Para um pensamento do Sul

Edgar Morin

O que é o Sul? Em primeiro lugar, trata-se de uma noção falsamente clara. Se é evidente que o Sul se define em relação ao Norte, um sul - como o Magrebe em relação à Europa - é um norte para a África. Na Europa, a Itália é um país do sul europeu que faz limite norte com Milão, a Lombardia. País do norte, a França tem o seu sul: a Provença, o Languedoc. Metrópole do sul, São Paulo é muito impregnada de norte. A noção de sul é relativa. Devemos, portanto, evitar qualquer reificação ou substancialização do termo “sul”. Quanto ao Norte, ele também não pode ser concebido como entidade geográfica. Ele é muito heterogêneo e não falamos obviamente da Rússia, mais próxima culturalmente do sul europeu do que do norte anglo-saxão, nem evidentemente da Sibéria. Ele tampouco pode ser entendido como um tipo ideal, na maneira concebida por Max Weber. Não é, igualmente, uma noção redutora que esqueceria todas as qualidades oriundas do Norte. Na verdade, o que hoje denominamos Norte era há algumas décadas chamado de Ocidente, quando o opúnhamos ao Oriente; ele se tornou Norte, oposto do Sul, quando o termo  "Terceiro Mundo” caiu em desuso. Para o Sul, existe de fato uma hegemonia do Norte, que é a hegemonia da técnica, da economia, do cálculo, da racionalização, da rentabilidade e da eficiência. Essas noções não devem ser rejeitadas, embora um pensamento do Sul talvez deva se expressar de maneira consciente e crítica a respeito delas pelo fato de que essa hegemonia insufla intensamente seu dinamismo no planeta como um todo. E mais ainda porque o Norte está atualmente devorando — ou tentando devorar — o Sul. 

Existem evidentemente vários “suis”, muito diferentes uns dos outros, mas que são submetidos à concepção única vinda do Norte, do atraso, do subdesenvolvimento, do imperativo do desenvolvimento e da modernização. Essa visão impede perceber que nos “suis” existem qualidades, virtudes, artes de viver, modos de conhecimento que deveriam não apenas ser salvaguardados, mas também propagados pelos “nortes”. Para chegar à plena consciência das qualidades e virtudes do Sul, seria preciso um pensamento do Sul. Um pensamento como esse ainda tem que ser elaborado a partir das experiências dos diversos “suis”.

Um esclarecimento preliminar é necessário. Afirmei que Norte e Sul eram noções relativas. É preciso acrescentar que não é preciso idealizar nem desvalorizar uma ou outra. Qualquer cultura ou qualquer civilização (aqui a distinção entre ambas pouco importa) têm qualidades, virtudes, ilusões, imperfeições.

Oriunda do Ocidente europeu, desenvolvida no mundo anglo-saxão, a cultura do Norte trouxe a democracia representativa, os direitos humanos, os direitos da mulher, as autonomias individuais. Mas também possui carências profundas concentradas no poder e nos desenvolvimentos materiais; ela tem suas cegueiras, suas ilusões, expressas até uma época recente na ocultação da relação vital entre o ser humano e o mundo natural ou no mito de um progresso concebido como lei inelutável da história humana.

Do lado dos “suis”, numerosas culturas mantêm a autoridade incondicional dos poderes políticos e religiosos, a dominação do homem sobre a mulher, interditos de todos os tipos. A totalidade da reflexão aqui proposta é a da recusa da redução (de um complexo a um de seus elementos), da disjunção (que separa ideias aparentemente antagônicas e, no entanto, complementares).

Qual poderia ser a contribuição do mediterrâneo para a elaboração de um pensamento como esse? Existe a herança cultural mais antiga que, sem dúvida, é a de uma divindade universal, que o faraó Akenáton quis reconhecer e adorar por meio do sol. O deus universal reapareceu na Bíblia e nos Evangelhos. Ele repele os deuses múltiplos das religiões politeístas. Em minha opinião, um pensamento do Sul conciliaria o sentido da diversidade concreta da natureza expressa pelos deuses dos politeísmos antigos, principalmente o grego e o latino, assim como o sentido da unidade do universo que o Deus único exprime. 

