Dos Demônios - Atelier ao vivo do pensamento de Edgar Morin _ Primeiro dia

Edgar Morin

Introdução da publicação do Atelier 
 
Este atelier foi concebido e organizado simultaneamente por Edgar Morin e pelos profissionais do SESC de São Paulo, além de ter integrado o Projeto Cultural Balaio Brasil.
 
Em um trabalho pioneiro, Edgar Morin apresentou seu pensamento, sua obra e sua trajetória de vida a partir da literatura, do cinema, da música, pintura, escultura, fotografia e de imagens, dialogando e refletindo com os profissionais do SESC de São Paulo, com alguns profissionais do SESC do Rio de Janeiro e do SENAC de São Paulo, durante dois dias consecutivos.
 
Fala introdutória de Danilo de Miranda
 
Então, é um momento muito especial, nós estarmos aqui, um grupo de pessoas que refletem sobre o trabalho que realizam. Na sua grande quase totalidade, pessoas do Sesc, Serviço Social do Comércio do Estado de São Paulo. Técnicos, administradores, responsáveis, coordenadores, pessoas, portanto, que realizam essa conjugação importante de fazer, pensar, refletir, propor, provocar e, ao mesmo tempo, realizar, né? Corresponder a uma expectativa permanente. E, nesse sentido, a pessoa de Edgard Morin, talvez seja das mais indicadas nessa ajuda para refletir sobre esse fato tão peculiar, tão especifico, tão característico. Talvez sejamos uma das poucas organizações, instituições, empresas, grupos, que tenhamos a sorte e a possibilidade também e essa preocupação obviamente, de realizarmos com essa intensidade, essa reflexão; de realizarmos com esse tipo de compromisso, essa reflexão.
 
Acho que é um negócio muito importante, nós estarmos refletindo sobre esse fato: quantas vezes, quantos poderão estar fazendo isso. Claro que desejaríamos que muitos fizessem, mas na prática, são poucas as instituições e pessoas, que encontram as condições possíveis para uma realização como essa. Juntar sua comunidade técnica toda, para refletir junto com uma pessoa da dimensão de Edgard Morin, e refletir durante dois dias com ele sobre esses fatos, que nós vamos fazer a partir desse momento.
Gostaria de ressaltar que aqui nós temos as presenças também de alguns companheiros do Senac que fizemos questão de convidar, tô vendo o Cordão(?) e outras pessoas do Senac de São Paulo, além do Vasques que também é nosso companheiro de Sesc, está atualmente no Sesc do Rio de Janeiro, que vai também estar presente conosco, junto com uma colega do Sesc Rio de Janeiro.
 
Mas estamos discutindo as mesmas coisas, estamos falando dos mesmos fatos, estamos refletindo sobre os mesmos problemas.
 
Eu gostaria de fazer uma apresentaçãozinha preparada, para poder corresponder a essa perspectiva, a essa expectativa de não deixar de falar o que precisa ser falado. Muitas vezes, a gente corre o risco, ainda mais em uma segunda feira de manhã, de deixar de lado algumas coisas. Dizem que é muito difícil a gente fazer reflexões inteligentes pela manhã, ainda mais segunda feira. Mas de qualquer forma, vamos aproveitar que eu pensei nisso antes, com algumas ajudas, portanto está mais ou menos garantido.
 
Bom, em primeiro lugar eu queria ressaltar o fato de que o professor Morin, já participou conosco de vários eventos. Esteve aqui conosco naquele seminário sobre a Cultura das Metrópoles em 96, que fizemos com uma grande repercussão, depois disso esteve conosco, mais recentemente.... 
 
Esqueceram de avisar aquele negócio que fala antes dos espetáculos: saídas de emergência, luz, som e o famoso sinais eletrônicos. Bom de qualquer forma já substitui essa fala.
 
O segundo foi em agosto do ano passado (1999), quando ele veio e muitos dos que estão aqui presentes, profissionais do Sesc de São Paulo, participaram daquele Seminário: Cultura e Sociedade, complexidade humana, compreensão e ética pra entrar no terceiro milênio, que fizemos na cidade de São Roque. 
 
Bom, esses encontros tiveram muito impacto sobre o nosso corpo técnico, fruto dessa densidade dessas reflexões todas que foram feitas e, assim, pensamentos como: pensamento complexo, ecologia da ação, ética da solidariedade passaram a estar presentes com maior frequência no vocabulário e no modo de pensar de muitos de nós. Obviamente, não ocorreu por acaso, porque conseguimos identificar no modo de pensar do professor Morin, uma nova maneira de compreender e avaliar a real importância das ações que temos produzido no campo da cultura, da educação e da cidadania. O êxito do seminário nos levou a convidar Morin para esse segundo encontro com os técnicos, apesar de suas dificuldades de agenda carregada e etc. Tivemos essa grata oportunidade de desfrutar de sua companhia.
 
Sociólogo, antropólogo, pesquisador, filósofo, escritor, o professor Morin é um pensador transdisciplinar que recusa a fragmentação do saber e a divisão da cultura em compartimentos estanque. Mescla as ciências humanas com a física, com a biologia, com as outras disciplinas, com as artes, com a ética, com a política. Tendo em vista estimular uma verdadeira reforma do pensamento, reforma que possibilite novas maneiras de apreender o mundo, a vida e a sociedade em toda a sua complexidade, que permita ver a unidade e a coesão das coisas aparentemente espalhadas e dispersas. 
 
O pensamento complexo procura religar o que o pensamento disciplinar disjuntou. Ele religa domínios separados do conhecimento e também conceitos antagônicos, como ordem e desordem, certeza e incerteza, lógica e transgressão da lógica. O desafio que o professor Morin nos propõe é, portanto, duplamente instigante e provocativo. Trata-se não só de pensar no novo, mas de pensar um novo modo de pensar. A estrutura desse encontro reflete, de uma maneira um tanto ousada, essa perspectiva singular de acompanhar simultaneamente aquilo que é pensado e o modo segundo o qual esse pensamento se articula, daí o título nada convencional e pouco ortodoxo desse seminário: Dos Demônios, Atelier ao Vivo do Pensamento de Edgar Morin, a Construção de um Pensar. O título guarda relação com a obra fundamental do professor Morin: Meus Demônios. Nesse percurso, ele será nosso guia, um guia seguro e extraordinariamente bem preparado. 
 
Sua obra alcança meia centena de livros traduzidos em várias línguas, inclusive chinês e coreano. Tem publicado incontáveis artigos em jornais, revistas no mundo inteiro. Conferencista, vem percorrendo diversos países, procurando atender os inúmeros convites que lhe são endereçados. Entre cargos que exerceu e que exerce se encontram o de diretor emérito do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França e o de presidente fundador da Associação para um Pensamento Complexo. Presidente da Agência Europeia para a Cultura junto a Unesco, é convidado em 97 pelo redator chefe do jornal Le Monde para ser um dos coordenadores dos prêmios Le Monde para pesquisa universitária e corredator para a coleção Partilhar o Saber. Em dezembro de 97, o ministro de educação da França o convida para presidir o conselho científico destinado a refletir sobre a reforma de educação no país. 
 
Admirador do Brasil, em setembro de 98, escolhe-o para sediar o Primeiro Congresso Interlatino para o Pensamento Complexo, realizado com o apoio da Unesco.
 
Portanto, é uma grande honra ter conosco o professor Morin. Eu gostaria, então nesse momento, professor, de agradecer a gentileza da sua aceitação de estar conosco aqui, participando desse nosso encontro. E, certamente, nós teremos muito bom resultado na medida em que essa oportunidade nos fará refletir e discutir sobre aquilo que nós somos e sobre o trabalho que fazemos, afinal de contas, nós somos o que fazemos e, portanto, temos que pensar profundamente sobre os fatos do nosso dia a dia. Com a palavra, portanto, o professor Morin, nosso ilustre convidado, professor que estará conosco nesses dois dias. Gostaríamos apenas de dizer que esta atividade faz parte desse conjunto de ações que acontecerão nos próximos dias. Nós teremos essa palestra, esse seminário do professor Morin, durante dois dias. Teremos uma apresentação, uma conferência aberta na quarta-feira à noite no Sesc Consolação. E teremos a gravação do programa Roda Viva, na quarta-feira pela manhã. Portanto, com vocês, o professor Morin.
 
Palestra - Edgar Morin: 
 
Queridos amigos, o que vou apresentar é algo bastante difícil, pois para relatar o método que utilizei para elaborar minhas ideias, minhas obras, é necessário, sem dúvida, voltar às condições existenciais, às experiências de vida que, no meu caso, foram muito precoces, enquanto indivíduo, pois eu tinha dez anos de idade quando minha mãe faleceu, em 1931.
 
Os anos de 1931 a 1940 foram um período histórico extremamente turbulento para a França e para a Europa em razão da crise econômica mundial de 1931 e suas implicações com a tomada de poder por Hitler, o recrudescimento do Stalinismo, a Guerra Civil Espanhola, até a Segunda Guerra Mundial. Tive um início bastante difícil, com leituras e influências. Apesar de toda programação, é difícil impor uma sequência linear a esta palestra, mas gostaria de começar pelo tema que servirá de "leitmotiv" (fio condutor) às quatro que se seguirão, ou seja, "Os Cantares" de Machado, cantado por Juan Manuel Serrat. 
 
Música, por favor. 
 
Todo pasa y todo queda,
pero lo nuestro es pasar,
pasar haciendo caminos,
caminos sobre el mar.
Nunca perseguí la gloria,
ni dejar en la memoria
de los hombres mi canción;
amo los mundos sutiles,
ingrávidos y gentiles,
como pompas de jabón.
Me gusta verlos pintarse
de sol y grana, volar
bajo el cielo azul, temblar
súbitamente y quebrarse...
Nunca perseguí la gloria...
Caminante son tus huellas
el camino y nada más;
caminante, no hay camino
se hace camino al andar.
Al andar se hace camino
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante no hay camino
sino estelas en la mar...
Hace algún tiempo en ese lugar
donde hoy los bosques se visten de espinos
se oyó la voz de un poeta gritar
"Caminante no hay camino,
se hace camino al andar..."
Golpe a golpe, verso a verso...
 
Vou começar, então, por um fato muito importante para mim. Sou filho único e esta condição deve-se a uma doença cardíaca de minha mãe que a impedia de ter filhos. Ela foi proibida de ter filhos. Ela tentou me abortar, desfazer-se de mim, porém não sei por que, agarrei-me firmemente e nasci, em condições muito difíceis. De filho único, me tornei órfão aos dez anos de idade e afastei-me da minha família, começando por meu pai... Por quê? Porque descobri a mentira! Brincava numa praça e meu pai não me contou que ela havia morrido. Ele me disse que ela havia viajado... Ele vestia roupas pretas com sapatos pretos e entendi imediatamente, mas nunca lhe disse, apesar dele continuar a mentir por muito tempo. Assim, descobri a mentira. 
 
Também diria que por um feliz acaso, ainda muito jovem, com dez anos de idade, li Édipo Rei, de Sófocles que me causou uma impressão indescritível. Pareceu-me que a procura da verdade era terrível e que era preciso enfrentar os horrores da verdade. 
 
Penso que o problema da procura da verdade que todos almejamos na vida, marcou-me como uma experiência primordial, ou seja, como ódio à mentira. Desta mentira que mais tarde vim a descobrir, impediu-me de rever minha mãe, que me impediu de ir ao seu enterro, de dar-lhe o último adeus.
 
Foram fatos que me marcaram muito e, igualmente, descobri que alguma coisa era irremediável, que a morte era irremediável. Passei por esta experiência da morte que vai voltar em um livro sobre a morte que escrevi mais tarde. Vinte anos depois. 
 
