Educação e cultura (encerramento)

Edgar Morin

Caros amigos, inicialmente, obrigado. Obrigado ao SESC pela organização desta reunião. Obrigado, em nome de todos os meus amigos, que foram convidados para esse seminário e, naturalmente, em meu próprio nome.
 
Meu discurso de encerramento será um discurso de abertura. Estamos aqui, hoje, 23 de agosto de 2002, na aurora de um novo milênio.  Estamos no coração de um dos países mais belos do mundo. Estamos a três semanas do aniversário de um choque gigantesco que abalou o mundo em 11 de setembro de 2001 e do qual ainda não podemos mensurar os efeitos. Estamos às vésperas de uma cúpula mundial que irá se reunir em Johannesburgo para impedir que nossa Terra, esta Terra de que tão bem falou Peter Westbroek, torne-se uma nau espacial que vague cegamente em direção à catástrofe, impulsionada por quatro motores descontrolados: a ciência, a técnica, a indústria e o lucro. No seio dessa nau espacial, forças cegas e furiosas não se entendem. Como pilotar? 
 
A grande solução aos problemas da humanidade, que se esperava do socialismo da União Soviética, desmoronou em 1989. A grande solução, que pretendia ser o mercado mundial sem entrave, está desmoronando. Que paradoxo! A crise do capitalismo anunciada por Marx não veio do proletariado, mas da sede desenfreada do lucro do próprio capitalismo. Outra ironia. Não é o Bin Laden. É o próprio Wall Street que provoca o caos econômico.
 
E nós aqui, na Vila Mariana, debatemos cultura e educação. Mas estaríamos fora da crise? Estaríamos fora das realidades mais dramáticas de nosso mundo? Não. Não apenas, como mostraram particularmente Christiane e Alfredo. A relação educação-cultura é inseparável da relação com a história, com a política, com a sociedade, com o planeta, mas também porque o problema é da educação e da cultura. Esses problemas estão no cerne de nossos problemas históricos, sociais, políticos e planetários e é de importância capital que eles sejam evocados durante a crise planetária.
 
Tenho o sentimento de que essa nau espacial ruma para a catástrofe e que a cegueira, que reina, não vem apenas de paixões desenfreadas, mas também de um modo de pensamento fragmentado, incapaz de penetrar naquilo que é fundamental e no que é global. Estamos entregues e somos levados, loucamente, à fragmentação, como diz Serge Moskovici. Por isso, necessitamos de uma inteligência que possa enfrentar todos esses desafios. Se a cultura é a segunda natureza tanto das sociedades quanto dos indivíduos, é nossa cultura que devemos reconsiderar, fazer a autocrítica e repensar. Se quisesse indicar o elo que pode haver entre a estrutura do pensamento e, em particular, aquela que se manifesta nas ciências, nos conhecimentos, nas universidades, esta é a estrutura da sociedade. É a palavra paradigma, que emprego no seguinte sentido: um paradigma é formado por certo número de relações lógicas que ligam partes de conceitos fundamentais. Assim, por exemplo, temos o paradigma que chamei de o grande paradigma do Ocidente, formulado por Descartes, que nos ordena separar a cultura das humanidades, as letras, as artes, a filosofia e a cultura científica. De um lado, o sujeito, o espírito e, de outro, a matéria, as coisas. Esse paradigma nos ordena, então, a separar e, especialmente, nas ciências, a reduzir o conhecimento do todo ao conhecimento das partes. Ora, não é apenas nosso espírito que obedece a esse paradigma. Ao longo da história das sociedades ocidentais, a partir do século 17 e, cada vez mais, o modo de organização da sociedade funda-se na separação, na divisão extrema do trabalho, na separação em categorias, na separação entre o pensamento econômico e o pensamento moral. Dito de outra maneira, entre a sociedade e a forma de pensar em profundidade, há uma relação, o que nos deixa, efetivamente, com a grande dificuldade de tentar pensar de outra forma. Contudo, nos damos conta de que o processo pelo qual somos levados é o mesmo que nos leva rumo à catástrofe, da qual falo. É o sonho formulado por Descartes, por Bacon, por Marx, por Buffon. É o sonho que guiou a empresa ocidental, o sonho de conquistar o mundo, de dominar a natureza. Este sonho conduz, de fato, a um suicídio, pois a força gigantesca desencadeada pelas potências nucleares, pelas potências de manipulação, pelo desenvolvimento técnico degrada hoje nossa biosfera, indispensável a nossas vidas, como também agrava o conjunto de ameaças nucleares, biológicas e outras sobre nós. Assim, uma revolução de paradigma, da forma de pensar e conceber deve acontecer, evidentemente, através da cultura, mas deve ter, como consequência, efeitos sobre o conjunto dos problemas sociais e históricos. Certamente, vemos bem o sentido que a revolução de paradigma deve ter, já que o paradigma que domina nossos espíritos nos faz sempre separar, separar, separar. Podemos considerá-lo diabólico, já que a palavra diabo significa aquele que separa, aquele que divide sempre. Necessitamos um paradigma que nos faça religar e solidarizar. Religar a cultura humanista e a cultura científica, como já indiquei em minha conferência inaugural. Religar as partes e o todo do qual elas fazem parte e pensar que essa reforma não concerne apenas ao conhecimento, porque ela possui uma vocação ética.
 