A partir de Paulo de Tarso surgiu uma religião dirigida a todos os seres humanos em que “não há mais judeus nem gentios”. Ela contém uma fonte de universalidade concreta que se dirige à multiplicidade humana em suas diferentes etnias e que se reencontrará no Islã e, depois, sob forma laicizada, no humanismo europeu.

Encontramos outra fonte de universalidade na herança cultural helênica: qualquer ser humano é dotado de razão, o que lhe permite exercer sua competência na política da pólis. A deusa Atena não dirige a cidade de Atenas, ela a protege. Quem dirige é a assembleia dos cidadãos. E na democracia, como na  filosofia ateniense, o debate desempenha um papel central: é o caminho para a verdade. Além disso, a filosofia se define não somente como uma busca de sabedoria mas, ainda mais, como uma vontade de reflexão acerca de todas as coisas.

Precisamos também assumir a herança universalista do Império Romano expressa no édito de Caracala, que reconheceu os direitos de cidadão romano a qualquer habitante do Império, independentemente de sua origem étnica.

É necessário, igualmente, assumir a mensagem do Renascimento — outra mensagem do Sul — e é essa mensagem que precisamos assumir e retomar expressa no termo “problematizar”. O Renascimento é um movimento do espírito no qual se problematiza o mundo: “O que é o mundo?” Problematiza-se o homem: “O que é o homem?” Problematiza-se a natureza: “O que é a natureza?” Problematiza-se Deus: “De qual Deus falamos? Ele existe?”

Um humanismo nasceu a partir dessa problematização. A palavra “humanismo” tem duas faces. Há uma face que precisamos abandonar. É a do homem dominador, destinado a se tornar senhor e mestre da natureza, segundo a formulação de Descartes. Devemos rejeitar esse humanismo arrogante, porque sabemos, de agora em diante, que qualquer vontade de dominar a natureza degrada, não apenas essa natureza, mas também nossa humanidade,  inseparavelmente ligada a ela, que depende dela ainda mais do que ela  de nós. A outra face do humanismo é a do valor e da dignidade de todo ser humano, qualquer que seja ele, venha de onde vier.

É esse humanismo que devemos não apenas assumir, mas também propagar nesta era planetária, em que toda a humanidade vive uma comunidade de destino.

Temos que assumir também a herança cultural do Renascimento, porque hoje, de novo, devemos problematizar o mundo. Nosso universo não é mais o de Copérnico e o de Galileu, no qual o sol se tornara central. É um universo absolutamente gigantesco, onde não há mais centro, onde a Terra é o minúsculo planeta de um minúsculo sol, astro menor de uma pequena galáxia periférica. Devemos problematizar o real: onde está a “verdadeira” realidade? Nas partículas e nos átomos? Nos objetos de nossa percepção? Na nossa mente? O que significa a realidade hoje em dia? 

Devemos reproblematizar nossa relação com a natureza, que temos considerado como feita de objetos a serem manipulados, domesticados ou destruídos, quando somos inseparavelmente e vitalmente ligados a ela. Devemos reproblematizar nossas crenças e credos, a começar pela nossa crença num progresso irreversível da humanidade.

Precisamos, enfim, problematizar o próprio instrumento da problematização que é a razão. Devemos começar a entender que a razão não é única, monolítica, simples. Existe uma racionalidade aberta que reconhece os limites de sua capacidade de apreensão e que não se pode senão reconhecer o mistério do universo.

Existe a racionalidade teórica, que elabora sistemas de ideias. Existe a racionalidade crítica, que ataca as crenças infundadas. Existe a racionalidade autocrítica, que examina racionalmente a própria cultura e a própria pessoa. Existe a razão fechada, incapaz de acolher os argumentos e os fatos que a contradizem. Existe a racionalidade quente, estimulada por uma paixão. E existe a racionalidade glacial do cálculo. Existe uma racionalidade degenerada, que é a racionalização, fundada numa lógica implacável e limitada. Existe a racionalidade instrumental, que está a serviço dos delírios e crueldades humanas. Temos, evidentemente, que regenerar o que a virtude da racionalidade contém: a capacidade teórica, a capacidade crítica, a denúncia dos dogmas, a resistência ao anátema e, sobretudo, também a capacidade autocrítica, que ainda é muito subdesenvolvida.