Ao mesmo tempo, não podia me impedir de esperar. De esperar sua volta, sentia sua falta, uma falta terrível, uma necessidade de amor, evidentemente. Esta esperança absurda e, ao mesmo tempo, o desespero, fizeram de minha mãe uma espécie de mito. Ainda mais porque ela se chamava Luna, Lua. 
 
Então tudo o que lembra a lua me emociona muito. Gostaria de ouvir, então, o início da ária "Casta Diva" da Ópera Norma de Bellini que, como vocês sabem, é uma ode à Lua, à casta deusa, a Lua.
 
MÚSICA
 
Casta Diva, che inargenti
queste sacre antiche piante,
a noi volgi il bel sembiante senza nube e senza vel...
Tempra, o Diva,
tempra tu de’ cori ardenti
tempra ancora lo zelo audace,
spargi in terra quella pace
che regnar tu fai nel ciel...
Fine al rito: e il sacro bosco
Sia disgombro dai profani.
Quando il Nume irato e fosco,
Chiegga il sangue dei Romani,
Dal Druidico delubro
La mia voce tuonerà.
Cadrà; punirlo io posso.
(Ma, punirlo, il cor non sa.
Ah! bello a me ritorna
Del fido amor primiero;
E contro il mondo intiero...
Difesa a te sarò.
Ah! bello a me ritorna
Del raggio tuo sereno;
E vita nel tuo seno,
E patria e cielo avrò.
Ah, riedi ancora qual eri allora,
Quando il cor ti diedi allora,
Ah, riedi a me.
 
Podemos ouvir, agora, o início de ária que retrata a espera e que muito me comove. É a espera, durante anos, da pobre Madame Butterfly do retorno do Tenente Pinkerton, e que ela acreditava ser seu marido. É o canto da esperança no desespero: “Um bel dí, vedremo” (Um belo dia, nos veremos.) 
 
MÚSICA:
La lunga attesa
Un bel dí, vedremo
Levarsi un fil di fumo
Sull´estremo confin del mare.
E poi la nave appare.
Poi la nave bianca
Entre nel porto. Romba il suo saluto.
Vedi? È venuto!
Io non gli scendo incontro, Io no.
Mi metto là sul ciglio del colle e aspetto,
E aspetto gran tempo e non mi pesa
E uscito dalla folla cittadina un uomo,
Un picciol punto s´avvia per la collina.
Chi sarà? Chi sarà? E come sarà giunto
Che dirà? Che dirà? Chiamerà
Butterfly dalla lontana, Io, senza dar
Risposta me ne starò nascota un po´
Per celia, e un po´ per non morire al
Primo incontro, ed egli alquanto in
Pena chiamerà, chiamerà: "Piccina
Mogliettina  o lezzo di verbena" i nomi
Che mi dava al suo venire.
Tutto questo avverrà, te lo prometto.
Tienti la tua paura, Io con sicura fede
L´aspetto.
 
Devo dizer que este mito da minha mãe, sua presença-ausência me marcou muito fortemente. Ela deixou consequências e acredito que foi a origem da dúvida e de um ceticismo fundamental. Não poderia acreditar que ela vivia no céu e mesmo esperando que ela voltasse, ela jamais voltaria. Ao mesmo tempo, paradoxalmente, criava-se o oposto: a procura da esperança, de uma espera não exatamente ligada à minha mãe, mas sim a busca de uma resposta. 
 
Eu precisava acreditar, precisava ter fé, precisava de uma comunidade que, a meu ver, não podia se satisfazer em uma religião revelada. Eu estava fortemente influenciado por Dostoiévski, um autor que me influenciou muito pelo seu conhecimento, por sua complexidade humana, pelo seu tormento e sua luta interna entre a fé e a dúvida. Mas eu não poderia imitar seu herói Raskolnikov, que se converteu ao acreditar na ressurreição de Lázaro; eu não poderia crer nisso. 
 
Eu não podia acreditar numa religião revelada, qualquer que fosse, e no fundo, penso que o problema da fé e da dúvida, está muito bem ilustrado neste trecho que vamos ler, talvez um pouco extenso. É a narrativa do Grande Inquisidor de Os Irmãos Karamazov, onde Dostoievski exprime, ao mesmo tempo, a dúvida que o corrói e a fé que transforma essa dúvida. 
 