Com efeito, a fragmentação que vivemos do/pelo modo de organização do trabalho em nossas sociedades, com cada qual fechado em seu domínio, em seu escritório, em sua disciplina, mais a tendência egocêntrica impedem de ver o conjunto do qual fazemos parte e impede, de alguma forma, de conceber a solidariedade que liga todas as partes entre si. Pascal falava dessa solidariedade, que liga as coisas mais afastadas umas às outras, o que o levou a dizer: “apenas posso conhecer as partes se conheço o todo, mas não posso conhecer o todo se não conheço as partes”. O alcance moral de tudo isso é que esta situação degrada tanto o senso de solidariedade quanto o de responsabilidade. Ora, a solidariedade e a responsabilidade são as duas fontes fundamentais da ética e de tudo mais.
 
Este é, portanto, o problema. Como ligar o indivíduo, essa reconquista do individualismo, que é a conquista de autonomia, a um sentido de comunidade? Além disso, tentemos imaginar o que pode ser uma sociedade extremamente complexa. Uma sociedade extremamente complexa é uma sociedade onde os indivíduos ou os grupos possuem liberdades, capacidades e criatividades muito grandes. Nitidamente, há um aspecto negativo. Hegel dizia: “a liberdade é também crime”. Mas os aspectos positivos são, certamente, muito mais importantes. Apenas indo à extrema complexidade, chega-se à desintegração do elo social e, nesse momento, é o caos. Portanto, como fazer para que, ao mesmo tempo, haja o máximo de autonomia, de liberdade, de responsabilidade e um elo social forte, que não seja evidentemente pelo poder da coerção, da guarda, da polícia, do qual, inconteste, é necessário um mínimo? Qual o elo? O elo social pode ser apenas um sentimento vivenciado de solidariedade e de comunidade. A solidariedade e a comunidade são indispensáveis para a complexidade social e, consequentemente, são indispensáveis à autonomia e à liberdade humana. Hoje, temos a perspectiva de conceber esses problemas em termos do planeta, porque a noção de pátria Terra da qual falei, quer dizer criar um elo fraternal e comunitário entre o conjunto dos humanos no qual, justamente, as diferentes liberdades e autonomias pudessem se manifestar.
 
Temos, desse modo, um problema que concerne à educação, pois se trata do domínio do saber. Temos o problema da reorganização dos saberes. Já fiz, em livros, proposições sobre esse assunto. O que se deve dizer é que se deve ir além do saber fragmentado, hiperespecializado, que comporta uma linguagem inacessível àqueles que não são da especialidade. Reformar tal saber é ir em direção a essa reorganização, que permitirá uma democracia cognitiva, porque, nas condições atuais, os conhecimentos científicos e técnicos, cada vez mais importantes para a sociedade e para a política e para toda a nossa evolução, estão fora do alcance dos cidadãos e são monopólio dos especialistas e dos técnicos, que podem impor soluções à nossa ignorância. A democracia cognitiva tornou-se, nas condições históricas atuais, uma condição sine qua non para que a cidadania possa se afirmar, senão ocorrerá uma regressão, uma derrota da democracia. Vemos, pela mesma razão, que temos pela frente um problema que, a partir da educação e do saber, diz respeito à regeneração da política e da democracia.
 