Precisamos misturar essas heranças culturais mediterrâneas com as heranças culturais africanas e sul-americanas. Por mais diferentes que sejam, todas elas comportam modos míticos ou religiosos de integração no cosmo e na natureza, dos quais devemos extrair a verdade profunda e ligá-la à nossa nova consciência ecológica, que reconhece nossa integração na biosfera, algo que o devir da mundialização continua a degradar, impulsionado pelo Norte. Existe a herança das tradições de solidariedade, que implica integrar e não destruir. Existem múltiplos conhecimentos, saberes sobre o mundo mineral, vegetal e animal que temos que incorporar. Existem artes de viver muito diversas e ricas, inclusive nas pequenas sociedades indígenas da América do Sul e da África.

Deste modo, ao reunir e conjugar todas essas heranças culturais, um pensamento do Sul é capaz de realizar uma nova e grande problematização.

Comecemos por problematizar a mundialização. Iniciado no fim do século xv com a conquista das Américas e a navegação ao redor do globo, esse processo se desenvolveu na e por meio da colonização e da escravidão e, a partir dos anos 1990, se desdobrou sob a forma da globalização. Esse processo prossegue de maneira desenfreada. A ciência, a técnica, a economia, o lucro são os motores desse dinamismo que propulsa a nave espacial Terra. Este dinamismo científico-técnico-econômico produziu novos perigos para toda a humanidade, com a proliferação das armas nucleares, com a degradação da biosfera, com as policrises planetárias e, também, com os novos conflitos étnico-religiosos que dilaceram nosso planeta e podem provocar a utilização das armas de aniquilamento. Somos testemunhas e vítimas atuais de uma crise econômica decorrente da ausência de regulação de uma economia mundial corrompida pela especulação financeira. Essa crise se inscreve num conjunto de crises. Crise da relação entre os seres humanos e a natureza, como o provam as múltiplas degradações da biosfera. Crise das sociedades tradicionais, que tendem a se desintegrar sob o dinamismo dessa mundialização, que, na verdade, é uma ocidentalização. Crise da própria modernidade, já que não só a modernidade alcançada nos países da Europa ocidental e nos Estados Unidos não cumpriu as promessas de uma vida melhor, de uma vida emancipada, de uma vida harmoniosa, mas, ao contrário disso, criou um novo mal-estar na civilização. Crise da modernidade também, no sentido em que o que justificava seu devir era a ideia transformada em dogma universal no século xx de que o progresso era uma lei implacável da história humana. Acontece que, progressivamente, descobrimos que motores do progresso eram profundamente ambivalentes, como a ciência, a técnica, o desenvolvimento. Descobrimos também que a promessa morreu, que o futuro é incerto, que o amanhã é desconhecido. A autodestruição da ideia de progresso nos levou a uma crise do futuro. E diante da crise do futuro, da angústia do presente, o que sobra a não ser à volta às raízes, isto é, ao passado? O filósofo tcheco Jan Patocka formulou a visão mais correta acerca desse tema: “O devir é problematizado e ele o será para sempre.” Isso quer dizer que a aventura humana é uma aventura desconhecida.

Assim, todas essas crises desembocam na crise do desenvolvimento. É certo que o desenvolvimento trouxe bem-estar, autonomias individuais, emancipações por meio da criação de novas classes médias. Mas o desenvolvimento trouxe também a destruição das solidariedades tradicionais, novas corrupções, crescimento das desigualdades por toda parte do globo, enormes misérias. Presenciamos esse conjunto de fatos na ásia, na América Latina, na África, em megalópoles com imensos subúrbios ou periferias empobrecidas. Como afirmou com muito acerto o pensador iraniano Majid Rahnema, foi a miséria que trouxe consigo a pobreza. Certamente uma parte da pobreza foi dissipada pela prosperidade das novas classes médias, mas a pobreza que permitia um mínimo de vida digna foi superada em grande parte pela miséria que implica dependência, humilhação.

