, eles dão a qualidade superior, divina, à misericórdia. Quando penso também no budismo, que tem um princípio muito mais tolerante que o cristianismo e o islamismo, a ideia de compaixão também está presente. Essas são as ideias fecundas, que foram aliás laicizadas e que são muito importantes.
Agora, sobre a física quântica, o que ela nos mostra? Nos mostra, primeiro, que nossa lógica e nosso modo racional normal, são impotentes diante da complexidade surpreendente do que se passa no universo microfísico que é, ao mesmo tempo, o nosso. É um mundo no qual existem dois níveis de realidade que, aparentemente, não se comunicam, e, no entanto, são os mesmos.
Hoje, nós sabemos que existem processos que chamamos de decoerência. Quer dizer que quando existe uma pequena população de elementos microfísicos que se agrupam, por razões demográficas, eles passam ao universo da nossa física. Quando eu disse anteriormente que em algum momento pequenas sociedades pré-históricas se agruparam e passamos às sociedades históricas com regras e estruturas diferentes. Então, temos um universo tão misterioso, tão rico, tão complexo, que comporta tantos mistérios. É isso o que deveria nos unir na surpresa e na maravilha.
Então, acredito que como o princípio universalista, que foi incluso no cristianismo e passou para a laicidade, o que é o humanismo europeu?, o humanismo europeu
nasceu da união do espírito evangélico, de fraternidade, com a racionalidade e o universalismo herdado dos gregos, e foi isso que fez sua força, e eu me considero
na tradição desse humanismo universalista.
Passamos à última pergunta, que é à respeito da causa palestina. Mas, antes, eu gostaria de dizer que, provavelmente, a maioria das questões que aqui foram colocadas, foram colocadas antes do fim da palestra, portanto, muitas delas foram contempladas no decurso da apresentação do professor Morin. A pergunta é: Como o senhor avalia a causa palestina, o reconhecimento da sociedade mundial em relação à criação de um Estado Palestino? Essa é a pergunta que, de alguma forma, a gente encerra as perguntas do grupo que acompanhou o debate.
Bom, eu considero que há um problema de humanidade, um problema de justiça e um problema de perigo planetário. O problema de humanidade, muitos podem reconhecer
que após a perseguição cometida contra os judeus, principalmente a perseguição extrema e a destruição que nasceram com o nazismo, se desenvolveu a ideia de uma nação judia que o sionismo encarnou. Aconteceu de forma trágica, que a ideia de instalar essa nação na Palestina, foi realizada numa terra já povoada por árabes islâmicos e também cristãos. A ideia de um povo sem terra para uma terra sem povo
era um mito, era falsa e ilusória. E essa foi a causa da tragédia. Temos em uma mesma terra, duas nações em formação, porque Israel se formou do nada, de uma diáspora, mas a Palestina, que era um fragmento do mundo árabe sob dominação dos otomanos, se reformulou como nação sob a dominação e ocupação israelense. Temos duas nações hoje legítimas, só que uma é dominante e a outra é submissa.
Acredito que hoje todos conheçam, já houve acordos feitos em Genebra pelos palestinos e israelenses, teve a proposta do príncipe da Arábia, dizendo que os estados árabes reconhecem Israel na condição de Israel devolver à Palestina
a Fronteira de 1967, ou seja, a Jordânia e Gaza, Jerusalém fique como capital,
e, ao menos como princípio, reconhece a tragédia de refugiados palestinos.
Mas essa solução, até o momento, não foi aceita pelo Estado de Israel, e onde a tendência é a de um círculo vicioso que se formou, ou seja, não somente após as Intifadas e uma repressão cada vez mais dura sobre a Palestina, uma implantação crescente de colônias israelenses na Palestina. Essas situações que... No caso de Gaza, é terrível. Mas essas situações são um veneno que corrói a humanidade,
porque no Oriente Médio temos todo um universo árabe-islâmico, que sente a injustiça
de um tratamento onde existem dois pesos e duas medidas. Os mesmos valores não valem para os israelenses e para os palestinos, e, no geral, o mundo ocidental não aplica o mesmo critério para ele mesmo, o mundo ocidental, e para o resto do mundo.
Tudo isso cria um novo clima antijudaico enorme no mundo árabe muçulmano, isso cria um apodrecimento da situação mundial. Eu ainda diria que, nós vimos isso na França, quando houve a Guerra da Argélia. Quando aconteceu a revolta argelina,
houve um momento favorável para a negociação, que foi no ano de 1956. A revolta começou em 1954. Mas a negociação não aconteceu por razões acidentais que não vou falar aqui. Depois desse momento, se desenvolveu o pior nos dois lados. Aconteceu na França o Putsch militar, que fez da França uma ditadura militar, se não fosse a genialidade política de De Gaulle, que conseguiu reverter tudo e salvar a democracia na França. Na Argélia, infelizmente, aconteceu uma ditadura de um partido único com o Front National, que gerou consequências terríveis para o povo argelino. Quero dizer que, em algum momento, uma má radicalização desenvolve o pior dos dois lados, e é absolutamente o pior dos dois lados que se desenvolve na situação Israel-palestina. Acredito que, cada vez mais, as ideias nacionalistas,
nacionalistas religiosas do lado israelense, e o fato de que o nacionalismo laico da OLP de Yasser Arafat, tende a desenvolver uma ideologia mais religiosa que aquela do Hamas, e também as disputas internas terríveis entre a OLP e o Hamas, a degradação da situação. Os Estados Unidos tiveram um papel muito negativo, porque sistematicamente favoreceram Israel, e se agiram muito timidamente na Conferência de Anápolis, com uma vaga perspectiva de acordo, acredito que foi para melhor preparar o mundo árabe ao bombardeamento do Irã que está previsto. Então, se preferem, temos um câncer que corrói o planeta, e que pode ter uma repercussão muito grande, e também é um problema, eu diria, de humanismo e de humanidade.
Sou de origem judia e muitos amigos Pró-Israel não entendem a minha atitude. Eles veem uma distorção ideológica, eles não conseguem compreender que podemos ter compaixão por um povo que sofre e é humilhado, principalmente quando nós mesmos somos originários de uma história, onde nossos antepassados foram humilhados e sofreram.
A nossa emoção não para e ficaríamos aqui a noite inteira, não só escutando, como aplaudindo essa lição de lógica, de coerência, essa lição de vida, pela paixão que o professor Edgar Morin nos trouxe. Eu trago aqui, então, a gratidão a essa figura maravilhosa que marcou, seguramente, a vida intelectual de todos nós. E agradeço muito também à Universidade de São Marcos, em nome desse auditório e dos outros
que ainda vão trabalhar no site do Sesc com o fórum do professor Morin. E agradeço ao Sesc, que abrigou esse evento e que sempre tem patrocinado tudo, e "matrocinado" tudo que é ação de cultura, de filosofia e de vida.
Muito Obrigado.