Mas aqui, e já que devemos nos situar ao nível dos problemas planetários, coloca-se a questão de uma noção que é utilizada ininterruptamente, para todos os propósitos, que é a de desenvolvimento. Afirmo, agora, que se deve ir além dessa noção, mesmo quando ela é melhorada, moderada pela ideia de desenvolvimento sustentável. Deve-se ir além, porque o desenvolvimento sustentável, que supõe que não se deve destruir a ecologia, o ambiente, a biosfera, mesmo nesse caso, ainda é técnico e econômico em seu âmago, comportando a ilusão de que o simples desenvolvimento das forças técnicas e econômicas produz o desenvolvimento da civilização, das relações humanas, da democracia. Na verdade, como bem vimos e os exemplos são numerosos, pode-se ter grande desenvolvimento econômico mesmo em situações de ditadura, mas, sobretudo, devemos ver que esse desenvolvimento em si não pode ser considerado como o cerne da solução dos problemas de nosso século.
 
Outra crítica dessa noção é que ela é inseparável de uma noção de subdesenvolvimento que possui, a meu ver, um caráter abjeto. Isto porque o subdesenvolvimento supõe que aqueles que não atingiram, que não desfrutam do desenvolvimento, vivem em um universo não apenas de pobreza, já que, frequentemente, o desenvolvimento técnico cria uma nova pobreza, mais grave que aquela que existia em regiões arcaicas. Dito de outra forma, não apenas viver na pobreza, mas viver na ignorância, na superstição. Essa noção de desenvolvimento, que priva totalmente do conhecimento de uma realidade tão rica, que existe nas sociedades de cultura oral, anterior à escrita, conhecimentos sobre a natureza, sobre os vegetais, sobre os animais, artes de vida, sabedorias. Nessas poucas e pequenas nações, que continuamos a destruir em nome do progresso, há soluções, riquezas humanas consideráveis. Além disso, diria que a noção de desenvolvimento, supõe que o modelo social desejável e a única finalidade da história da humanidade são aquelas das sociedades desenvolvidas ocidentais, ou seja, liga-se a um total ocidentalocentrismo, em uma época na qual o grande problema é exatamente o intercâmbio, a simbiose entre civilizações, em outras palavras, em que as diferentes civilizações se enriquecem umas às outras a partir das contribuições de cada uma delas. 
 
Também diria que a ideia do desenvolvimento, como um ideal desejável, ignora que as sociedades desenvolvidas se encontram em uma crise originada justamente em seu próprio desenvolvimento. Não se trata apenas de uma crise humana, no sentido de que apesar das riquezas, das possibilidades de usufruir a vida, das vantagens materiais que existem nas sociedades mais ricas, onde há tudo, materialmente falando, o bem-estar material corresponde, com frequência, a um mal-estar do indivíduo, à solidão. Vemos que o individualismo, falo da virtude, pode provocar também a solidão pela perda e degradação das solidariedades tradicionais. Vemos também nas sociedades desenvolvidas que seu grande problema é que elas não podem controlar a afluência das técnicas, da ciência, da indústria e do lucro. Enfim, diria que o desenvolvimento conduz a uma degradação moral e ao egocentrismo, porque pudemos constatar, justamente, a desintegração das solidariedades tradicionais, da família, da cidade, do bairro, solidariedades concretas de pessoas que se encontram em um vilarejo. Tudo isso produz a imoralidade e o problema não é continuar neste caminho, para aqueles que estão apenas em sua metade, ou continuar na rota do desenvolvimento, para aqueles que se encontram hoje nessa situação, mas é mudar de rota. Claro que não se deve dar marcha à ré, voltar às sociedades fechadas, autárquicas, fechadas em seu fanatismo ou em ditaduras, o grande problema é, efetivamente, encontrar outro caminho. Falarei sobre isso mais adiante.
 
