Entrevista

Edgar Morin

Pergunta - Em uma certa época, há o dogma: Não se pode pensar na cultura, a não ser rejeitando a natureza". O objeto do seu trabalho é mostrar que as duas noções, cultura e natureza, podem ser pensadas juntas, ao mesmo tempo como antagonistas e solidárias. Poderia fazer um comentário em relação a esse pensamento?
 
Edgar Morin - Eu acredito que continuamos, em nossos estudos, e nas nossas ideias, a separar totalmente natureza e cultura. Quer dizer que para conhecer as coisas humanos, nos interessamos só pela parte psicológica, sociológica, histórica, e não por nossa parte animal, pois também somos animais. Ou seja, a natureza está inscrita em nós e há muitas coisas que fazemos de uma forma inata. Nós comemos, nós andamos, e mesmo na linguagem que devemos aprender existe uma disposição inata. Enquanto que o que chamamos de cultura é o que devemos aprender, que não temos de forma inata. É evidente que a humanidade desenvolveu a cultura extraordinariamente. Mas a ideia de dissociar natureza e cultura, ao meu ver, é absurda. Porque não somente nós somos o produto de uma evolução biológica, mas levamos em nós, não somente nossa natureza de primatas, mamíferos e vertebrados, de ser vivo...  Também temos toda a constituição física que existe na natureza, nossos átomos foram criados antes da vida e nossas partículas nasceram no momento do início da vida. Então, a natureza está em nós. É verdade que, com o espírito, com a linguagem e com a consciência, nós nos afastamos, de certo modo, da natureza. Acabamos esquecendo que também somos seres naturais. Dessa forma, nós temos uma dupla natureza: nossa natureza biológica e nossa natureza humana, mas as duas são apenas uma.
 
P - O imaginário, a realidade social, e o mito. Na sua opinião, existe uma ligação entre eles?
 
EM - Sabe, eu fazia parte de uma concepção onde o imaginário, o mito, a religião eram, de certa forma, a superestrutura da sociedade, e a estrutura verdadeira era a economia, a organização material da sociedade. Mas, quando eu fiz meus estudos sobre a morte, eu percebi que as crenças de uma vida após a morte, por exemplo, são extremamente universais na humanidade e que os mitos fazem parte da nossa natureza humana. No fundo, eu compreendi que, na realidade humana, existe o imaginário, que não podemos dizer que é algo secundário. Eu acredito que compreendem isso cada vez mais na nossa época, onde vemos, mais uma vez, o papel das grandes religiões cada vez mais poderosas entre as pessoas. Não podemos ver somente a realidade que chamamos de econômica ou sociológica. Dentro dessa realidade, mesmo na economia, o desejo humano, o imaginário... Quando você compra produtos no mercado, cosméticos ou produtos de beleza, existe uma parte do imaginário lá dentro. E, sem dúvida, esses produtos têm um papel materialmente secundário, mas você acredita que vão te embelezar.
 
P - E em relação às pesquisas de ciências humanas, história, antropologia, o imaginário também está presente?
 
EM - Totalmente. Durante a conquista da América pelo conquistador, é claro que havia uma sede de ouro, de riquezas, mas também a ideia de um mundo onde havia o Eldorado, um mundo paradisíaco. Eu acredito que somos guiados não somente por desejos materiais, mas também por aspirações, por uma necessidade...  Frequentemente, por exemplo, por um desejo de harmonia, um desejo de harmonia humana, expresso pelas grandes ideologias, como o socialismo, o comunismo, o anarquismo. Portanto, esse tipo de coisa não deve ser considerado secundário.
 
P - Você afirma que o tecido da vida é uma mistura de prosa e poesia. Na sociedade tecnoburocrática na qual nós vivemos, existe uma tendência a eliminar de nosso mundo, ou mesmo de nosso pensamento, tudo aquilo que é poético, e queremos ter somente a prosa. Mas, o cérebro humano não funciona como um computador digital, e também funciona de forma analógica, metafórica e poética. O que o senhor pode nos falar sobre essas afirmações?
 