LEITURA: 
A ação se passa na Espanha, em Sevilha, na época mais terrível da Inquisição, quando todos os dias no país ardiam as fogueiras à glória de Deus e em esplêndidos atos de fé queimavam-se horríveis heréticos. Oh! não foi assim que ele prometeu voltar no fim dos tempos, em toda a sua glória celeste, subitamente, "como um relâmpago que brilha do Oriente ao Ocidente". Não, quis visitar seus filhos, no lugar onde crepitavam precisamente as fogueiras dos heréticos. Na sua misericórdia infinita, volta ao convívio dos homens sob a forma que tivera durante os três anos de sua vida pública. Ei-lo que desce para as ruas ardentes da cidade meridional, onde, justamente na véspera, na presença do rei, dos cortesãos, dos cavaleiros, dos cardeais e das mais encantadoras damas da corte, o grande inquisidor mandara queimar uma centena de heréticos ad majorem gloriam Dei.  Apareceu docemente, sem se fazer notar, e — coisa estranha — todos o reconheciam. Seria uma das mais belas passagens de meu poema explicar a razão disso. Atraído por uma força irresistível, o povo comprime-se à sua passagem e segue-lhe os passos. Silencioso, passa ele por entre a multidão com um sorriso de compaixão infinita. Seu coração está abrasado de amor, seus olhos desprendem a Luz, a Ciência, a Força que irradiam e despertam o amor nos corações. Estende-lhes os braços, abençoa-os, uma virtude salutar emana de seu contato e até mesmo de suas vestes. Um velho, cego de infância, exclama em meio da multidão: "Senhor, cura-me e eu te verei". Uma casca cai de seus olhos e o cego vê. O povo derrama lágrimas de alegria e beija o chão sobre as marcas de seus passos. As crianças lançam flores à sua passagem, canta-se, grita-se: "Hosana!"[1] "É ele, deve ser ele!", exclama-se. "Só pode ser ele!" Ele para no adro da Catedral de Sevilha no momento em que trazem um pequeno ataúde branco no qual repousa uma menina de sete anos, a filha única de uma pessoa notável. A morta está coberta de flores. "Ele ressuscitará tua filha", gritam na multidão para a mãe lacrimosa. O padre, que sai a receber o ataúde, olha com ar perplexo e franze o cenho. De súbito, repercute um grito, a mãe se lança aos seus pés: "Se és tu, ressuscita minha filha!", e estende os braços para ele. O cortejo para, deposita-se o caixão sobre as lajes. Ele a contempla, cheio de compaixão, e sua boca profere docemente mais uma vez: "Talitha kumi”, (“Jovem, levanta-te”. Isso está no Evangelho de São Lucas)[2] e a menina se levantou". A morta se levanta, senta-se e olha em redor de si, sorridente, com ar admirado. Tem na mão o buquê de rosas brancas que haviam depositado no caixão. No meio da turba multa há agitação, grita-se, chora- se. Naquele momento passa pela praça o cardeal, grande inquisidor. É um ancião quase nonagenário, de elevada estatura, de rosto dessecado, olhos cavados, mas onde luz ainda uma centelha. Não traz mais a pomposa veste com a qual se pavoneava ontem diante do povo, enquanto eram queimados os inimigos da Igreja Romana. Retomara sua velha batina grosseira. Seus sombrios auxiliares e a guarda do Santo Ofício seguem-no a uma distância respeitosa. Detém-se diante da multidão e observa de longe. Viu tudo, o caixão depositado diante dele, a ressurreição da menininha, e seu rosto ensombreceu-se. Franze suas espessas sobrancelhas e seus olhos brilham com um clarão sinistro. Aponta-o com o dedo e ordena aos guardas que o prendam. Tão grande é o seu poder e o povo está de tal maneira habituado a submeter-se, a obedecer-lhe tremendo, que a multidão se afasta imediatamente diante dos esbirros; em meio dum silêncio de morte, estes o pegam e levam-no. Como um só homem, aquele povo se inclina até o chão diante do velho inquisidor, que o abençoa sem dizer palavra e prossegue seu caminho. O prisioneiro é conduzido ao sombrio e velho edifício do Santo Ofício, onde o encerram numa estreita cela abobadada. O dia chega ao fim, vem a noite, uma noite de Sevilha, quente e sufocante. O ar está embalsamado do perfume de loureiros e limoeiros. Nas trevas, a porta de ferro da masmorra abre-se de repente e o grande inquisidor aparece, com um facho na mão. Está só, a porta torna a fechar-se atrás dele. Para no limiar e observa longamente a 27. Por fim, aproxima-se, pousa o facho sobre a mesa e diz-lhe: — És tu, és tu? — Não recebendo resposta, acrescenta rapidamente: — Não digas nada, cala-te. Aliás, que poderias dizer? Sei demais. Não tens o direito de acrescentar uma palavra mais do que já disseste outrora. Por que vieste nos estorvar? Porque tu nos estorvas, bem o sabes. Mas sabes o que acontecerá amanhã? Ignoro quem tu és e não quero sabê-lo: tu ou apenas tua aparência; mas amanhã eu te condenarei e serás queimado como o pior dos heréticos, e esse mesmo povo que hoje te beija os pés precipitar-se-á amanhã, a um sinal meu, para alimentar tua fogueira. Sabes disso? Talvez — acrescenta o velho, pensativo, com os olhos sempre fixos em seu prisioneiro. — Não compreendo bem o que quer isto dizer, Ivã — observou Aliocha, que escutara em silêncio. — É uma fantasia, um erro do ancião, um quiproquó estranho? — Admite esta última suposição — disse Ivã, rindo —, se o realismo moderno te tornou a este ponto refratário ao sobrenatural. Seja como quiseres. É verdade que o meu inquisidor tem noventa anos e sua ideia pode ter-lhe desde muito tempo transtornado o espírito. Afinal, é talvez um simples delírio, o devaneio de um velho antes de seu fim, com a imaginação esquentada pelo recente auto de fé. Mas, quiproquó ou fantasia, que nos importa? O que é preciso somente notar é que o inquisidor revela afinal seu pensamento, desvenda o que calou durante toda a sua carreira. — E o prisioneiro não diz nada? Contenta-se com olhá-lo? — Com efeito. Só pode calar-se. O próprio ancião faz-lhe observar que não tem ele o direito de acrescentar uma palavra às suas antigas palavras. É talvez o traço fundamental do catolicismo romano, na minha humilde opinião: "Tudo foi transmitido por ti ao papa, tudo depende, pois agora do papa, não venhas estorvar-nos antes do tempo, pelo menos". Tal é a doutrina deles, dos jesuítas, em todo caso. Encontrei-a nos seus teólogos. "Tens tu o direito de nos revelar um só dos segredos do mundo donde vens?", pergunta o velho, que responde em seu lugar: "Não, não tens o direito, porque essa revelação se ajuntaria à de outrora, e seria isso retirar aos homens a liberdade que defendias tanto na terra. Todas as tuas revelações novas feririam a liberdade da fé, porque pareceriam miraculosas; ora, tu punhas acima de tudo, há quinze séculos, essa liberdade da fé. Não disseste bem muitas vezes: "Quero tornar-vos livres"? Pois bem, viste-os, os homens "livres" — acrescenta o velho, com ar sarcástico. — Sim, isto nos custou caro — prosseguiu ele, olhando-o com severidade —, mas levamos a cabo afinal aquela obra em teu nome. Foram-nos precisos quinze séculos de rude labor para instaurar a liberdade; mas está feito, e bem feito. Não o crês? Olhas-me com doçura, sem mesmo fazer-me a honra de te indignares. Mas fica sabendo que jamais os homens se creram tão livres como agora, e, no entanto, a liberdade deles depositaram-na humildemente a nossos pés. Isto é a nossa obra, para dizer a verdade: é a liberdade que sonhavas?" — Não compreendo de novo — interrompeu Aliocha. — Ironiza ele, zomba? — Absolutamente! Vangloria-se de ter, ele e os seus, suprimida a liberdade, com o fito de tornar os homens felizes. "Porque é agora, pela primeira vez (fala ele, bem entendido, da Inquisição), que se pode pensar na felicidade dos homens. São naturalmente revoltados; revoltados podem ser felizes? Tu estavas advertido — diz-lhe ele —, conselhos não te faltaram, mas não os levaste em conta, rejeitaste o único meio de proporcionar a felicidade aos homens; felizmente, ao partires, tu nos transmitiste a obra, prometeste, concedeste-nos solenemente o direito de ligar e desligar; decerto, não podes pensar em retirar de nós agora esse direito. Por que então vieste estorvar-nos?" — Que significa isso: "As advertências e os conselhos não te faltaram?" — perguntou Aliocha. — Mas é o ponto capital no discurso do ancião. "O espírito terrível e profundo, o espírito da destruição e do nada", continua ele, "falou-te no deserto e as Escrituras relatam que ele te 'tentou', é verdade? E nada se podia dizer de mais penetrante que o que te foi dito nas três perguntas ou, para falar com as Escrituras, as 'tentações' que repeliste? Se jamais houve na terra um milagre autêntico e retumbante, foi o dia daquelas três tentações. O simples fato de terem sido formuladas aquelas três perguntas constitui um milagre. Suponhamos que tenham desaparecido das Escrituras, que seja preciso reconstituí-las, imaginá-las de novo para substituí-las ali, e que se reúnam para esse efeito todos os sábios da terra, homens de Estado, prelados, sábios, filósofos, poetas, dizendo-lhes: imaginai, redigi três perguntas que não somente correspondam à importância do acontecimento, mas ainda exprimam em três frases toda a história da humanidade futura — acreditas que esse areópago da sabedoria humana poderia imaginar nada de tão forte e de tão profundo como as três questões que te propôs então o poderoso espírito? Essas três questões provam por si sós que se tem de ver com o espírito eterno e absoluto e não com um espírito humano transitório. Porque resumem e predizem ao mesmo tempo toda a história ulterior da humanidade, são as três formas em que se cristalizam todas as contradições insolúveis da natureza humana. Não se podia na ocasião perceber isso, porque o futuro estava velado, mas agora, após quinze séculos decorridos, vemos que tudo fora previsto naquelas três perguntas e realizou-se a ponto de ser impossível acrescentar-lhes ou retirar-lhes uma só palavra. "Decide, pois, tu mesmo quem tinha razão: tu, ou aquele que te interrogava? Lembra-te da primeira pergunta, do sentido, senão do teor: queres ir para o mundo de mãos vazias, pregando aos homens uma liberdade que a estupidez e a ignomínia naturais deles os impedem de compreender, uma liberdade que lhes causa medo, porque não há e jamais houve nada de mais intolerável para o homem e para a sociedade! Vês aquelas pedras naquele deserto árido? Muda-as em pão e atrás de ti correrá a humanidade, como um rebanho dócil e reconhecido, tremendo, no entanto, no receio de que tua mão se retire e não tenham eles mais pão. "Mas tu não quiseste privar o homem da liberdade e recusaste, estimando que era ela incompatível com a obediência comprada por meio de pães. Replicaste que o homem não vive somente de pão; mas sabes que, em nome desse pão terrestre, o espírito da terra se insurgirá contra ti, lutará e te vencerá, que todos o seguirão, gritando: 'Quem é semelhante a esse animal? Ele nos deu o fogo do céu!' Séculos passarão e a humanidade proclamará pela boca de seus sábios e de seus intelectuais que não há crimes e, por conseguinte, não há pecado; só há famintos. 'Nutre-os e então exige deles que sejam virtuosos!' Eis o que se inscreverá sobre o estandarte da revolta que abaterá teu templo. Em seu lugar elevar-se-á novo edifício, uma segunda torre de Babel, que ficará sem dúvida inacabada, como a primeira, mas tu terias podido poupar aos homens essa nova tentativa e mil anos de sofrimento. Porque virão eles procurar-nos, depois de ter penado mil anos para construir sua torre! Procurar-nos-ão sob a terra como outrora, nas catacumbas onde estaremos escondidos (perseguir-nos-ão de novo) e clamarão: 'Dai-nos de comer, porque aqueles que nos tinham prometido o fogo do céu não o deram'. Então, acabaremos a torre deles, porque para isso basta apenas o alimento, e nós os nutriremos, utilizando-nos falsamente de teu nome, e os faremos crescer. Sem nós, estarão sempre famintos. Nenhuma ciência lhes dará pão, enquanto permanecerem livres, mas acabarão por depositá-la a nossos pés, essa liberdade, dizendo: 'Reduzi-nos à servidão, contanto que nos alimenteis'. Compreenderão por fim que a liberdade e o pão da terra à vontade para cada um são inconciliáveis, porque jamais saberão reparti-los entre si! Convencer-se-ão também de sua impotência para ser livres sendo fracos, depravados, nulos e revoltados. Tu lhes prometias o pão do céu; ainda uma vez, é ele comparável ao da terra aos olhos da fraca raça humana, eternamente ingrata e depravada? Milhares e dezenas de milhares de almas seguir-te-ão por causa desse pão, mas que acontecerá aos milhões e bilhões que não terão a coragem de preferir o pão do céu ao da terra? Será que só preferes os grandes e os fortes, aos quais os outros, a multidão inumerável, que é fraca, mas te ama, só serviria de matéria explorável? Eles também nos são queridos, os seres fracos. Embora depravados e revoltados, tornar-se-ão finalmente dóceis. Ficarão espantados e acreditarão que somos deuses por ter consentido, pondo-nos a comandá-los, em assumir a liberdade que os atemorizava e reinar sobre eles, de modo que ao final terão medo de ser livres. Mas lhes diremos que somos teus discípulos e reinamos em teu nome. Enganá-los-emos de novo, porque então não deixaremos que te aproximes de nós. E será essa impostura que constituirá nosso sofrimento, porque será preciso que mintamos. Tal é o sentido da primeira pergunta que te foi feita no deserto, e eis o que rejeitaste em nome da liberdade, que punhas acima de tudo. No entanto, ocultava ela o segredo do mundo. Consentindo no milagre dos pães, terias acalmado a eterna inquietação da humanidade — indivíduos e coletividade —, isto é: 'Diante de quem se inclinar?' Porque não há, para o homem que fica livre, preocupação mais constante e mais ardente do que procurar um ser diante do qual se inclinar. Mas só quer ele inclinar-se diante de uma força incontestada, que todos os humanos respeitem por consenso universal. Porque essas pobres criaturas atormentar-se-ão em procurar um culto que reúna não somente alguns fiéis, mas no qual todos juntos comunguem, unidos pela mesma fé. Porque essa necessidade da comunidade na adoção é o principal tormento de cada indivíduo e da humanidade inteira, desde o começo dos séculos. É para realizar esse sonho que se têm os homens exterminados pelo gládio. Os povos forjaram deuses e desconfiaram uns dos outros: 'Abandonai vossos deuses, adorai os nossos, senão, ai de vós e de vossos deuses!' E assim será até o fim do mundo, mesmo quando os deuses tiverem desaparecido; prosternar-se-ão diante dos ídolos. Tu não ignoravas, tu não podias ignorar esse segredo fundamental da natureza humana e, no entanto, repeliste a única bandeira infalível que te ofereciam e que teria curvado sem contestação todos os homens diante de ti, a bandeira do pão terrestre; rejeitaste-a em nome do pão do céu e da liberdade! Vê o que fizeste em seguida, sempre em nome da liberdade! Não há, repito-te, preocupação mais aguda para o homem que encontrar o mais cedo possível um ser a quem delegar esse dom da liberdade que o infeliz traz consigo ao nascer. Mas, para dispor da liberdade dos homens, é preciso dar-lhes a paz da consciência. O pão te garantia o êxito; o homem se inclina diante de quem lhe dá, porque é uma coisa incontestável, mas, se um outro se torna senhor da consciência humana, largará ali mesmo o teu pão para seguir aquele que cativa sua consciência. 