Antes de chegar a esse outro caminho, quero falar também do problema da violência. Esse problema, que é inseparável não apenas da vida urbana, da modernização, mas também da cultura e da educação. Inicialmente, devemos verificar que nas sociedades arcaicas e, de forma ampla, nas sociedades humanas, é característico da cultura inibir a violência entre os membros que constituem uma sociedade. Constatamos, no entanto, que a violência tem sido a regra nas relações entre Estados e nações e os próprios poderes despóticos, como vimos, exercem a violência sobre os habitantes de suas nações. Vemos também ressurgir no interior das sociedades, sobretudo nos setores marginais, nos quais há uma verdadeira desintegração do tecido social, a violência contra o conjunto da sociedade. Assim, o problema da violência se coloca mesmo se somos, ou melhor, se sou daqueles que acreditam que a violência não leva necessariamente à revolução. Esta é a experiência da revolução soviética, a experiência, digamos, do pós-marxismo. É que a violência corre o risco de provocar regressões piores que o melhor que se tenta realizar. Efetivamente, não queremos a União Soviética, uma sociedade de dominação, uma sociedade hierárquica, uma sociedade que suprimia o direito de greve dos trabalhadores, em nome dos quais foi feita a revolução. Vimos que, de agora em diante, a violência não pode ser a justificativa, mas, apesar disso, devemos constatar que os povos dominados, colonizados colocam em dúvida a violência para sua emancipação, pois a resistência comporta a violência. Participei de uma resistência, durante a Segunda Guerra Mundial e a violência não pôde ser afastada. Mas, hoje, o desdobramento da violência em todos os domínios é tal, que o pós-1989 se manifestou por uma multiplicação de guerras, guerras civis tornando-se guerras entre nações, como na Iugoslávia, como em Angola, a guerra terrível como a que ocorre entre Israel e Palestina. Vimos que, após o desdobramento do que podemos chamar de terrorismo, definindo terrorismo como o que atinge essencial e unicamente sociedades civis, deixando claro que não existe apenas o terrorismo de grupos clandestinos, mas também o alastramento dos terrorismos de Estado. E vendo efetivamente tudo isso, somos confrontados com esse problema em longo prazo, porque continuam a existir fontes de violência que ainda não se desencadearam. Porque vemos e sentimos a presença terrificante de ódios em uma parte do globo, rancores e desdéns que podem, de repente, tomar a forma de violência, de barbárie, de vingança, de desumanização do inimigo, considerado como um cão. Vemos todos esses fragmentos de violência que deveriam provocar desgosto, que deveriam nos causar repugnância, mas que também nos levam a fazer proposições. Sabemos, no entanto, que não podemos frear esse processo apenas com a boa vontade. Há um caminho muito longo em direção a não-violência, mas é preciso começar a pensar e a praticar esse caminho em direção à superação da violência. Ele passa pela cultura, passa pela educação, passa, evidentemente, pela política.
 
Enfim, nesse domínio, existe o problema da incompreensão. Cada vez mais me parece que a incompreensão é um problema capital, que também deveria estar no centro da educação e da cultura. A incompreensão existe entre estrangeiros, entre nações, entre religiões, entre ideologias. Mas ela existe também no seio de uma mesma sociedade, no seio de uma mesma família, entre colegas de uma mesma empresa ou universidade. Então, é claro que a incompreensão possui fontes tradicionais, que conhecemos muito bem, que é o fechamento cultural, esse fechamento que comporta em si mesmo uma barbárie específica. Sabemos que, desde que haja abertura, comunicação, há uma diminuição da incompreensão. Mas há outra fonte de incompreensão. Ela também tem sua origem nesse conhecimento fragmentado e mutilado, que provém de nossos sistemas educacionais, porque somos incapazes de compreender os conjuntos, os indivíduos concretos, a subjetividade. Somos, enfim, incapazes de compreender a humanidade. Sabemos que, em um dado momento, as ciências humanas acreditaram ser possível eliminar a noção de homem, considerada absolutamente inútil. Assim, a incompreensão vem do conhecimento mais evoluído, o que é também um dos aspectos perversos de nosso individualismo, que nos leva sempre a nos autojustificar em relação a outrem e que explica a incompreensão crescente entre um casal, entre o homem e a mulher, entre os pais e as crianças, entre as crianças e os pais etc. Temos um problema ao mesmo tempo de alcance planetário, já que comporta em si a ameaça de guerras e de conflitos, mas que também é um câncer no seio de nossas próprias sociedades. Seria quase possível dizer que o mundo está explodindo de incompreensão. Então, chegamos, talvez, ao problema-chave, que é bastante antigo e que possui traços totalmente novos. Trata-se de como reformar as relações entre os seres humanos, como abolir a iniquidade, a exploração, a dominação, o desprezo, o ódio.
 