EM - Bom, a primeira coisa... O que é a prosa na vida? São as coisas que fazemos por obrigação, por submissão, que não nos interessam, mas que são necessárias para ganhar nossa vida. E o que podemos chamar de poesia da vida? É tudo o que nos traz felicidade, comunhão, amor, entusiasmo. É verdade que aspiramos a uma vida poética, mas somos frequentemente impedidos. Eu acredito que a realidade poética do ser humano deve poder se expressar. Viver verdadeiramente é viver poeticamente, senão simplesmente sobrevivemos. Mais importante, e é só pensar que nosso tipo de civilização, que se baseia no cálculo, na cronometria, na especialização, que, de certa forma, se baseia no que há de mais prosaico, tenta nos impedir de viver poeticamente, e nós encontramos a vida poética, escapando um pouco para nos divertir, ir aos jogos de futebol, viajando nos finais de semana, vivendo relações com amigos ou amores. Acredito que existe um problema social muito contemporâneo. É preciso entender que viver é viver poeticamente. E no que diz respeito ao nosso cérebro humano...  Houve uma época, durante um tempo, em que para algumas pessoas, ele funcionava como um computador. Nosso cérebro é uma máquina extremamente complexa, mas percebemos que além de ser muito mais complexo que um computador, ele também funciona de uma forma que não é digital, não é binária, e tudo o que são analogias e metáforas têm um papel enorme, e são também, no fundo, a parte poética. Quando falamos sobre o nascer do Sol... É claro que é a Terra que gira em torno do Sol, mas é uma visão já um pouco poética, temos a impressão de que o astro levanta voo. Se tivéssemos uma linguagem puramente binária, seria uma linguagem puramente técnica e muito seca, mas, justamente, na nossa linguagem podemos expressar metáforas, por imagens, a qualidade poética da vida. Do ponto de vista da ciência nova e de nossa forma de observar, compreender e reagir em relação às ciências culturais e sociais. 
 
P - Ainda existe um desequilíbrio entre as ciências? E sob o ponto de vista da ciência nova e nossa forma de compreender as mudanças que existem entre a cultura e o social?
 
EM - A ciência nova começa a se liberar, mas, na realidade, uma grande parte das ciências funciona de uma maneira clássica, que, digamos, é dominada pela redução. Tentamos reduzir um conjunto complexo a seu elemento simples, tentamos repartir as coisas ao máximo, para isolar os objetos, sendo que, na realidade, como disse um cientista americano, a natureza não é dividida em disciplinas como nas universidades. Na natureza, tudo se mistura e tudo está ligado. Então, a ciência nova é uma ciência que religa. Você sabe, eu uso a palavra "complexo". É preciso dizer que "complexus", do latim, significa "aquilo que é tecido conjuntamente". As coisas estão ligadas, elas são inseparáveis, elas interagem e retroagem, e é isso que precisamos compreender. Do meu ponto de vista, é isso que vai desenvolver uma ciência nova. Temos a ecologia como exemplo. É uma ciência nova, por quê? Ela estuda, por exemplo, os ecossistemas, que, num determinado lugar, são organizações espontâneas, que surgem a partir de interações entre vegetais, animais, unicelulares, a meteorologia, as condições físicas, os elementos diferentes da natureza física e biológica. Para que o ecologista compreenda os ecossistemas, ele utiliza o conhecimento dos biólogos, dos botânicos, de diferentes disciplinas. Então, é uma ciência que reúne elementos separados. Além disso, hoje em dia, os ecologistas sabem muito bem que as atividades humanas interferem e perturbam o funcionamento dos ecossistemas. Um dos grandes problemas contemporâneos são todas as atividades técnicas e econômicas que degradam a biosfera, que nos é necessária. Então temos uma ciência de um novo tipo, pois nos permite compreender a relação entre as coisas. Além disso, permite que nós, humanos, compreendamos o perigo que nos ameaça, para tentarmos interferir. Acredito que as ciências novas se fazem pelo reagrupamento das disciplinas e por uma forma de compreender os problemas que liga as partes e o todo, e que liga os conhecimentos separados a um conhecimento global, e que, de alguma forma, toca nossos problemas fundamentais.
 
P - Você afirmou em uma entrevista para a revista "Philosophie" na França: "Eu realizei uma síntese que visa elaborar um método, que visa religar os campos de conhecimento e do ser, sem nostalgia do saber absoluto. 'O Método' não é um programa de conhecimento, é uma ajuda à estratégia do conhecimento, que cada um deveria exercer." 
 