Nisto tu tinhas razão, porque o segredo da existência humana consiste não somente em viver, mas ainda em encontrar um motivo de viver. Sem uma ideia nítida da finalidade da existência, prefere o homem a ela renunciar e se destruirá em vez de ficar na terra, embora cercado de montes de pão. Mas que aconteceu? Em lugar de te apoderares da liberdade humana, tu ainda a estendeste! Esqueceste-te então de que o homem prefere a paz e até mesmo a morte à liberdade de discernir o bem e o mal? Não há nada de mais sedutor para o homem do que o livre arbítrio, mas também nada de mais doloroso. E, em lugar de princípios sólidos que teriam tranquilizado para sempre a consciência humana, tu escolheste noções vagas, estranhas, enigmáticas, tudo quanto ultrapassa a força dos homens e com isso agiste como se não os amasses, tu, que querias dar tua vida por eles! Aumentaste a liberdade humana em vez de confiscá-la e assim impuseste para sempre ao ser moral os pavores dessa liberdade. Querias ser livremente amado, voluntariamente seguido pelos homens fascinados. Em lugar da dura lei antiga, o homem devia doravante, com coração livre, discernir o bem e o mal, não tendo para se guiar senão tua imagem, mas não previas que ele repeliria afinal e contestaria mesmo tua imagem e tua liberdade, esmagado sob essa carga terrível: a liberdade de escolher? Gritarão por fim que a verdade não estava em ti, de outro modo não os terias deixado numa incerteza tão angustiosa, com tantas preocupações e problemas insolúveis. Preparaste assim a ruína de teu reino. Não acuses ninguém. Entretanto, era isso que te propunham? Há três forças, as únicas que possam subjugar para sempre a consciência desses fracos revoltados, a saber: o milagre, o mistério e, a autoridade! Tu rejeitaste todas as três, dando assim um exemplo. O espírito terrível e profundo havia te transportado ao pináculo e havia te dito: 'Queres saber se és o filho de Deus? Lança-te daqui abaixo, porque está escrito que os anjos o sustentarão e o carregarão, e ele não sofrerá nenhum ferimento. Saberás então se és o filho de Deus e provarás assim tua fé em teu pai'. Mas repeliste esta proposta, não te precipitaste. Mostraste então uma altivez sublime, divina, mas os homens, raça fraca e revoltada, não são deuses! Sabias que, dando um passo, um gesto para te precipitares, terias tentado o Senhor e perdido a fé nele, ter-te-ias rebentado sobre aquela terra que vinhas salvar, para grande alegria do tentador. Mas há muitos como tu? Podes admitir um instante que os homens teriam a força de suportar semelhante tentação? É próprio da natureza humana repelir o milagre e, nos momentos graves da vida, diante das questões capitais e dolorosas, agarrar-se à livre decisão do coração? Oh! Tu sabias que tua firmeza seria relatada nas Escrituras, atravessaria as idades e iria até as regiões mais longínquas, e esperavas que, seguindo teu exemplo, o homem se contentaria com Deus, sem recorrer ao milagre. Mas ignoravas que o homem rejeita Deus ao mesmo tempo em que o milagre, porque é, sobretudo, o milagre que ele procura. E, como não saberia passar sem ele, forja novos, os seus próprios, inclinar-se-á diante dos prodígios de um mágico, dos sortilégios de uma feiticeira, ainda que seja um revoltado, um herege, um ímpio confesso. Tu não desceste da cruz, quando zombavam de ti e gritavam-te, por derrisão: 'Desce da cruz e creremos em ti'. Não o fizeste, porque de novo não quiseste sujeitar o homem por meio de um milagre. Desejavas uma fé livre e não inspirada pelo maravilhoso. Tinhas necessidade de um livre amor e não dos transportes servis dum escravo aterrorizado. Aí ainda, fazias ideia demasiado alta dos homens, porque são escravos, se bem que tenham sido criados rebeldes. Vê e julga, após quinze séculos decorridos: quem elevaste até a ti? Juro-o, o homem é mais fraco e mais vil do que o pensavas. Pode ele, pode ele realizar o mesmo que tu? A grande estima que tinhas por ele fez mal à compaixão. Exigiste demasiado dele. Tu, no entanto, que o amavas mais do que a ti mesmo! Estimando-o menos, ter-lhe-ias imposto um fardo mais leve, mas em relação com teu amor. Ele é fraco e covarde. Que importa que no presente se insurja por toda parte contra nossa autoridade e se mostre orgulhoso de sua revolta? É o orgulho de jovens escolares que se amotinaram em aula e expulsaram seu mestre. Mas a alegria dos garotos terá fim e lhes custará caro. Derrubarão os templos e inundarão a terra de sangue. Mas perceberão por fim, essas crianças estúpidas, que são apenas fracos revoltosos, incapazes de revoltar-se por muito tempo. Derramarão lágrimas bobas e compreenderão que o Criador, fazendo-os rebeldes, quis zombar deles, certamente. Gritarão contra ele com desespero e essa blasfêmia torná-los-á ainda mais infelizes, porque a natureza humana não tolera a blasfêmia e acaba sempre por tirar vingança dela. Assim, a inquietação, a perturbação, a desgraça, tal a partilha dos homens, após os sofrimentos que suportaste pela liberdade deles. Teu eminente profeta diz, na sua visão simbólica, que viu todos os participantes da primeira ressurreição e que havia 12 000 para cada tribo. Para serem tão numerosos, deveriam ser mais que homens, quase deuses. Suportaram tua cruz e a existência no deserto, nutrindo-se de gafanhotos e de raízes; decerto, podes orgulhar-te desses filhos da liberdade, do livre amor, de seu sublime sacrifício em teu nome. Mas, lembra-te, não eram eles senão alguns milhares e quase deuses, e o resto? É falta deles, dos outros, dos fracos humanos, se não puderam suportar o que suportam os fortes? É culpada a alma fraca por não poder conter dons tão terríveis? Vieste na verdade apenas para os eleitos? Então, é um mistério, incompreensível para nós, e teremos o direito de pregá-lo aos homens, de ensinar que não é a livre decisão dos corações nem o amor que importam, mas o mistério, ao qual devem eles submeter-se cegamente, mesmo malgrado sua consciência. É o que temos feito. Corrigimos tua obra baseando-a no milagre, no mistério, na autoridade. E os homens regozijaram-se por ser de novo levados como um rebanho e libertados daquele dom funesto que lhes causava tais tormentos. Tínhamos razão de agir assim, dizemos? Não era amar a humanidade compreender sua fraqueza, aliviar seu fardo com amor, tolerar mesmo o pecado à sua fraca natureza, contanto que fosse com nossa permissão? Por que então vir entravar nossa obra? Por que guardas tu o silêncio, fixando-me com teu olhar penetrante e terno? É preferível que te zangues, não quero o teu amor, porque eu mesmo não te amo. Por que haveria eu de dissimular isto? Sei a quem falo, tu conheces o que tenho a dizer-te, vejo-o nos teus olhos. Cabe a mim esconder-te nosso segredo? Talvez o queiras ouvir de minha boca. Ei-lo: não estamos contigo, mas com ele, desde muito tempo já. Há justamente oito séculos que recebemos dele esse derradeiro dom que tu repeliste com indignação, quando ele te mostrava todos os reinos da terra; aceitamos Roma e o gládio de César e declaramo-nos os únicos reis da terra, se bem que até agora não tenhamos tido ainda tempo de completar nossa obra. Mas de quem a culpa? Oh! o negócio está apenas começando, bem longe de ser completado, e a terra terá de sofrer ainda muito, mas atingiremos nosso fim, seremos césares e então pensaremos na felicidade universal. "Entretanto, terias podido então tomar o gládio de César. Por que repeliste esse derradeiro dom? Seguindo esse terceiro conselho do poderoso espírito, realizavas tudo quanto os homens procuram na terra: um senhor diante de quem inclinar-se, um guarda de sua consciência e o meio de se unirem finalmente na concórdia em uma comunidade de formigueiro, porque a necessidade da união universal é o terceiro e derradeiro tormento da raça humana. A humanidade teve sempre tendência no seu conjunto para organizar-se sobre uma base universal. Houve grandes povos de história gloriosa, mas, à medida que se elevaram, sofreram mais, experimentando mais fortemente que os outros a necessidade da união universal. Os grandes conquistadores, os Tamerlão e Gengis-Khan, que percorreram a terra como um furacão, encarnavam, também eles, sem ter disso consciência, essa aspiração dos povos à unidade. Aceitando a púrpura de César, terias fundado o império universal e dado a paz ao mundo. Com efeito, quem está qualificado para dominar os homens senão aqueles que lhes dominam a consciência e dispõem de seu pão? Tomamos o gládio de César e, assim fazendo, nós te abandonamos para segui-lo. Oh! Decorrerão ainda séculos de licença intelectual, de vã ciência e de antropofagia, porque será nisto que eles acabarão, depois de ter edificado sua torre de Babel sem nós. Mas então a besta virá para nós arrastando-se, lamberá nossos pés, regá-los-á com lágrimas de sangue. E nós montaremos nela, ergueremos no ar uma taça em que estará gravada a palavra: 'Mistério'. Então somente a paz e a felicidade reinarão sobre os homens. Tu te orgulhas de teus eleitos, mas não passam de um escol, ao passo que nós daremos o repouso a todos. Aliás, entre esses fortes destinados a ser eleitos, quantos se cansaram por fim de esperar-te, levaram e levarão ainda a outras partes as forças de seu espírito e o ardor de seu coração, quantos acabarão por insurgir-se contra ti em nome da liberdade! Mas serás tu que lhe terás dado. Nós tornamos todos os homens felizes e as revoltas e os massacres inseparáveis de tua liberdade cessarão. Oh! Nós os persuadiremos de que não serão verdadeiramente livres senão abdicando de sua liberdade em nosso favor. Pois bem, diremos a verdade ou mentiremos? Convencer-se-ão eles próprios de que dizemos a verdade, porque se lembrarão daquela servidão e daquela perturbação em que os mergulhou a tua liberdade. A independência, o livre-pensamento, a ciência tê-los-ão desviado num tal labirinto, posto em presença de tais prodígios, de tais enigmas, que uns, rebeldes furiosos, destruir-se-ão a si mesmos, e os outros, rebeldes, porém fraca, multidão covarde e miserável, se arrastará a nossos pés, gritando: 'Sim, tínheis razão, somente vós possuíeis seu segredo e nós voltamos a vós; salvai-nos de nós mesmos!' Sem dúvida, recebendo de nós os pães, verão bem que tomamos os deles, ganhos com seu próprio trabalho, para distribuí-los, sem nenhum milagre; verão bem que não mudamos as pedras em pão; mas o que lhes causará mais prazer que o próprio pão será recebê-lo de nossas mãos! Porque se lembrarão de que outrora o próprio pão, fruto de seu trabalho, mudava-se em pedra em suas mãos, ao passo que, quando voltaram a nós, as pedras tornaram-se pão. Compreenderão o valor da submissão definitiva. E, enquanto os homens não a tiverem compreendido, serão infelizes. Quem mais contribui para essa incompreensão, dize-me? Quem dividiu o rebanho e dispersou-o por estradas desconhecidas? Mas o rebanho se recomporá, voltará a obedecer e será isso para todo o sempre. Então, dar-lhe-emos uma felicidade mansa e humilde, uma felicidade adaptada a criaturas fracas como eles. Nós os persuadiremos, por fim, a não se orgulharem, porque foste tu, elevando-os, quem os ensinou a serem orgulhosos; provar-lhes-emos que são débeis, que são crianças dignas de dó, mas que a felicidade infantil é a mais deleitável. Tornar-se-ão tímidos, não nos perderão de vista e se comprimirão contra nós com medo, como uma tenra ninhada sob a asa materna. Sentirão uma surpresa medrosa e terão orgulho de toda aquela energia e inteligência que nos permitiram domar a multidão inumerável dos rebeldes. Nossa cólera fá-los-á tremerem, a timidez dominá-los-á, seus olhos tornar-se-ão lacrimosos como os das crianças e das mulheres; mas, a um sinal nosso, passarão bem facilmente ao riso e à alegria, à alegria radiosa das crianças. Decerto, sujeitá-los-emos ao trabalho, mas nas horas de lazer organizaremos sua vida como um brinquedo de criança, com cantos, coros, danças inocentes. Oh! Permitiremos mesmo que pequem — são fracos —, e nos amarão por causa disso como crianças. Dir-lhes-emos que todo pecado será redimido, se for cometido com nossa permissão; por amor é que lhes permitiremos que pequem e assumiremos o castigo de tais pecados. Amar-nos-ão como a benfeitores que tomam a si a carga de seus pecados perante Deus. Não terão segredo algum para conosco. De acordo com seu grau de obediência, permitir-lhes-emos ou proibir-lhe-emos que vivam com suas mulheres e suas amantes, que tenham filhos ou não tenham, e eles nos escutarão com alegria. Submeter-nos-ão os segredos mais penosos de sua consciência, resolveremos todos os casos e eles aceitarão nossa decisão com alegria, porque ela lhes poupará a grave preocupação de resolverem eles mesmos livremente. E todos serão felizes, milhões de criaturas, exceto uns 100 000, seus diretores, exceto nós, os depositários do segredo; os felizes contar-se-ão por bilhões e haverá 100 000 mártires encarregados do conhecimento maldito do bem e do mal. Morrerão tranquilamente, extinguir-se-ão mansamente em teu nome e no outro mundo nada encontrarão senão a morte. Mas nós guardaremos o segredo; nós os ninaremos, para sua felicidade, com uma recompensa eterna no céu. Porque, se houvesse outra vida, não seria decerto para criaturas como eles. Profetiza-se que voltarás para vencer de novo, cercado de teus eleitos, poderosos e orgulhosos; diremos que eles só se salvaram a si mesmos, ao passo que nós salvamos o mundo inteiro. Dizem que a fornicadora, montada na besta e tendo nas mãos a taça do mistério, será desonrada, que os fracos se revoltarão de novo, rasgarão sua púrpura e desnudarão seu corpo 'impuro'. Eu me levantarei então e te mostrarei os bilhões de felizes que não conheceram o pecado. E nós, que nos sobrecarregamos com seus pecados, para sua felicidade, nós nos ergueremos diante de ti, dizendo: 'Não te tememos; também eu estive no deserto, vivi de gafanhotos e de raízes; também eu abençoei a liberdade com que gratificaste os homens e me preparava para figurar entre teus eleitos, os poderosos e os fortes, ardendo por lhes completar o número. Mas dominei-me e não quis servir uma causa insensata. Voltei a juntar-me àqueles que corrigiram tua obra. Abandonei os orgulhosos, voltei aos humildes, para fazer a felicidade deles. O que te digo se realizará e nosso império se edificará. Repito-te, amanhã, a um sinal meu, verás aquele rebanho dócil trazer carvões acesos para a fogueira a que subirás, por teres vindo estorvar nossa obra. Porque, se alguém mereceu mais que todos a fogueira, foste tu. Amanhã, queimar-te-ei. Dixi[3]
 