De certo modo, é um problema que, é bastante antigo. Temos um sermão da montanha que nos diz “amai-vos uns aos outros”. Mensagens de misericórdia nos vêm de certas religiões. Mas este problema muito antigo não foi resolvido por essas mensagens. Creio que podemos pensar que quatro caminhos foram tentados ou esboçados em nossa história e na história contemporânea, sem que nenhum tenha alcançado sucesso. 
 
Ora, o primeiro caminho é a reforma das estruturas sociais, a reforma das instituições. É um caminho que parece absolutamente necessário, mas, retomando o exemplo da União Soviética, não é suficiente transformar radicalmente as instituições, destruir a classe capitalista, criar uma nova ordem econômica, porque as raízes da exploração subsistem e recomeçam. Dito de outra forma, a mudança não deve ocorrer apenas nas estruturas materiais, mas também nos espíritos, nas mentalidades humanas. No entanto, isso não quer dizer, em absoluto, que se deva eliminar toda forma de reforma das instituições, de reformas sociais, mas trata-se de uma condição necessária, que não é suficiente.
 
É preciso, então, a reforma pela educação. Naturalmente, a educação poderia permitir a mudança de mentalidades e, de minha parte, acredito nisso, pois consagro muitos esforços nesse sentido, mas sei muito bem que a reforma pela educação necessita da reforma dos educadores. Karl Marx dizia: “Quem educará os educadores?”. Evidentemente, eles necessitam de uma reeducação. Isso é possível. As reformas começam sempre pelos movimentos desviantes que, depois de certo tempo, ao adquirirem força e forma, podem se tornar forças na sociedade. A reforma da educação é, portanto, necessária. Necessária, mas insuficiente, já que ela própria está ligada à reforma da sociedade.
 
Em seguida, temos a reforma, digamos, propriamente cultural, que é a reforma da vida, a reforma das pessoas e a reforma moral.
 
Neste ponto, tentemos observar onde estão os problemas desses quatro caminhos. 
 
O primeiro, que significa uma reforma das instituições em um período de globalização, no qual a principal característica de nossa época planetária é a ausência de instituições capazes de regular e controlar a vaga furiosa que varre nosso planeta. Com certeza, não é suficiente que a reforma deva ser feita ou buscada apenas no plano planetário, mas trata-se, é claro, de um desafio. É necessário, naturalmente, que haja uma reforma em cada sociedade, em cada nação, de forma democrática. Quando uso a palavra democracia, a concebo não como sendo, digamos, de certo país, como a democracia tal qual ela esteja instituída, por vezes de forma bastante sólida com regras que são respeitadas, pluripartidarismo, conflitos e, ao mesmo tempo, respeito mútuo de opiniões. Essas democracias são apenas certas formas de democracia. A democratização das sociedades deve ir muito mais longe e ser mais profunda. Deve-se perseguir o encaminhamento democrático e, sobretudo, onde ele não começou, onde ele é embrionário, deve ser iniciado ou desenvolvido.
 
Estou convencido de que há uma crise de nossa civilização ocidental, que se espalhou pelo mundo e, de certa forma, ocidentalizou o planeta. Se há uma crise dessa civilização, deve-se pensar em uma política de civilização, ou seja, uma política que possa ver uma forma de reformar essa civilização, uma reforma das instituições. Em seguida, há a construção de instituições planetárias para os problemas vitais. Por que uma instituição planetária faria sentido hoje? Porque, ao longo dos últimos anos, houve a emergência da infraestrutura de uma sociedade mundial. Uma sociedade necessita de um território, necessita de sistemas de comunicação, necessita de uma economia. Hoje, o planeta é um território que possui o sistema de comunicação mais avançado que nenhuma nação conheceu no passado. Possui uma economia, que não é regulada, mas é incontrolável. Além disso, essa sociedade não possui instituições. As Nações Unidas estão quase paralisadas, com um poder muito débil. Não há um direito internacional, apenas tentativas tímidas de criação de um direito penal, com o Tribunal de Haia, com todas as dificuldades. Ou seja, temos o hardware de uma sociedade mundial, mas não temos o software, a política, as ideias e, sobretudo, a consciência comum de uma pátria Terra. Não temos a política planetária necessária. De agora em diante, devemos pensar também no plano da estrutura das sociedades e instituições. Podemos e devemos fazê-lo.
 