EM - Sim...  Por um lado, a busca da complexidade, nos leva a tentar ligar as coisas que estão muito separadas. A complexidade não é a totalidade. Porque quando temos um conhecimento complexo, sabemos que nunca poderemos eliminar a incerteza. É por isso que procuramos a totalidade, sabendo que nunca a teremos. Portanto, devemos ter as duas verdades contrárias em mente. Cito frequentemente as palavras de Adorno que dizia: "A totalidade é a não verdade." É muito interessante, porque a totalidade é a não verdade, mas uma verdade parcial isolada é a não verdade também. Então, temos que tentar superar dois tipos de erro: o erro em achar que uma pequena verdade, separada do resto, é uma verdade, erro; e outro erro que acredita podermos ter o conhecimento de tudo, o que nunca teremos. Então, trata-se de uma aspiração. O conhecimento complexo é um movimento permanente, que vai das partes ao todo e do todo às partes, mas nunca é o saber absoluto. Trata-se de uma estratégia de conhecimento que cada um deve exercer.
 
P - O senhor poderia falar sobre essa estratégia?
 
EM - Bom, é preciso deixar clara a diferença entre as palavras "programa" e "estratégia". Um programa é quando, antecipadamente, se decide as diferentes etapas que serão seguidas para chegar ao conhecimento ou à ação. Para o conhecimento, temos, por exemplo, os programas de pesquisa. O que é um programa de pesquisa? Temos todos os princípios e modos de funcionamento definidos com antecedência, e a pesquisa pode seguir em frente. Por exemplo, para montar um automóvel. Temos todos os princípios e as máquinas, e com as peças soltas, chegamos ao carro. O programa só funciona em uma realidade constante, mas quando a realidade é inconstante, como nas artes militares, por exemplo, é evidente que não podemos fazer um programa para ganhar uma batalha. É preciso ter informações, tentar prever os movimentos inimigos, é preciso tentar conhecer as intenções do inimigo, elaboramos uma estratégia, em função das informações, do acaso, do conhecimento que temos. O verdadeiro conhecimento necessita sempre de uma estratégia, não de um programa, pois por eles obtemos pequenos conhecimentos. É por isso que o meu livro "O Método" não formula nenhum programa, mas ele mostra meios de pensar, meios de ver as coisas, que podem ajudar o conhecimento, ou seja, ajudar na estratégia de cada um. Costumo dizer: "Ajude a si mesmo, e 'O Método' te ajudará."
 
P - Existe a globalização econômica e a globalização cultural. O senhor poderia falar sobre essas noções? E também, o senhor crê que teremos uma democratização do conhecimento? Primeiro, o senhor faz essa distinção entre globalização econômica e cultural? Depois, aproveitando, temos uma democratização do conhecimento?
 