É um pouco longo, mas eu o acho magnífico. Mostra também a contradição que existe entre as mensagens originais de uma religião, neste caso, o Cristianismo e a organização da Igreja.
 
Continuei com minhas leituras e gostava muito daqueles autores que me induziam à dúvida, tais como Anatole France, Roger Martin Du Gard, Jean Barrois e todos os autores românticos que me influenciavam não exatamente em direção a uma fé religiosa, mas sim a uma Redenção, assim como a Ressurreição de Tolstoi, ou evidentemente Dostoiévski, ou ainda Jean Christophe, de Romain Rolland. A literatura teve e continua a ter um papel fundamental em minha formação, mas também existiu o cinema. Da mesma forma que devorava livros, me transformei muito jovem em um "filmófago", em um "cinemáfago", eu devorava filmes...
 
Tem um filme que me marcou muito, aos 13 anos de idade, quando começa a adolescência e a puberdade. Nele tinha uma heroína, uma mulher soberana e fatal, Brigitte Helm, no filme “Atlantide”, de Pabst, que é de 1931 ou 32. O filme conta como dois oficiais franceses perdidos no deserto do Saara e recolhidos em uma edificação misteriosa, escondido da vista, onde encontram o reino de Atlântida e sua soberana, chamada Antinéa. Todos os que chegam ficam loucamente apaixonados por esta soberana, que depois de um tempo os abandona e os apaga. Vocês assistirão à cena quando o Tenente de Saint Avit descobre Antinéa e sua súbita paixão, semelhante àquela que senti quando ainda jovem assisti “Atlantide”. 
 
PROJEÇÃO DO FILME
 
Esta cena me impressionou terrivelmente nos meus 13 ou 14 anos de idade, como a todos os rapazes de minha geração: a imagem de uma mulher soberana, irresistível e absolutamente fatal. Portanto, eu me alimentava de filmes, e também de música. Também gostava de cançonetas - e continuo a gostar até hoje - mas passei sem perceber à descoberta da música. O que aconteceu comigo foi muito curioso, porque a minha família não me deu nenhuma cultura e fui eu mesmo, procurando, que encontrei coisas que me emocionavam e me fascinavam.  Minha grande descoberta musical foi o início do primeiro movimento da Nona Sinfonia de Beethoven. Ainda agora, estes acordes me dão energia e paixão, eles dão a impressão de se tratar da criação do mundo. Após uma espécie de tremor, sobre um fundo musical indefinido surge um duplo apelo, uma resposta, e de súbito algo se eleva emergindo do caos, se ordenando e se impondo com uma força incrível. Este é o início da Nona Sinfonia de Beethoven.
 
MÚSICA
 
Continuando, tudo isso se passou nos anos 1930, 1940, anos de crise econômica mundial, anos de crise da democracia mundial. Também na França. Em 1933, Hitler toma o poder, anexa a Áustria em 1934 e, em 1938 os Sudètes, após a conferência de Munique. Em 1934-1935, Stalin instala processos gigantescos nos quais são condenados a maioria dos dirigentes revolucionários bolchevistas. São anos em que a política invade as escolas e as ruas. 
 
Junho de 1936, marca a chegada da Frente Popular na França e com ela a esperança, porém no mesmo momento a guerra irrompe na Espanha. Assim como muitos, eu não sabia o que fazer, o que pensar. Evidentemente, havia pequenos grupos que buscavam uma terceira via, algo diferente do comunismo, do fascismo; que fosse além da democracia burguesa focada no capital. Alguma coisa que fosse uma nova sociedade... e eu era um desses que oscilava, oscilava...
 
Minha primeira ação política foi colaborar com a Solidariedade Internacional Antifascista, uma organização que apoiava os anarquistas da Catalunha. De resto, durante a guerra da Espanha, eu não alimentava nenhuma ilusão em relação aos franquistas e mesmo em relação aos republicanos, pois grassava uma feroz repressão aos anarquistas, aos trotsquistas e demais militantes. Eu lia diferentes publicações libertárias, trotsquistas, esquerdistas, reformistas, despertando em mim o apelo pela revolução. Quer dizer, eu pensava que pudesse haver alguma coisa que possibilitasse a emancipação do gênero humano. Esse sentimento persistiu durante algum tempo. 
 
Participei de uma reunião organizada por um grupo “trotsquisante”, seguida pela apresentação de um pequeno coral, onde ouvi um hino revolucionário, quase um canto religioso, a favor do proletariado, da emancipação humana, “La Varsovienne”... Vocês ouvirão uma execução que eu não aprecio muito, do coro do Exército Vermelho, em que suprimiram o intervalo entre as duas primeiras partes.
 
MÚSICA
 
Fiquei muito impressionado com a corrente pacifista de esquerda nascida do horror da Primeira Guerra Mundial, que pensava a todos os males que a guerra queria eliminar, mas a guerra era, definitivamente, o pior deles. Havia este pacifismo e me engajei em um pequeno movimento chamado Frente de Esquerda, de tendência reformista moderada, que pretendia estabelecer o socialismo em âmbito nacional e, ao mesmo tempo, lutava pela paz.
 
E, participando dessas reuniões dos estudantes "frentistas", um grupo pouco numeroso, entrei em contato com o marxismo, por intermédio de um camarada chamado Delbois, que tivera um professor marxista-comunista. Tinha a impressão de que o marxismo representava a intenção de compreender o conjunto dos problemas humanos, a sociedade humana, o mundo, e que era preciso seguir nesta direção...
 
O que me marcou foi a ideia de que não deveria separar a sociologia, a psicologia e a história, mas que deveria haver uma maneira de englobá-las. Assim, ao ingressar na universidade, procurei não me inscrever em um curso em busca de uma carreira; me inscrevi em sociologia e filosofia, porque nessa época, a sociologia fazia parte da filosofia; em direito, que englobava ciência econômica, e em ciência política.
 
Nestes primeiros anos universitários, aprendi duas lições com meu professor de História da Revolução Francesa, Georges Lefèvre. A primeira lição, uma ideia que gravei e desenvolvi em mim, referia-se ao primeiro impulso que desencadeou os Estados Gerais – ou seja, a convocação de uma assembleia dos representantes do Clero, da Aristocracia e do denominado Terceiro Estado, ou seja, o restante do povo, incluindo-se a burguesia. O fato foi provocado pela aristocracia que pretendia impor um rei fraco e reaver os privilégios perdidos durante a Monarquia Absolutista. Entretanto, no momento da convocação dos Estados Gerais, no lugar de votar por ordem, como no passado, sempre com uma maioria para o clero e a aristocracia, dessa vez os representantes do Terceiro Estado, que eram mais numerosos, impuseram a votação individual. Este voto individual, em substituição ao da ordem, deu novos rumos ao processo histórico, desencadeando a queda da aristocracia.
 
Melhor dizendo, o desencadeamento de uma ação com finalidade e intenção pré-determinadas poderia causar resultado diverso ao esperado. Encontramos exemplos idênticos na História e esta é uma das ideias que desenvolvi em meus trabalhos posteriores e que denomino de a ecologia da ação. De certo modo, uma vez desencadeada a ação, ela fará parte de um contexto sócio-histórico, e as condições deste meio poderão desviá-la do objetivo, podendo até ser desastrosa aos seus autores. Não é suficiente terem boas ou más intenções, pois desencadearão uma série de consequências éticas. 
 
A segunda lição do professor Georges Lefèvre nos mostrava que os historiadores, em períodos sucessivos à Revolução, tinham cada um uma visão da Revolução, em função das condições por eles vivenciadas. 
 
Havia uma história vista sob o prisma da Monarquia Restaurada, outra sob o prisma da terceira República, outra ainda sob o prisma Socialista, a história socialista da Revolução Francesa, uma história trotsquista, uma história stalinista e outra ainda pós-stalinista, como a atual de François Furet, que evidentemente Georges Lefèvre não conheceu. 
 
Lefèvre mostrou que os historiadores poderiam ser historicizados e que ninguém possui um ponto de vista universal para julgar o passado. Para compreendê-lo, é preciso retroagir o presente e, mesmo assim, com o risco de cometer erros, quer dizer, o historiador deve estudar a si mesmo. E a lição fundamental para mim, é a junção daquilo que aprendi com Montaigne, a necessidade de autoanalisar si mesmo, as condições históricas em que se viveu, e a ideia que desenvolvi mais tarde tanto no meu livro autocrítico, em que tento entender como me tornei comunista, como no livro "O Conhecimento do Conhecimento", em que digo que o conhecimento independe da percepção de um objeto, mas é preciso percebê-lo dentro de um processo de conhecimento exterior. Quer dizer, não podemos eliminar o sujeito do conhecimento do próprio conhecimento. Estas duas ideias firmaram-se em minha mente para desabrocharem mais tarde.
 
Durante este período, chamado de “Drôle de Guerre”, a França declarou guerra à Alemanha, a Inglaterra e a França declaram guerra à Alemanha e a Alemanha invadiu a Polônia, mas nada acontece no front Oeste.
 
Nesta época, fiz o que chamamos de preparo militar superior, que os estudantes universitários faziam para se tornarem oficiais. A derrota acontece com a invasão da França pelo exército alemão, um fenômeno absolutamente incrível e quando soube, pelo rádio, que as provas escolares estavam suspensas com a chegada das tropas de ocupação, decidi partir para Toulouse.
 
Em Toulouse, minha vida muda completamente. Aos 19 anos de idade, já tinha me libertado do meu pai, que tinha sido convocado para a guerra desde o seu princípio. Como era filho único, ele me superprotegia... e me confiou a uma tia – e assim, me livrei de ambos. Toulouse abrigava estudantes refugiados de todas as partes da França e lá aprendi a noção de comunidade e de responsabilidade, ao tornar-me, logo, secretário geral dos estudantes refugiados, e era preciso alojar e alimentá-los. Esta atividade me deixou muito feliz numa época desastrosa, pois me permitia encontrar muitos camaradas e fazer tantas amizades.
 
O que dizer desta época, senão que as contradições que me impulsionaram, ainda estão presentes e se tornaram o que chamaria de meus demônios principais. O demônio da dúvida, evidentemente, e o da racionalidade, que me impedem de acreditar numa religião revelada. Nesta época, além do mais, a racionalidade e a dúvida me impediam de me tornar comunista. Tudo o que eu tinha visto, me mostrava que os processos de Moscou eram uma farsa; li obras extremamente críticas sobre a URSS e, aparentemente, estava imunizado contra o comunismo stalinista e, mesmo assim, me torno comunista dois anos mais tarde. Possuía a racionalidade, a dúvida e a busca de uma fé que oscilava entre a fé moderada e o mito da revolução, o mundo pode mudar, mas nada está definido, pois ainda tenho inúmeras incertezas. Este é meu retrato neste período.
 
A França estava ocupada e era o desastre... e talvez seja o momento de terminar nossa primeira reunião com o "Canto do Inocente" da ópera de Mussorgsky, parte final de Boris Godunov, após Pushkin. No momento em que o Czar Boris é derrotado e morto, surge um novo Czar, provocando grande entusiasmo, mas que no fundo é um impostor. O único que permanece lúcido é o inocente no canto final: "chora, chora minha pátria, o inimigo virá, a noite virá; chora, chora minha pátria". Creio que o "Canto do Inocente" anuncia o período de ocupação.
 
MÚSICA
 
Coulez, coulez, larmes amères
Pleure, pleure mon âme chrétienne!
Bientôt l'ennemi viendra et descendront les ténèbres
Noires ténèbres impénétrables. Malheur, malheur à la Russie,
Pleure, pleure, peuple de Russie,
Peuple d'affamés
 
MÚSICA
Cantares de Antonio Machado...
 
Eu tinha dezenove anos quando vivi em Toulouse. A França estava ocupada e eu acabava de prestar minhas provas escolares com sucesso, pois na época, levava-se em conta a situação dos estudantes refugiados. Os anos 1940 e 1941, passei nas bibliotecas estudando sem parar todas as disciplinas, com o firme propósito de tornar-me marxista, com algumas ideias que penso serem marxistas dos escritos de Marx quando jovem: "As ciências da natureza englobarão as ciências do homem e as ciências do homem englobarão as ciências da natureza".
 