O segundo ponto sobre a educação é que se deve lembrar, incessantemente, que a função, a finalidade da educação é auxiliar os espíritos a enfrentarem a vida e suas incertezas, a reformarem o pensamento para considerar os problemas fundamentais e globais e a produzirem a compreensão humana.
 
A terceira reforma cultural comporta uma reforma da vida. Existiu no final do século 19 um movimento na Alemanha que se chamou Lebenreforme, a reforma da vida, como reação à vida urbana, industrial, monetarizada e prosaica. Houve também um pequeno aglomerado em um lugar da Suíça italiana, que se chamava Monte Verità. Neste local, formou-se um grupo para criar uma comunidade, com o sentimento de que era necessário retornar à natureza. Em seguida, o movimento de retorno à natureza desenvolveu-se na Alemanha, com o Vandervogel. Havia a ideia de que era necessário recuperar a medicina natural. Era necessário atribuir um lugar vital à estética e em Monte Verità tratava-se da estética do corpo, da beleza do corpo, da dança, como se faz no SESC. Havia uma busca e uma prática da convivência e, por isso, de comunidade. Evidentemente, esta experiência desintegrou-se com a Primeira Guerra Mundial, mas ela indica, de certa forma, o sentido de uma reforma de vida que se coloca hoje, com o sentimento de que a qualidade de vida se torna algo cada vez mais necessário em relação ao domínio do quantitativo e que, em toda parte onde exista o que chamamos consumismo, o consumo desenfreado, a divisa, é “melhor”. Menos, mas melhor. Deve se pensar que as ideias de convívio foram retomadas por Ivan Illich, deve-se pensar que há indícios em toda parte para tentar escapar dos limites mais duros da vida urbana, não restritos aos finais de semana e às férias. A ideia de reforma da vida deve se desenvolver cada vez mais e, além disso, diz respeito, indiretamente, ao conjunto das estruturas, porque, se buscarmos a qualidade dos produtos alimentares, haverá o desenvolvimento da agricultura biológica, que não é a grande agricultura intensiva, escapando assim da obsessão terrificante da rentabilidade que provocou a vaca louca e outras palavras que surgirão em breve, causadas apenas pela busca da rentabilidade, ou seja, na verdade, tudo se comunica. Quando se tem um pouco o sentido da complexidade, vemos que não se pode considerar as coisas isoladamente.
 
Portanto, há a reforma da vida e há também o que parecia reservado unicamente às sabedorias filosóficas ou religiosas, a reforma interior, a reforma moral. Nas sociedades ocidentais, vemos os sintomas dessa necessidade, os gurus, o hinduísmo, o zen budismo, a ideia, portanto, de que se deve mudar algo em si mesmo, que se deve escapar dos mecanismos terrificantes de uma civilização que é fundada unicamente na conquista de bens materiais e de poderes materiais sobre a natureza. Nossa civilização que se criou e se polarizou essencialmente para o exterior, esqueceu o interior, mas a necessidade interior existe. Essa necessidade interior, cada vez mais sentida, deve corresponder à reforma do ego, que deve levar à compreensão de outrem. Existe outro caminho, que pode ser muito perigoso, mas que, talvez, possa ser também bastante útil porque a ciência é ambivalente. As ciências do cérebro, do espírito, permitirão que se elaborem produtos que possibilitarão a cada pessoa, não tanto a manipulação do cérebro, o que também pode ocorrer, mas estimular as próprias qualidades cerebrais e mentais.
 
A ideia que gostaria de propor é de fazer convergir e conjugar essas diferentes tentativas de reforma que, repito, se for cada uma em separado, é insuficiente. Ou seja, conjugá-las através da educação, através da sociedade, através da política através da reforma pessoal, por uma reforma política. É uma perspectiva e não estamos nem mesmo no começo do começo. Mas é fundamental que iniciemos pela educação e pela cultura. Então, poder-se-ia dizer, que é evidente, que tudo é possível. É possível reformar as instituições, é possível reformar a educação, é possível reformar a vida. Mas essas são possibilidades totalmente impossíveis hoje. Impossíveis na cegueira atual, no desencadeamento de furores, na fragmentação do conhecimento, na explosão das forças de morte e, no entanto, eis-nos aqui. Temos a impressão de que, ao contrário, não apenas somos impotentes, mas que seremos vencidos, que as forças de morte irão se desencadear e que a probabilidade - e aqui se deve dizer o que significa a palavra provável, significa aquilo que um observador dado, num local dado, num tempo dado, que dispõe das melhores fontes de informação possa supor que seja um evento futuro - para nós, o futuro é a degradação da biosfera, os conflitos nucleares, o câncer do Oriente Médio que vai se propagar. Hoje, o provável é catastrófico. É muito triste, porque, se isto for verdade, veremos a humanidade em xeque no mesmo momento em que ela poderia se realizar em nível planetário.
 