Vivemos, então, a crise do desenvolvimento, que é, ao mesmo tempo, a crise da ocidentalização e a crise da mundialização. São três faces da mesma crise. A crise da mundialização é, também, a crise da unificação tecnoeconômica do globo. Essa crise ocorreu após o colapso das economias ditas socialistas na União Soviética, na China, no Vietnã, na e pela mundialização do capitalismo e das telecomunicações, que permitem que todos os pontos do planeta estejam em conexão imediata (telefone, fax, internet). Presenciamos uma fantástica unificação do planeta. No entanto, essa unificação coincide com decomposições de todas as modalidades: a União Soviética se desagrega em nações novas e, por vezes, antagônicas, como o Azerbaijão e a Armênia e, recentemente, a Geórgia e a própria Rússia; logo depois de 1990, a ofensiva dos nacionalismos croata e sérvio desagrega uma nação aparentemente integrada como a Iugoslávia e produz uma guerra atroz contra a qual a Europa se mostrou impotente. Depois a Tchecoslováquia se dividiu em duas regiões e, a partir de 1989, constitui a chamada República Eslovaca. Um pouco por toda parte, forças centrífugas estão em ação no seio das nações e das etnias que reivindicam sua transformação em nações.

Essa coincidência pode ser compreendida porque a unificação tecnoeconômica produziu a desarticulação sociocultural: essa unificação traz consigo uma homogeneização civilizacional que, em inúmeros casos, ameaça as originalidades e as singularidades culturais, étnicas, nacionais. Daí decorre uma reação de retorno à nação, à etnia e, até mesmo, à religião. Cada vez mais, o processo de unificação provoca ainda mais desagregação, do mesmo modo que a incerteza histórica trouxe simultaneamente a perda da fé no progresso, a perda da esperança num mundo novo, a angústia do presente, o que contribuiu para o fechamento das nações e das mentes, para o retorno ao passado religioso, étnico e/ou nacional.

Assistimos ao desencadeamento combinado de duas pragas para a humanidade. A primeira praga é a unificação abstrata e homogeneizante que destrói as diversidades. A segunda é o fechamento das singularidades em si mesmas que,  desse modo, se tornam abstratas, porque se isolam do resto da humanidade. Vivenciamos o processo de duas abstrações de natureza diferente.

É preciso entender aqui o vínculo entre a unidade e a diversidade humana. É evidente que existe uma unidade anatômica, genética, fisiológica, cerebral, afetiva de todos os seres humanos, mas essa unidade se expressa de uma maneira extremamente diferenciada. Não há dois indivíduos que se assemelhem: mesmo gêmeos homozigotos se diferenciam um do outro. Acontece o mesmo com a cultura (isto é, tudo o que é aprendido: saberes, fazeres, crenças, mitos etc.), marca universal na humanidade que só existe por intermédio das culturas singulares — a música só existe por meio das músicas etc. — o que faz com que o tesouro da unidade humana seja a diversidade e o da diversidade humana, a unidade. Leibniz afirmava: “O uno conserva e salva o múltiplo.” Essa recomendação fundamental poderia nos indicar um caminho para sair do antagonismo entre a diversidade fechada em si mesma e a unidade abstrata, um caminho que um pensamento do Sul deveria conceber.

Estamos confrontados com a crise da humanidade que não consegue atingir a humanidade. Estamos confrontados com um planeta que ao mesmo tempo em que dá continuidade ao dinamismo triunfante da técnica, da ciência e da economia, coloca-se em situação perigosa. Com uma grande lucidez, Heidegger afirmava que apesar de acreditarmos estar numa nova era do Iluminismo, entramos na noite e na escuridão.

O que é hegemônico no Norte produz agora a cegueira a respeito da globalização e da crise da humanidade. É a cegueira do pensamento fundado essencialmente no cálculo, cego para  a existência, a alegria, o sofrimento, a infelicidade,  a consciência, cego para o lado humano da humanidade.