Isto quer dizer que não podemos simplesmente integrar o homem à natureza. Poderemos fazê-lo porque, evidentemente, somos animais, produto de uma evolução biológica, mas nossa própria ciência é produzida pela nossa cultura, nossa inteligência, pelo homem. Portanto, os homens produzem as ciências da natureza, mas as ciências da natureza falam da produção humana e então as duas ciências é que devem se misturar. 
 
Nesta época, ainda não tinha ideia de como unir o homem natural e o homem cultural; a natureza e o homem. Queria estudar as diversas áreas do conhecimento, o que faço até hoje, adorava a literatura. Queria pedir a leitura de um texto que me encanta, "Devaneios do Caminhante Solitário" (Rêveries du Promeneur Solitaire) de Jean-Jacques Rousseau, quinto devaneio. Como todos sabem, Jean-Jacques Rousseau era muito inquieto, atormentado, perseguido e, quando somos perseguidos, tendemos a imaginar que o somos cada vez mais. Entretanto, ele encontrou a paz durante o tempo em que esteve na Ilha de Saint Pierre, e este é o texto que gostaria que fosse lido.
 
LEITURA:
 (O leitor diz: Esse é curtinho. Risos da plateia).
Rousseau na Ilha de San Pierre 
“De todas as habitações em que morei (e tive algumas muito bonitas), nenhuma me fez tão feliz e me deixou lembranças tão ternas como a da Ilha de Saint-Pierre no centro do lago de Bienne[4]. Esta ilhazinha, que em Neuchâtel chamam Ilha de La Motte, é muito pouco conhecida, mesmo na Suíça. Nenhum viajante, que eu saiba, fez menção. No entanto, é muito agradável e singularmente situada para a felicidade de um homem que gosta de retirar-se; pois, ainda que talvez eu seja a única pessoa no mundo a quem seu destino tenha feito disso uma lei, não posso crer ser o único a ter um gosto tão natural, mesmo não o tendo encontrado até agora ninguém mais. 
As margens do lago de Bienne são mais selvagens e românticas[5] do que as do lago de Genebra, porque os rochedos e os bosques circundam a água mais de perto; mas elas não são menos risonhas. Se há menos cultura de campos e vinhas, menos cidades e casas, há também mais verde natural, mais pradarias, de asilos sombreados de rosas, contrastes mais frequentes e acidentes mais próximos. Como não há, nessas felizes arredores, grandes e estradas cômodas para os carros, a região é pouco frequentada pelos viajantes; mas ela é interessante para contemplativos solitários que gostam de se embriagar à vontade com os charmes da natureza e de recolher-se num silêncio que não é perturbado por nenhum barulho, a não ser pelas águias, do gorjeio entrecortado de alguns pássaros e do rolamento das torrentes que caem da montanha. Essa bela bacia, de formato quase arredondada, encerra em seu centro duas pequenas ilhas, uma habitada e cultivada, de mais ou menos meia légua de contorno, outra menor, deserta e menos cultivada e que será finalmente destruída um dia pelos transportes de terra que retiram sem cessar para reparar os desgastes que as ondas e as tempestades fazem-na grande. É assim que a substância do fraco é sempre empregada em proveito do poderoso.
Não há na ilha senão uma única casa, mas grande, agradável e cômoda, que pertence ao hospital de Berna, bem como a Ilha, e onde vive um Recebedor[6] com sua família e seus empregados. Ele mantém ali uma numerosa criação, um viveiro e um reservatório para peixes. A ilha em sua pequenez é de tal forma variada em seus terrenos e seus aspectos, que oferece toda a sorte de tipos e aceita toda a sorte de cultura. Nela, encontram-se campos, vinhas, bosques, grandes pastagens sombreadas de arbustos e rodeadas por toda espécie cujo frescor é mantido pela margem das águas; um grande terraço, plantado de duas fileiras de árvores acompanha a Ilha ao longo de seu comprimento, e no meio desse terraço, construiu-se um belo salão onde os habitantes dos arredores se reúnem e vêm dançar aos domingos, durante as colheitas. 
O precioso far niente.
Qual é então esta felicidade e em que consistia seu gozo? Eu deixaria que todos os homens desse século adivinhassem a respeito da descrição da vida que eu ali levava. O precioso far niente foi o primeiro e o principal desses gozos que quis saborear em toda a sua doçura e tudo o que fiz durante minha estada foi, com efeito, ter uma ocupação deliciosa e necessária de um homem que a dedicava à ociosidade.
Um de meus grandes deleites era principalmente o de deixar meus livros bem encaixotados e de não ter escritório. No lugar das tristes papeladas e daquele monte de livros velhos, enchia meu quarto de flores e de feno; pois estava então no primeiro fervor pela Botânica, pela qual o Doutor d'Ivernois me inspirara um gosto que logo se tornou paixão. Não mais querendo obra de trabalho, fazia necessário algo de diversão que me agradasse e que não exigisse esforço de que gosta um preguiçoso. Comecei a fazer a Flora Petrinsularis[7] e a descrever todas as plantas da Ilha sem omitir uma muda, com detalhamento suficiente para me ocupar pelo resto de meus dias. Dizem que um alemão fez um livro sobre um zesto de limão; eu teria feito um sobre cada erva dos prados, sobre cada musgo dos bosques, sobre cada líquen das rochas; enfim, não queria deixar uma folhinha de grama, nem um átomo vegetal sem uma ampla descrição. Em consequência deste belo projeto, todas as manhãs, depois da refeição que fazíamos todos juntos, ia, com uma lupa na mão e meu Systema Naturae[8] debaixo do braço, visitar um canto da Ilha, que, para isto, dividi em pequenos quadrados, com a intenção de percorrê-los um depois do outro, em cada estação. Nada é mais singular do que os arrebatamentos, os êxtases que eu experimentava a cada observação sobre a estrutura e a organização vegetal. A bifurcação de dois longos estames do Bravo, a energia da Urtiga e da Parietária, a explosão do fruto da Balsamina e da cápsula do Bucho, mil pequenos jogos da frutificação que observava pela primeira vez me enchiam de alegria e ia perguntando se haviam visto as arestas do Bravo, como La Fontaine perguntava se haviam lido Habacuque[9]
Devaneios do Caminhante Solitário – Jean Jacques Rousseau
Quinta Caminhada/ Primavera e Verão de 1777
 
E depois, em minha vida sempre esteve presente muita música. Meus amigos e eu imitávamos os instrumentos da orquestra para tocar nossas músicas prediletas. Lembro-me da canção do filme "Ópera dos Três Vinténs", de Pabst, o mesmo criador de Atlantide, baseado na peça de Bertold Brecht. Eu gostaria que pudéssemos escutar a canção inicial desta ópera em que um velho com seu realejo relata as proezas de Mackie.
 
[Trecho do filme com a música cantada em inglês]
O Malandro - Kurt Weill - Bertolt Brecht
 
Eu era muito jovem, tinha 14 anos e o que a "Ópera dos Três Vinténs" me influenciou muito foi o sentimento da miséria humana, que era, evidentemente, a miséria física, a infelicidade, a pobreza, mas também a miséria interior. Talvez inconscientemente, eu fazia um elo entre a infelicidade que eu tinha sofrido e a infelicidade no seio da sociedade e isso me levou às ideias sociais e revolucionárias. 
 
Esse filme alemão, como Atlantide de Pabst, assistia-se muitos filmes alemães na época, eu tinha uma espécie de fascinação por esta Alemanha anterior a Hitler, essa Alemanha de Weimar, tanto que logo após a vitória, fui a Berlim como soldado do exército francês e a primeira coisa que fiz foi escrever meu primeiro livro chamado "O Ano Zero da Alemanha". Eu voltarei a esse assunto. Fiz um caminho sinuoso na história para explicar bem a situação. À época, a Alemanha conquistava vitória sobre vitória, ocupava toda a Europa e tinha feito um pacto com a União Soviética de Stalin, e a Alemanha parecia vitoriosa. Hitler prometia um império, um Reich de mil anos. 
 
Estava extremamente pessimista e minha única esperança baseava-se em um texto de Simone Weil que falava do Império Romano e relembrava de suas conquistas com violência terrificante, saqueando e destruindo tudo o que encontrava em seu caminho, notadamente a Grécia, que era a flor da civilização. E ainda, esta temida e impiedosa Roma, três séculos após sua vitória, estabelecia pelo édito de Caracalla na sua “pax romana” o direito de cidadania a todos os conquistados. Pode-se mesmo dizer que o grego, idioma de uma nação vencida, progressivamente tornou-se a língua principal. Havia também uma frase célebre: "a Grécia vencida venceu o seu selvagem vencedor". E eu me dizia que se a Europa se tornasse nazista, podia ser que ao fim de um processo, veríamos a história humana recomeçar sobre uma base mais humana. E eis que em junho de 1941, o exército alemão invade a União Soviética e suas primeiras vitórias fazem milhões de prisioneiros, chegando rapidamente às portas de Leningrado, de Moscou, do Cáucaso. Portanto, parecia confirmar-se esta irremediável vitória alemã. 
 
E assim, durante o outono de 1941, o exército alemão é barrado às portas de Moscou, que é a capital. Chegou à última estação de bonde da cidade e não consegue mais avançar... Por quê? Primeiro, porque houve um inverno precoce e terrível, congelando inclusive o óleo dos caminhões, impossibilitando o reabastecimento das tropas alemãs. Havia pés congelados, mãos congeladas, o exército alemão havia sido paralisado pelo inverno. 
 
Por outro lado, no decorrer deste inverno, durante este inverno, Stalin faz vir do extremo oriente tropas descansadas porque ele soube, por seu espião Sorge, que o Japão não atacaria a Sibéria. Na verdade, o Japão ia atacar um pouco mais tarde os Estados Unidos, em Pearl Harbor. 
 
Pode-se dizer que por um acaso histórico, Hitler havia retardado em um mês sua ofensiva, que estava prevista para maio de 1941, por conta da revolta na Sérvia, na Iugoslávia, onde o governo havia sido derrubado, anulando o pacto que permitia as tropas alemães passarem pela Iugoslávia para ir à Grécia. Nesse momento, Hitler estava há um mês reprimindo e conquistando a Iugoslávia. Um mês que, vendo retrospectivamente, teve um valor extraordinário. No início de 1942, o general Joukov, um dos melhores generais russos, começa a contraofensiva, fazendo com que as forças nazistas recuassem cerca de duzentos quilômetros. Trata-se da primeira derrota histórica e uma nova esperança começa a surgir. 
 
Se me permitem, mostrarei um trecho do filme "Alexander Nevsky" de Eisenstein, realizado antes da guerra e do pacto germano-soviético, que retrata como os cavaleiros teutônicos foram vencidos na neve pelo exército russo do Príncipe Alexander Nevsky. E tudo isto acompanhado pela extraordinária música de Sergei Prokofiev "A Batalha no Gelo".
 
Filme e Música: Trecho de "Alexander Nevsky" de Sergei Eisenstein 
 
Sinto interromper; o filme é longo e no seu final há a cena da fuga dos cavaleiros teutônicos com o gelo se rompendo. O filme realizado por Eisenstein é magnífico, com uma sucessão de planos, como a espera que antecede a batalha, sobretudo a espera da cavalaria teutônica antes de iniciar sua marcha, e o retardar do tempo. É soberbo. O próprio Eisenstein desenhou o uniforme extraordinário dos cavaleiros teutônicos e depois a batalha. A batalha simboliza a resistência da União Soviética e o ressurgimento da esperança no mundo.
 
Sobretudo porque já havia acontecido Pearl Harbor, e que os Estados Unidos haviam entrado na guerra. De forma espantosa iniciam a produção de navios, cruzadores, veículos militares, armamentos diversos, que não somente irão proporcionar a vitória na Batalha do Pacífico, como também reabastecer a União Soviética, permitindo as ofensivas na Europa e é neste momento que a guerra se torna mundial. 
 