Reflitamos um pouco a esse respeito, assim mesmo, primeiro porque, no curso da história, o provável nem sempre ocorreu e, ao contrário, o improvável se deu, mesmo que frequentemente de forma bastante feliz. Cinco séculos antes de nossa era, havia um enorme império, o império persa, que quis atacar uma cidadezinha minúscula, um povoado que era Atenas. Os exércitos desse império atiraram-se sobre a Grécia. A probabilidade era a destruição e aniquilação total de Atenas. Pois bem, Atenas resistiu ao longo de uma primeira guerra médica. Os persas voltaram a atacar e, ao longo da segunda guerra médica, tomaram e incendiaram Atenas. Mas a frota grega, que estava no golfo de Salamina, graças à estratégia genial de Temístocles, levou a frota persa a uma armadilha e ela foi destruída, mesmo sendo muito mais numerosa. Graças a esse acontecimento improvável, pouco tempo mais tarde houve o nascimento da democracia e da filosofia, dois acontecimentos históricos de importância incalculável. O improvável, portanto, pode acontecer.
 
Agora, o que pode ocorrer? Não sabemos por que, quando um sistema não pode tratar de seus mecanismos vitais, ele se desintegra e se destrói. Mas, nesse momento, ele pode também expelir ou suscitar um metassistema, um sistema mais rico, dotado de mais capacidades e aptidões e que pode tratar dos problemas que o sistema não pode tratar. É o que suscita uma metamorfose, a palavra “meta” quer dizer “além”, “morfose”, forma. Forma nova que sai da forma existente. O que ocorre numa metamorfose? Veja o que se passa dentro de uma crisálida, quando uma lagarta entra para se tornar uma borboleta. Todos os sistemas imunológicos da lagarta voltam-se contra ela mesma e começam a se destruir. Destrói tudo, mesmo seu sistema digestivo, sendo mantido apenas o sistema nervoso e essa destruição é, ao mesmo tempo, a criação de um novo ser, a borboleta, que, com grande dificuldade, assim que a crisálida é rompida, poderá alçar voo. 
 
Hoje, pode-se perguntar, será que as grandes destruições que ocorrem não podem ser a face terrível de outro processo, de uma nova criação? Apenas, como se sabe, o que há de terrível e de magnífico com a criação é que uma criação é impensável, inconcebível, invisível antes que ela ocorra, antes que ela esteja terminada. Mesmo a criação de uma obra prima musical, a Kyrie de Mozart, ninguém pode inventá-la, imaginá-la antes que ela tenha sido criada. Tomemos o caso da origem da vida. Hoje, podemos supor como ela ocorreu. Em um dado momento, um turbilhão de moléculas diversas, enriquecendo-se cada vez mais, chega ao limite da capacidade do sistema físico ou químico de organizar suas moléculas. Neste momento, ocorreu esse fenômeno imprevisível e inconcebível, que foi o do nascimento de uma nova organização, que foi capaz de organizar cada vez mais moléculas em uma célula e de criar, em seguida, multicélulas capazes de se reproduzir, capazes de calcular, capazes de conhecer, dotadas de todas as qualidades da vida.
 
É evidente que, se tivéssemos observadores científicos vindos de outro planeta e que observassem o turbilhão, as tormentas, a tempestade durante as quais a vida estava surgindo, eles teriam dito, “mas veja, um planeta onde nada acontece, é o caos puro, não há nada de interessante nesse planeta” e eles teriam feito seu relatório ao responsável pela pesquisa científica em Alfa Centauro. Mas, tomemos o caso desses mesmos observadores que, por curiosidade, retornassem à Terra três ou quatro milhões de anos mais tarde. Ou seja, eles chegariam à Terra há mais ou menos um milhão de anos. O que eles veem? Um belo planeta, com plantas, animais. Muito bonito, muito rico. Mas, é curioso, há um pequeno bípede sem pelo, que corre e corre com uma clava para apanhar um coelho e, atrás dele, um tigre corre para apanhar o pequeno bípede. É um ser ridículo, não é mesmo? Ele jamais será capaz de coisa alguma, nada acontecerá com seres semelhantes. Ao contrário, as formigas são muito mais inteligentes, muito mais organizadas e ali vai ocorrer uma evolução magnífica. Novo erro. O improvável ocorreu, a partir do pequeno bípede.
 