A visão produtivista/quantitativista do Norte ignora as qualidades e, portanto, a qualidade de vida. Por isso, uma das mensagens do Sul deveria ser: “Antes melhor do que mais” e por vezes até mesmo “menos, porém melhor!” Claramente, quando se trata dos despossuídos, o mais deve caminhar com o melhor. Mas quando se observa o processo mundial de produção e consumo de objetos, uns com qualidades ilusórias, que se tornam rapidamente outros, ficando obsoletos, a maioria deles descartáveis e não reparáveis; modas superficiais, desperdícios de energias, tempos, bens, devemos nos conscientizar de que nossa civilização suscita e sofre de inúmeras intoxicações consumistas.

O pensamento dominante do Norte é fundamentado na redução do complexo ao simples e na disjunção, ou seja, na separação do que, na verdade,  é inseparável. O espírito de redução permitiu isolar a célula, a molécula, o átomo, a partícula. O espírito de disjunção possibilitou os desenvolvimentos das disciplinas produtoras dos conhecimentos que nos levaram a rever inteiramente nossa visão do mundo e da vida. A especialização das disciplinas fechadas, estranhas umas às outras, desemboca, porém, no primado de um pensamento que se torna míope, que isola os objetos de seus contextos e de seus laços naturais. Esse pensamento é cego ao que é global e fundamental, porque os conhecimentos separados não permitem apreender a complexidade dos fenômenos globais e o caráter fundamental de nossos problemas vitais.

O pensamento fundado na noção de homo economicus, determinado unicamente pelo interesse pessoal, é cego a tudo o que escapa desse interesse: o amor, a dádiva, a comunhão, a brincadeira. Podemos mesmo dizer que as conquistas do Norte, tão importantes no plano do individualismo, ao permitirem a autonomia da vida, produziram, ao mesmo tempo, desenvolvimentos  egoístas e egocêntricos ligados à degradação das  solidariedades tradicionais e do sentimento de responsabilidade em relação ao todo do qual somos partes.

Nos tempos atuais existem dois princípios na ética que são vitais para os indivíduos e para as sociedades humanas: a solidariedade e a responsabilidade.

Na visão hegemônica do Norte, a expertise de um especialista competente numa área substitui o pensamento que religa áreas diferentes. A expertise é parcelar, o pensamento religa. Quem é que triunfa diante da perda do que é fundamental e do que é global? O que triunfa são as ideias parcelares. Ao mesmo tempo, o que triunfa são ideias globais ocas, que ignoram principalmente os laços entre unidade e diversidade. O que domina é a causalidade mecânica, a causalidade determinista que é a das máquinas artificiais que produzimos nos grandes complexos industriais. Aplicamos cada vez mais essa causalidade  determinista cronometrada, linear, aos indivíduos e às sociedades.

No entanto, é preciso considerar que nem o indivíduo humano nem a sociedade humana são máquinas triviais. Uma máquina trivial é uma  máquina totalmente determinista, cujos outputs são conhecidos quando os inputs são também conhecidos; se conhecemos as informações  e os programas que a integram, conhecemos  os comportamentos e os resultados dela decorrentes. Ocorre que tudo o que aconteceu à humanidade decorre do fato de que não somos máquinas triviais. Podemos também considerar que os grandes profetas — Jesus, Maomé —, que  os grandes filósofos, os grandes cientistas, os grandes músicos — Mozart, Beethoven —, os grandes estadistas não eram máquinas triviais, já que levaram em consideração o inesperado e o criador. Cada um de nós também, mesmo subjugados a lógicas triviais, escapa, porém, da trivialidade por intermédio de nossas aspirações, nossos sonhos, nas nossas súbitas manifestações amorosas, estéticas, transgressoras.

Cronometrada e hiperespecializada, a lógica da eficácia, da previsibilidade, da “calculabilidade” cronometrada e hiperespecializada se espalhou em inúmeros setores de nossa vida. A começar pelas administrações públicas, nas quais a burocracia gangrena a atividade gestionária. Ela assume os comandos do mundo urbano e até mesmo do mundo rural, com a industrialização da agricultura e da criação de gado. Invade também a educação, para voltá-la à formação de profissionais eficientes e rentáveis. Invade a vida cotidiana. Invade o consumo, as regras, os lazeres, os serviços. Há o que Ritzler chama de “a macdonaldização da sociedade”. Em outras palavras, uma forma fechada de racionalização está se espalhando por todo o planeta e essa racionalização produz uma irracionalidade total.