Ao mesmo tempo, surge uma esperança, e me sirvo deste argumento pessimista de Simone Weil - considerado pessimista naquele momento, mas com uma forte abertura para o futuro - com ênfase na União Soviética, quer dizer, o sistema comunista stalinista é cruel, autoritário; efetivamente um sistema congelado, mas sua vitória permitirá florescer todas as possibilidades inerentes ao ideal socialista. Haverá emancipação, não somente da Europa, mas talvez da Terra toda. Assim, é nessas condições que decido entrar na luta clandestina. 
 
Claro que entra aqui um elemento muito pessoal e existencial, quer dizer, um sentimento que se desejo viver, é preciso evidentemente arriscar minha vida, isto é, sobreviver. Posso sobreviver facilmente, posso me esconder, posso partir para a Suíça ou para a Espanha. Mas, para mim, sobreviver não é viver verdadeiramente, é preciso saber, nessas condições, arriscar a vida e, principalmente, participar no destino de milhares de jovens que, como eu, arriscavam sua vida durante esta guerra.
 
Foi assim que me envolvi em uma nova relação com a morte. Ela não é simplesmente uma terrível fatalidade que nos chega, mas sim algo que é preciso arriscar, desafiar, para viver.
 
Assim, em Lyon, estava na casa dos estudantes com um colega de Liceu, Jacques Francis Rolland, frequentávamos as fileiras da resistência, éramos os Estudantes Comunistas e fazíamos parte das Forças Unidas da Juventude Patriótica, um agrupamento de jovens resistentes. Lá, tínhamos uma concepção sintética da vida, o que queria dizer levar uma vida de militantes, que consistia em tentar organizar reuniões, que eram proibidas, distribuir panfletos, fazer documentos falsos, criar uma literatura de resistência e, por outro lado, participar de festas surpresa, dançar e se divertir. Ao mesmo tempo, frequentávamos a universidade e eu estudava filosofia. E, sob a influência de um amigo húngaro, refugiado na França, que tinha sido discípulo de Georg Lukács, fui introduzido à leitura de Hegel, o grande filósofo alemão, e esta leitura foi para mim uma revelação. Em que sentido? No sentido de que, para mim, as contradições eram naturais e presentes e que era preciso reconhecê-las e superá-las. A ideia também de que a dúvida não é somente uma coisa negativa, mas também positiva, quer dizer que a dúvida representa a energia do espírito que se une às ideias e que é preciso integrar as verdades separadas, ou seja, a ideia de totalidade de Hegel, a de que a real verdade é a união das verdades separadas. Esta ideia que já existia para as ciências humanas se torna uma ideia filosófica fundamental e aquilo correspondia muito bem ao entusiasmo da época. Hegel é um filósofo do devir, tal como a história do mundo que começa a partir da matéria, do ser, do nada e que vai se desenvolver em direção ao devir do espírito, tornando-se uma filosofia de evolução positiva, uma filosofia do progresso.  
 
Em minha opinião, eu estava integrado a este devir cósmico e histórico e não somente à ideia de Marx (a união das ciências naturais com as ciências humanas), como também à ideia de que era preciso unir a teoria e o pensamento à praxis, ou seja, à ação. Marx dizia que a filosofia deve ser realizada na vida social. Então, existia algo em mim que unia minhas verdades conflitantes e de certa forma conciliava a dúvida e a fé, a fé dirigida ao futuro, a racionalidade e uma religião, pois devo dizer que o comunismo foi uma religião da salvação terrestre. Não poderia acreditar numa salvação celeste e que tudo evidentemente seria perfeito e feliz, mas imaginava que se poderia eliminar a exploração do homem pelo homem.
 
Após a Casa do Estudantes, a vida clandestina continuava, mas desta vez tornou-se totalmente clandestina, com falsa identidade e até diversas identidades falsas, indo de cidade em cidade e ficando em vários alojamentos. A vida clandestina dava medo e era ao mesmo tempo excitante. Naturalmente, tinha medo de ser preso, medo de ser torturado e confessar tudo o que os torturadores quisessem, e havia muitas vezes corrido esse risco. Eu sentia, assim, a exaltação de participar de uma guerra e, tinha também o fato de que a partir daquele momento chegaríamos a novas vitórias... Por exemplo, Kursk, que para muitos poderia significar simplesmente um submarino perdido em um oceano congelado com 130 mortos, para nós representava uma cidade liberada pela União Soviética. Kursk, Kraków, eram todos nomes de cidades que celebrávamos ao ritmo das vitórias soviéticas, americanas, inglesas etc. A esperança reinava e podíamos assumir plenamente a canção dos Partisans Franceses, "Ouça Amigo, Ouça": 
 
MÚSICA
A Canção dos Partisans 
 
Amigo, ouves o voo negro
Dos corvos sobre nossas planícies?
Amigo, ouves os gritos surdos
dos países acorrentados?
Ohé, guerrilheiros, operários, camponeses
o alarme soou
Amanhã o inimigo conhecerá
o preço dos gritos e das lágrimas.
 
Subam do fundo das minas
desçam das colinas
Camaradas
Tirem da palha
As espingardas, as munições
as granadas
Ohé executores
a tiro ou à faca
matem depressa
Atenção sabotador ao teu fardo
é dinamite
Somos nós que quebramos
as grades da prisão
para os nossos irmãos
Com a raiva na mochila
é a fome que nos impele
a miséria
Há países
onde a gente no calor dos leitos
sonha.
Aqui, como vês
espezinham-nos, assassinam-nos
matam-nos à fome.
Aqui todos sabem
o que querem, o que fazem
quando desaparecem.
Amigo, se tombares
um amigo sai da sombra
para ocupar teu lugar.
Amanhã, sangue negro
secará sobre os caminhos.
Cantemos, companheiros
No escuro da noite, a liberdade
escuta-nos.
 
As palavras são muito bonitas, como por exemplo: "estamos serrando para nossos irmãos as grades das prisões - o ódio nos persegue, é a fome que nos impulsiona. Em seu leito pessoas sonham, enquanto aqui marchamos, matamos, morremos". A Marcha Ucraniana é também uma bela marcha soviética, suave, bastante alegre e que canta a vitória.
 
Com meu amigo Jacques-Francis Rolland, vivíamos estes ares de resistência, de patriotismo e nos exaltávamos com a leitura de Rimbaud, principalmente "Une Saison en Enfer", em que no final do poema havia uma ideia de que poderíamos suportar e ultrapassar todos os males e sofrimentos e como dizia Rimbaud: "possuir finalmente a verdade em uma alma e em um corpo". 
 
Por favor, leiam o final de "Une Saison en Enfer". 
 
LEITURA
Em boa parte... - Une Saison en Enfer
Habituei-me às noções simples. Vi honestamente uma mesquita no lugar de uma fábrica, uma escola de tambores formada só por anjos, diligências a rodar pelas estradas do céu, um salão no fundo do lago. Os monstros, os mistérios, os letreiros de um teatro de revista, despertavam o assombro diante de mim. 
E temo o inverno por ser a estação do conforto! Vejo às vezes no céu plagas sem fim, cobertas de brancas nações em júbilo. Grande nave dourada acima de mim agita pavilhões multicores à brisa da manhã. Criei todas as festas, todos os triunfos, todos os dramas. Tentei inventar novas flores, novos astros, novas carnes, novas línguas. Acreditei-me possuído de poderes sobrenaturais. Pois bem! Devo enterrar minha imaginação e minhas lembranças! Bela glória de artista e narrador que lá se vai!
Eu! Eu que me dizia mago ou anjo, eximido de qualquer moral, sou devolvido ao solo, com um dever a cumprir e forçado a abraçar a áspera realidade! Labrego! Estarei enganado? Seria a caridade a irmã da morte, para mim? 
Afinal, pedirei perdão por ter-me alimentado de mentiras. E vamos lá. Mas nem uma só mão amiga! E onde colher socorro? Sim, a hora nova é pelo menos muito grave. Porque posso afirmar ter alcançado a vitória: o ranger de dentes, o silvar do fogo, os suspiros pestilentos se moderam. Todas as lembranças imundas se desvanecem. Meus últimos pesares se retiram, inveja dos mendigos, malfeitores, amigos da morte, retardados de todas as espécies. Danados, se eu me vingasse! 
Sejamos absolutamente modernos. Nada de cânticos: manter o terreno conquistado. Dura noite! O sangue seco esturrica no meu rosto, atrás de mim só tenho aquele horrível arbúsculo!...O combate espiritual é tão brutal quanto a batalha dos homens; mas a visão da justiça é prazer só de Deus. É a vigília, contudo. Acolhamos todos os influxos de vigor e de autêntica ternura. E à aurora, armados de ardente paciência, cruzaremos as portas de esplêndidas cidades. Falei da mão amiga! Já é muita vantagem poder rir de velhos amores mentirosos e cobrir de vergonha esses casais de mentira, - lá embaixo eu vi o inferno das mulheres; - e então me será lícito possuir a verdade em uma alma e um corpo. (Abril de 1873)
 
Vejam que para nós isso significava não somente algo coletivo, como também, um desejo de vitória sobre nós mesmos, de encontrar a verdade em si mesmo, de ser devolvido à terra, de se tornar concreto. Tudo isto nos estimulava e havia uma visão feliz, que encontrávamos em "Bonne Pensée du Matin", de Rimbaud, tocada em "Illuminations", não sei qual é a tradução, mas em francês é uma música maravilhosa 
 
Verão, às quatro da madrugada, 
O sono do amor ainda demora.
Nos arvoredos se evapora
O odor da noite festejada.
 
Ao sol das Hespérides, canteiros
Imensos de obras se mobilizam,
Chegando - em mangas de camisa -
Os carpinteiros.
 
Em seus desertos de serragem,
Gentis e atentos,
Fazem lambris em que a cidade
Há de ver falsos firmamentos.
 
Pelos obreiros bons, vassalos
De um rei da Babilônia, ó Vênus!
Deixa os amantes de alma em halos
Por um instante ao menos.
 
Dá-lhes, Rainha dos Pastores,
A aguardente de cada dia;
Que tenham forças quando forem
Ao seu banho de mar do meio-dia.
 
Participamos da libertação de Paris, um desses dias maravilhosos, que eu chamo de êxtases da História, quer dizer, são momentos raros de felicidade plena. Vivi alguns: em maio de 1968 e também em Portugal, quando eu estava presente na Revolução dos Cravos. Eles são raros esses momentos. Após estes momentos de êxtase, naturalmente retornamos à vida cotidiana e aos velhos problemas, mas o importante é tê-los vivido. Imagino que isto não significava um fracasso, pois as coisas que estavam nascendo eram muito belas. Alberoni, sociólogo e filósofo italiano, escreveu um livro muito bonito sobre o nascimento de uma revolução, de um amor, de que tudo em seu estágio inicial, em seu nascimento é maravilhoso, e que o grande desafio é lutar contra a degradação e fazer perdurar e regenerar este estado nascente, o que é muito difícil.
 
Assim, após a libertação de Paris, produz-se um terrível vazio em mim e em diversos companheiros. Alguns ingressam na vida política, outros cuidam de suas carreiras, e eu me incluí dentre aqueles que não se adaptaram ao vazio da vida cotidiana.
 
Senti a primeira dificuldade porque, sendo ainda ligado ao partido comunista, participava de um movimento de resistência que não era comunista, principalmente junto com François Mitterrand e outros amigos. Vivia certa dualidade; era visto como suspeito por uns e outros e não conseguia me adaptar à mesquinhez da vida cotidiana. 
 
Organizei uma exposição com o título "Crimes Hitlerianos", e os organizadores queriam de qualquer forma chamá-la de “Crimes Alemães”, o que eu não queria, de forma alguma, não queria estigmatizar a Alemanha. Enfim, eu estava desesperado. 
 
Tive a oportunidade de apresentar-me como voluntário ao final da guerra, quando o primeiro exército francês entrou na Alemanha e estava à procura de pessoas para compor seu Estado-Maior do Primeiro Exército e efetivar a eventual ocupação da Alemanha. 
 