Então, podemos dizer o mesmo da origem das sociedades históricas. Sabemos que a Terra foi povoada por sociedades arcaicas com algumas centenas de membros, sociedades sem Estado, sem classes sociais, sem cidades, sem filosofia, sem agricultura. Depois, em um dado momento, em alguns pontos do globo, quatro ou cinco pontos, fenômenos, que ainda não compreendemos bem, permitiram a criação de um novo tipo de sociedade, com agricultura, com cidades, com Estado, com classes. Ocorreram muitos desastres, as guerras que conhecemos, mas isto é para lhes dizer que aqui também temos a improbabilidade realizada e fenômenos inconcebíveis antes de sua criação.
 
Portanto, há um elemento de otimismo nesta visão, em que o espírito pessimista veria a obscuridade total para o futuro e as possibilidades sombrias que se anunciam. Creio que há uma possibilidade e refiro-me a três autores, Marx, Rousseau e Heidegger. O jovem Marx, em uma obra que se chama Manuscrito Econômico-Filosófico, falava do homem genérico. Não se tratava absolutamente de genética, no sentido da genética moderna. O homem genérico significa as possibilidades geradoras, criativas que estão na realidade humana. Pode-se dizer, se assim se deseja, que toda a história humana é uma revelação de potencialidades, tanto no gênio musical, filosófico, artístico, quanto no horror de Stálin ou Hitler. O homem genérico significa as capacidades genéricas. Mas essas capacidades genéricas humanas estão imobilizadas, limitadas, endurecidas em nossas estruturas sociais e é necessário que ocorra algo, justamente a crise, para que haja uma revitalização das capacidades criadoras genéricas.
 
Nesse sentido, Rousseau tinha uma visão ingênua da bondade natural do homem, porque o homem não é naturalmente bom. Ele é bom, ele é mau, ele é tudo. Mas, o que desejava dizer de Rousseau é que ele sabia muito bem que existem possibilidades no ser humano e que muitas dessas possibilidades estão bloqueadas, porque existem fenômenos de esclerose e de degradação. Dito de outra forma, o cego tem a lucidez de ver que o que chamamos de progresso, que não é sempre uma conquista do melhor, mas que há uma degradação das possibilidades.
 
Assim, como resultado, faço aqui a citação de Heidegger, que diz: “a origem não está atrás de nós. A origem está à nossa frente”. O sentido que dou a essas palavras, como se pode ver, é que temos uma nova origem à nossa frente. Possível, mas certa. Podemos ir em direção de um novo começo. Podemos nos preparar para a refundação. Devemos esperar pela regeneração. Mas, bem entendido, não se deve mais continuar sobre este caminho. É algo enorme, gigantesco, aleatório, incerto que se apresenta à nossa frente. Mas é talvez a maior missão, a mais nobre de toda a história humana, que é aquela que consiste não apenas em salvar a humanidade do desastre na direção do qual ela vai, mas, talvez, através dessa salvação, preparar, quem sabe, um mundo novo, que não vai resolver todos os problemas automaticamente, mas que abrirá um caminho, um novo caminho. Também, sem programas, sem planificação, sem discurso sobre o que deve ser feito para a abertura, nossa abertura, que deverá ser criadora. Temos apenas duas ou três tochas, a paixão, o amor e a inteligência e, agora, podemos ir. “Caminante, no hay camino, el camino se hace al andar”, como disse o poeta espanhol, caminhante, o caminho se faz ao andar!
 

[i] Esta conferência foi transcrita e traduzida na época em que foi feita. O áudio não foi arquivado. Portanto, o texto foi revisado em 2019 sem cotejar com o áudio original. 

fonte: Conferência de encerramento do Seminário Internacional Educação e Cultura, realizado no SESC Vila Mariana, agosto/2002 – São Paulo[i].