Fala-se do pensamento único na política. Mas o pensamento único na política não é senão um dos ramos de um pensamento, ao mesmo tempo redutor e disjuntivo, que reina em todas as áreas e comanda, igualmente, os opositores do pensamento único, que fazem denúncias justas, mas são incapazes de traçar qualquer argumento que possa nos conduzir a um caminho novo.

A lógica do Norte, enfim, é cega às realidades do Sul, consideradas por ela como atraso, arcaísmo, preguiça. O pensamento do Norte é feito para tratar os problemas de organização técnicos, práticos e quantificáveis, ou seja, a prosa da vida. Acontece que a vida humana não comporta apenas a prosa. A prosa é o que fazemos por obrigação, por imposição, para ganhar nossa vida. E ganhamos nossa vida, muitas vezes perdendo-a. A prosa nos faz sobreviver. Viver significa, entretanto, viver poeticamente, isto é, no amor, na comunhão, na realização de si, na alegria e, no limite, no êxtase. Retomo aqui a expressão de Hölderlin: “Poeticamente o homem habita a Terra.” Na realidade, habitamos a Terra prosaica e poeticamente. A prosa tende, porém, a invadir nossa vida. Será que o pensamento do Sul teria como missão relembrar unicamente o caráter essencial da poesia do viver? Ainda mais pelo fato de que no Sul existem as artes de viver, arte de viver em praça pública, arte de viver de maneira extrovertida, arte de viver na comunicação, arte de viver que comporta a hospitalidade, arte de viver que preserva as qualidades poéticas da vida.

Não digo isso para rejeitar em bloco a lógica do Norte. Penso que precisamos aclimatar o que vem do Norte. é necessário que nos beneficiemos das contribuições do Norte. É preciso fazer isso principalmente no que concerne aos direitos da mulher, frequentemente muito subestimados no Sul, à emancipação dos adolescentes e da juventude, que é uma contribuição positiva às ideias de autonomia individual, desde que combinadas ao sentimento das solidariedades que frequentemente existe no Sul. Creio que é preciso integrar as contribuições benéficas do Norte, recusar seus aspectos perversos e nocivos e, sobretudo, recusar sua hegemonia. Em consequência disso, é necessário ser capaz de mostrar um caminho.

De fato, o pensamento do Sul deveria estar apto para enfrentar as complexidades de nossa vida, a complexidade das realidades humanas e da “insustentável complexidade do mundo”. O pensamento do Sul só pode ser complexo, e isso pelo fato de que, de acordo com o sentido original da palavra complexus em latim, “o que é tecido em conjunto”, o pensamento complexo é aquele que religa o que foi artificialmente separado. A missão desse pensamento se fixa no adágio latino sparsa colligo, que quer dizer “religo o que está disperso”.

Nesse sentido, o pensamento do Sul seria um pensamento que religa e, por isso mesmo, estaria apto a ressuscitar os problemas globais e fundamentais. Trata-se de um pensamento que reconheceria, defenderia e promoveria as qualidades e a poesia da vida, ainda mais porque o Sul ainda permanece depositário dessa poesia que, frequentemente, é considerada pelo Norte como atraso, ou como algo reservado simplesmente aos períodos de férias, um folclore que se pode desfrutar gozando do sol e do mar.

Aliás, vocês sabiam que vieram do Norte — até mesmo antes da era industrial — as grandes nostalgias pelo Sul? Goethe afirmava isso por intermédio das palavras de Mignon: “Você conhece o país onde floresce o limoeiro?” Maravilhado e deslumbrado, Hölderlin refere-se à grécia de Patmos. Durrell se delicia com Alexandria. O Norte também precisa do Sul. O que ele vai buscar nas férias significa algo mais profundo do que uma necessidade superficial de relaxamento. Fique bem entendido que a visão quantitativa ignora o problema essencial: a qualidade da vida. Reanimado pelo pensamento do Sul, pode-se, porém, retornar às ocupações, ao business, à técnica, ao poder.