EM - Eu acredito que seja preciso considerar que existem várias globalizações dentro da globalização. Elas são inseparáveis, mas podem ser antagonistas ao mesmo tempo. Por exemplo, temos a globalização que começou com a conquista das Américas, que foi o domínio do mundo pela Europa Ocidental, por alguns séculos, e que foi uma globalização, digamos, fundamentada no poder. Mas, ao mesmo tempo, de uma forma muito menor, de uma forma, no início, aparentemente secundária, tivemos as ideias de direitos dos povos, de democracia, de reconhecimento que as outras civilizações não são bárbaras. Ou seja, Bartolomeu de las Casas, Montaigne, Montesquieu que diziam que se uma coisa é útil à minha pátria, mas prejudicial à humanidade, eu não farei essa coisa que é boa para minha pátria, prefiro fazer algo bom para a humanidade. As ideias do Iluminismo, dos Direitos do Homem...  Tudo isso também é globalização. Globalizar permitiu o fim da colonização, pois os colonizados se apossaram das ideias dos dominadores, dizendo que eles também têm direito à liberdade, direito de ser um povo, de poder ter uma nação. Hoje em dia, com a globalização econômica, ao mesmo tempo, começou uma globalização de ideias democráticas, mais fraca, evidentemente. Temos, por exemplo, uma globalização das ideias sobre os direitos das mulheres, que ainda não é generalizada. Certamente, a globalização econômica provocou uma globalização cultural. No século XIX, Karl Marx dizia que o capitalismo, criando uma economia mundial, permitiria uma cultura mundial. Por um lado, isso é verdade. Hoje, estamos em uma época onde para nós a literatura inclui a literatura chinesa, japonesa, dos povos pequenos, como na Albânia, enfim...  E claro, a literatura brasileira, argentina, os romances mexicanos, tudo faz parte de uma cultura mundial. Obviamente, reservada a poucas pessoas do planeta. Em comparação, antes, a cultura para nós, europeus, era a cultura francesa, alemã e inglesa, e pronto. Então, nessa democratização cultural, temos também o processo de miscigenação, de encontros. Esses encontros são normalmente criativos. No mais, nós percebemos que existem correntes de homogeneização e degradação, e que as culturas devem resistir para preservar sua originalidade. Mas também, em cada difusão de um produto cultural, vemos a modificação de acordo com o contexto onde ele se encontra. Existe um estudo muito interessante feito por uma socióloga francesa sobre a pizza, que tem origem em Nápoles. Ela mostrou que, em cada país, a pizza tem uma característica diferente em função das características culturais desse país. Então, a globalização é um processo extremamente complexo, com aspectos positivos e aspectos negativos. E no que diz respeito ao conhecimento, felizmente e infelizmente...  Felizmente, por termos fenômenos como a internet, que permite a difusão dos conhecimentos. E, por um lado, podemos dizer que existe uma tendência à democratização dos conhecimentos, mas não existe a democratização do conhecimento. Porque é preciso fazer uma distinção entre os conhecimentos separados, mas sem ligação entre eles, e o conhecimento que é a capacidade de reunir os conhecimentos separados, e assim compreendê-los. Então acho que hoje, infelizmente, mesmo nos países mais desenvolvidos do ponto de vista da educação, de universidades, esses conhecimentos continuam separados e ainda não foi feita essa reforma para ter um tipo de conhecimento que permite conectá-los.
 
P - Uma outra pergunta... É preciso também fazer uma distinção entre informação e conhecimento?
 
EM - Sim. 
 
P - E, talvez, com o acesso à internet, temos mais informação e menos conhecimento?
 
EM - Olha, não é somente o caso da internet, acontece também na imprensa, na televisão, na mídia. Então, as informações são múltiplas, elas são inúmeras, caem todos os dias sobre nós como uma chuva, mas esquecemos no dia seguinte das informações do dia anterior. E o que permite dar um contexto às informações é quando as articulamos em um pensamento, em um conhecimento. No mais, no jornal, e até na televisão, os editorialistas comentam a atualidade organizando as informações que eles recebem, conectando o passado ao presente etc. Então, o poeta Eliot dizia: "Qual é o conhecimento que perdemos na informação?" Se temos a informação, degradamos o conhecimento. Ele também dizia: "Qual é a sabedoria que perdemos no conhecimento?" Porque se temos conhecimentos puramente objetivos sobre os objetos, não somos capazes de incorporar o conhecimento na nossa vida e na nossa arte de viver. Então, acredito que é uma ilusão dizer que somos uma sociedade do conhecimento. Não somos uma sociedade do conhecimento, somos uma sociedade de desconhecimento. 
 
P - E ainda, é verdade que somos uma sociedade da informação? 
 
EM - Não. Somos uma sociedade da multiplicidade de informações.
 
P - O senhor afirmou, também numa entrevista, que a miscigenação cultural poderia favorecer uma abertura de espírito. Nesse caso, a América Latina também se caracteriza pela miscigenação cultural, sobretudo o Brasil. Os países latino-americanos são mais abertos a essa abertura de espírito da qual o senhor falou?
 
EM - Olha, isso foi o que eu constatei. Eu creio, verdadeiramente, que países como o Brasil, e, de outro modo, o México, são países com vitalidade intelectual, uma pesquisa e uma abertura que estão ligadas, fundamentalmente, a sua mistura étnica e mestiça. Acredito que não seja por acaso que, principalmente nesses países, minhas ideias sobre o pensamento complexo, minhas formas de pensar são acolhidas de forma muito mais profunda e verídica do que em países nórdicos ou anglo-saxões.

10 de dezembro de 2007