O pensamento do Sul é solicitado a reproblematizar a sabedoria. Vocês sabem que uma das grandes heranças culturais da Antiguidade grega e romana é a busca da sabedoria. Ocorre que a ideia de sabedoria identificada a uma vida dotada de razão, uma vida regrada oposta a uma vida feita de paixão, não é satisfatória, na medida em que sabemos, principalmente a partir dos trabalhos de Antonio Damasio e Jean-Didier  Vincent, que a razão pura não existe. Mesmo o matemático voltado para o cálculo demasiadamente racional tem paixão pela matemática. Não existe razão sem paixão. Em contrapartida, a paixão sem essa lanterna que é a razão se perverte em delírio. A nova sabedoria precisa, então, procurar a “dialógica”, diálogo permanente, complementaridade no antagonismo, entre a razão e a paixão. Não há paixão sem razão, não há razão sem paixão. Não se trata de uma sabedoria que pode ser programada, mas sim uma espécie de momento que deve se regenerar incessantemente para nos guiar na vida. Essa nova sabedoria reconhece, portanto, as virtudes da poesia, isto é, as virtudes do amor e do sentido de comunidade.

A missão do pensamento do Sul seria, então, restaurar o concreto, a existência, o que existe de afetivo na nossa vida. Restaurar o singular, não dissolvê-lo num universal abstrato, mas integrá-lo no universal concreto que liga a unidade à diversidade. Restaurar o contexto e o global. É um pensamento que deveria empenhar-se em restaurar as solidariedades concretas e não apenas as solidariedades que se degradaram nas nossas civilizações ocidentalizadas ou nortificadas, mas também a nova solidariedade planetária, cuja necessidade é vital para nós. Queremos uma mundialização de solidariedade e de compreensão, uma religião da fraternidade humana no sentido cunhado por mim de Terra-pátria.

O pensamento do Sul deveria restaurar valores que nele permanecem fortes, como o sentimento da honra e da hospitalidade. Deveria promover a regeneração ética a fim de poder regenerar as solidariedades e as responsabilidades, ao mesmo tempo em que defenderia a autonomia moral e intelectual. Dupla e una, essa autonomia comporta a busca da verdade e a abertura estética que nos fazem estar plenamente conscientes das imensas emoções propiciadas pelas artes, pela literatura, pelo espetáculo da natureza.

Saibamos que quando essa autonomia individual se degrada, um niilismo e um estetismo frívolo se instalam em nós. Seu caráter intolerável aposta num retorno às crenças absolutas e estreitas que acreditávamos ultrapassadas e em um retorno dos fanatismos e das intolerâncias. Saibamos, finalmente, que para dominar as angústias de todo tipo, impostas pela crise da humanidade, as únicas respostas às angústias, inclusive às angústias de morte, estão na comunidade, no amor, na doação de si. São esses os problemas da humanidade neste terceiro milênio. São esses os caminhos salutares. Já que o Norte não pode fazê-lo, cabe ao Sul assumir a condição humana.

A nave espacial Terra está na noite e na neblina. Ela segue provavelmente rumo às catástrofes, rumo ao abismo...

Muito felizmente, porém, na história humana o improvável às vezes aconteceu, e ainda bem que tenha sido assim. E talvez um dos improváveis mais admiráveis da história se encontre no Sul, no sul da Europa, na Grécia, cinco séculos antes da nossa era. Depois disso, um gigantesco império, o império persa, que já havia absorvido todas as cidades gregas da Ásia Menor, para realizar uma última absorção, lançou-se à conquista da pequena cidade de Atenas. Apesar de todas as probabilidades em contrário, o pequeno exército ateniense, com a ajuda dos esparciatas, consegue resistir em Maratona e repelir o enorme exército dos persas. O império persa atacou Atenas uma segunda vez e, dessa vez, conquista, incendeia e saqueia toda a cidade: tudo parece perdido. Mas a frota grega preparou uma armadilha no golfo de Salamina para a enorme frota persa, que viu seus navios destruídos, um após outro, ao passar pelo estreito. Depois de Salamina, Atenas não sofreu mais o perigo persa e algumas décadas mais tarde nasciam a democracia e a filosofia. Esse triunfo do improvável deu, portanto, lugar à nossa cultura.

Podemos hoje restaurar uma esperança no improvável. Essa esperança não tem nenhuma certeza científica, porque a dita certeza científica do progresso foi atualmente abolida. Trata-se de uma esperança que não obedece a nenhuma promessa histórica, depois do colapso de todas as promessas de um futuro melhor, entre eles o radiante futuro soviético. Estamos falando de uma esperança que não é uma esperança qualquer, mas a esperança. Podemos fundá-la? Em primeiro lugar, podemos fundá-la na ideia da crise, porque o que é característico de uma crise, é que ela contém perigos enormes de regressão e destruição, mas também encerra chances de imaginação criativa, de diagnóstico pertinente, de elaboração de um caminho para a saída. Por que haveria um despertar criativo? Porque em todas as sociedades, como em todos os seres humanos, existem capacidades criativas adormecidas. Para explicitar meu argumento, uso o exemplo das células-tronco que dormem no adulto, em nossa coluna vertebral, em nosso cérebro. Como são polivalentes, são portadoras de capacidades regenerativas inéditas que permitem fabricar o fígado, o baço, o cérebro, a pele. Mais cedo ou mais tarde, a biologia e a medicina vão despertá-las...

Tomo o exemplo das células-tronco como metáfora para dizer que capacidades geradoras dormem nas sociedades e despertam em épocas de crise. Além do mais, em toda sociedade rígida, normalizada, em que as mentes são quase todas domesticadas, elas existem e podem despertar nos indivíduos desviantes: poetas, escritores, músicos, descobridores, bricoleurs. (1) Essas capacidades criativas podem, então, despertar com a crise e com o perigo.

Existe, igualmente, a aspiração à harmonia, que permeia toda a história da humanidade. Submetidos, porém, à organização social, às compartimentalizações, às hierarquias, salvamos cantinhos, pedacinhos de harmonia na nossa vida cotidiana na medida do possível: em festas, em refeições compartilhadas com amigos, em jogos de futebol, nos nossos amores. A aspiração à harmonia foi expressa nos paraísos cristão e muçulmano. Foi expressa nas ideias libertárias socialistas, comunistas, mas o destino histórico decepcionou ou enganou até hoje essa aspiração. Ela se manifestou nas revoltas juvenis de maio de 1968, e voltará a se manifestar de qualquer modo. Em minha opinião, essa aspiração ainda vai suscitar outras regenerações.

Quando um sistema não é capaz de tratar seus problemas vitais e fundamentais, ele se desintegra, ou então é capaz de se metamorfosear, ou seja, de engendrar um metassistema mais rico que possa tratar esses problemas. O sistema Terra não consegue hoje tratar seus problemas vitais: o retorno da fome; a morte da humanidade representada pela utilização das armas nucleares; a degradação da natureza; a violência da economia. Nosso sistema está, portanto, condenado à morte ou à metamorfose. Claro, a metamorfose não se decreta. A metamorfose não se programa. Não se pode, talvez, até mesmo prever a forma que essa nova sociedade assumiria na escala do mundo, algo que certamente não negaria as pátrias, mas criaria uma verdadeira Terra-pátria. Então busquemos, busquemos os caminhos, caminhos improváveis, é verdade, mas possíveis, que permitirão caminhar na direção da metamorfose. Seria essa a missão grandiosa e universal do pensamento do Sul.

 
(1) Termo utilizado para definir criadores que não têm um projeto definido para a produção de objetos em geral, fazendo uso de resíduos culturais acabados. (N.T.)

fonte: ANAIS ENCONTRO INTERNACIONAL PARA UM PENSAMENTO DO SUL, SESC, Rio de Janeiro, agosto 2011. Escola Sesc de Ensino Médio - Sesc Departamento Nacional