E assim, parti em um caminhão com minha companheira Violette e alcançamos o Estado Maior da primeira armada em Landau, no Lago de Constance. Lá, houve alguns momentos de euforia com a vitória e o fato de que nos sentíamos senhores em um país conquistado, nós que havíamos vivido em condições de restrição e de dificuldade, conhecemos finalmente a abundância. Eu estava apaixonado pela Alemanha e me questionava muito e dali surgiu meu primeiro livro. 
 
Quando os Soviéticos entraram em Berlim, eles foram os primeiros, e autorizaram os aliados a entrar na cidade, aproveitei para tomar um avião militar, porque eu era responsável pela propaganda no setor francês, e ir a Berlin. A cidade estava inteiramente arrasada, era um cenário caótico, como em outras cidades alemãs, mas lá era a capital. Eu estava no centro deserto, na porta de Brandenburgo, tudo estava destruído, fui à Chancelaria de Hitler e recolhi alguns documentos por ele assinados condecorando soldados alemães. 
 
Encontrava-me neste mundo sem vida quando subitamente surge uma melodia, uma música. Os soviéticos tinham instalado um alto-falante na porta de Brandeburgo, fazendo tocar a Sonata da Primavera de Beethoven e esta sonata em meio às ruínas e à morte, anunciava um novo tempo. Foi algo que me fez vibrar, pois sempre acreditei nesta dualidade, daquilo que anuncia a morte, a perda, fazer renascer a esperança de um futuro e, neste momento, fiquei profundamente comovido. Eu me deslocava pelas diferentes zonas da cidade, recebia boletins de informação dos serviços militares britânicos e americanos e tornara-me amigo de um alto funcionário soviético em Berlim Oriental. Entrando nesta Alemanha sem governo, sem estado, esfacelada e desunida, com um povo abatido, eu me perguntava: o que fez com que este país, que era um dos mais cultos do mundo, que produziu a filosofia mais rica, a música mais bela, um país que possuía uma cultura tão extraordinária, como um país assim pode sucumbir à barbárie do nazismo? Também me perguntava: o que é este país destruído, este país devastado?
 
Era preciso ao menos descrevê-lo e a ideia me fez escrever um livro que se chamou "O Ano Zero da Alemanha". Este livro tornou-se um testemunho sociológico, ou mesmo sócio-histórico sobre o estado de decomposição da Alemanha e sobre as perspectivas futuras. Naquela ocasião, em um dos capítulos, fiquei em oposição à maioria dos franceses e aliados que descreviam a Alemanha como uma nação e um povo portadores do mal na sua essência. Havia um sentimento antialemão, como se a Alemanha possuísse nela mesma um vício congênito. Enquanto escrevia que não havia culpa do povo alemão, pois uma das teses do livro é que não se podia falar de culpabilidade de um povo, mas de responsabilidades, que se traduzem no fato de que é preciso reparar os inúmeros danos produzidos e que o futuro estado alemão deveria fazê-lo, mas que não havia culpabilidade. 
 
Evidentemente, o livro era antinazista, mas não antialemão e esta era a oportunidade do livro naquele momento. Por quê? Porque o partido comunista francês tinha tido durante a guerra, a ocupação e mesmo depois da guerra, uma política completamente antialemã. É preciso lembrar que houve um célebre artigo de Illya Ehrenbourg, na imprensa soviética dizendo: "Só conheço um alemão bom, o alemão morto", ou seja, não era possível uma boa Alemanha. Em outro artigo Stalin respondia: "o camarada Ehrenbourg exagera, pois os Hitlers passam, mas o povo alemão fica". Portanto, efetivamente, poderia existir bons alemães. 
 
Era evidentemente uma mudança na política da União Soviética, em vista da formação da futura zona de influência da Alemanha Oriental, que surpreendeu o partido comunista francês, que sem ser avisado, continuava sua propaganda antialemã. Quando meu livro chegou ao escritório de Maurice Thorez, grande dirigente do partido comunista francês, ele disse: "Devemos certamente considerar este livro que nos permitirá promover esta mudança política". E então o livro destinado ao desaparecimento, ao contrário, tornou-se oficial e fui festejado.
 
Então, como escrevi este livro? No começo, tomava notas de todo tipo, de observações, de fatos extraídos dos boletins de informações e das minhas reflexões. Tentei agrupá-las em torno de temas e uma vez tendo temas determinados, reagrupava-os como núcleos de um futuro capítulo. Tentava assim estabelecer um plano, em tudo o que eu fazia, tentava estabelecer um plano. É talvez a influência de um professor de literatura do primeiro ano do Liceu, que sempre repetia ser necessário sempre fazer um plano. Antes, não me importava com isso, mas a ideia ficou: fazer um plano. 
 
Juntava minhas notas, colocava-os em ordem e comecei a redigir. Parecia que estava possuído, um louco, pois escrevia sem parar, inclusive em mesas de restaurantes enquanto jantava com amigos, depois do jantar, escrevia, escrevia sem parar. Minha sorte foi que meu amigo Robert Antelme, deportado e milagrosamente retornado de um campo de concentração, havia decidido fundar uma pequena editora. Quando eu lhe contei o que vi na Alemanha, ele me disse: "escreva um livro". Soube, então, que minha obra, produto de um impulso, seria publicada.
 
Retornei a Paris sem nenhum trabalho, mas Violette e eu economizamos nosso soldo de oficiais e passamos um ano a gastá-lo. Ficamos alojados na casa da amiga Marguerite Duras, escritora pouco conhecida na época, junto com outros amigos, como Mascolo, seu companheiro, e seu ex-marido Robert Antelme. Formamos um grupo fraternal em Saint Germain des Près e conversávamos muito, adorávamos discutir, na casa da Rue Saint Benoît onde morávamos, no Café De Flore e à noite íamos ao Tabou. Era a época de “As Folhas Mortas”, linda canção de Prévert e Cosma, que podemos ouvir agora. 
 
MÚSICA
 
Oh, je voudrais tant que tu te souviennes
Des jours heureux où nous étions amis
En ce temps là la vie était plus belle
Et le soleil plus brûlant qu’aujourd’hui
Les feuilles mortes se ramassent à la pelle
Tu vois, je n’ai pas oublié
Les feuilles mortes se ramassent à la pelle
Les souvenirs et les regrets aussi
Et le vent du Nord les emporte
Dans la nuit froide de l’oubli
Tu vois, je n’ai pas oublié
La chanson que tu me chantais
C’est une chanson qui nous ressemble
Toi, tu m’aimais et je t’aimais
Nous vivions tous les deux ensemble
Toi qui m’aimais, moi qui t’aimais
Mais la vie separe ceux qui s’aiment
Tout doucement, sans faire de bruit
Et la mer efface sur le sable
Les pas des amants désunis.
bis
 
Passo agora a uma das mais belas canções francesas, um poema de Rutebeuf do século XIII, musicada por Léo Ferré. Os anos que se seguiram à guerra foram extraordinários para a música francesa, músicas de Prévert e Cousmar, de Barbara, de Ferré, de Brassens e muitos outros. Precisaríamos de um dia especialmente dedicado às canções, porém agora poderemos ouvir o poema canção de Rutebeuf que é sobre a amizade, a perda dos amigos, o tempo. 
 
MÚSICA
 
La Complainte
Que sont mes amis devenus
Que j'avais de si près tenus
Et tant aimés
Ils ont été trop clairsemés
Je crois le vent les a ôtés
L'amour est morte
Ce sont amis que vent me porte
Et il ventait devant ma porte
Les emporta
Avec le temps qu'arbre défeuille
Quand il ne reste en branche feuille
Qui n'aille à terre
Avec pauvreté qui m'atterre
Qui de partout me fait la guerre
Au temps d'hiver
Ne convient pas que vous raconte
Comment je me suis mis à honte
En quelle manière
Que sont mes amis devenus
Que j'avais de si près tenus
Et tant aimés
Ils ont été trop clairsemés
Je crois le vent les a ôtés
L'amour est morte
Le mal ne sait pas seul venir
Tout ce qui m'était à venir
M'est advenu
Pauvre sens et pauvre mémoire
M'a Dieu donnéle roi de gloire
Et pauvre rente
Et droit au cul quand bise vente
Le vent me vient, le vent m'évente
L'amour est morte
Ce sont amis que le vent emporte
Et il ventait devant ma porte
Les emporta
Les esperances de lendemain
Ce sont les fêtes...
 
Que canção maravilhosa! Ouvi-la agora, em que tantos amigos não estão mais, partiram, estão mortos, me causa profunda emoção. O mais curioso na música, assim como no teatro e na poesia, é que as coisas mais dolorosas se transformam, pelo talento do artista, em algo belo, e nos dão alegria na tristeza. Seria esta talvez a maravilha, o milagre da arte de todos estes artistas, que são frequentemente infelizes. Lembro-me do Quinteto de Schubert em seu Adágio que transformou sua infelicidade, sua aflição e solidão compondo uma das mais belas músicas do mundo. 
 
Estes momentos foram felizes para mim em companhia de amizades e da comunidade. Vivíamos em comunhão, sem preocupação com dinheiro, comíamos juntos, fazíamos tudo juntos e estes momentos tão belos, evidentemente, não poderiam durar.
 
Meus amigos e eu vivíamos juntos, em perfeita comunhão, havíamos superado nossa própria "desestalinização", pois, contrariando nossas esperanças de presenciar o nascimento do socialismo, vimos se instalar a guerra fria que, do ponto de vista cultural, se manifestou de maneira absolutamente grotesca. Nossa racionalidade resistia, não querendo crer em tanta estupidez. Finalmente, nossa revolta não vinha de uma crítica intelectual do marxismo, mas vinha de um excesso de mentiras, um excesso de besteiras no sistema. 
 
Não queríamos abandonar o partido. Nós resistíamos. Para mim o partido representava algo de maternal, a comunhão. Havia naturalmente algo de paternal, que era a autoridade suprema, mas havia essa atmosfera maravilhosa, que nos permitia ir a um país estrangeiro, ali encontrar os camaradas e confraternizar. No entanto, esta camaradagem era pouco profunda, superficial de pessoa a pessoa, pois se alguém fosse excluído logo seria rejeitado por todos e os irmãos desapareceriam. 
 
Mas enfim, existia esse sentimento infantil, era uma máquina que infantilizava, como qualquer religião. Nós rejeitávamos os dogmas culturais, porém era muito difícil rejeitar a política, pois pensávamos que se não era justo nem bom, não tínhamos outra política e dizíamos, bom, ele pode ter erros políticos, mas isso não é grave, esse partido representa as classes trabalhadoras, a esperança do comunismo mundial.
 
Pouco a pouco meus amigos foram excluídos e partiram, e eu parti também, isto é, não renovei minha filiação a partir de 1949, mas não ousava dizer que não estava mais no partido. Quando me excluíram, em 1951, porque escrevi um artigo publicado no L'Observateur, não ousei dizer que não mais pertencia ao partido, mas deixei-me excluir, fato que me proporcionou um forte sentimento de liberdade. 
 
Antes desse episódio eu era um desempregado intelectual; produzia algumas matérias jornalísticas para uma publicação da Federação dos Deportados Resistentes e Patriotas na Alemanha, porém minha dissidência tinha provocado minha demissão. Esse ano foi aparentemente o mais terrível da minha vida, o mais triste, e ele foi na realidade bastante humilhante, porque eu tinha duas filhas pequenas e Violette, minha esposa, viajava para o interior para ensinar filosofia. Mas esse período acabou sendo efetivamente bastante produtivo e feliz, pois iniciara a redação do meu livro talvez mais significativo: "O Homem e a Morte". Logo após "O Ano Zero da Alemanha", uma editora que preparava uma coleção com um renomado editor, queria tratar de temas da História, como por exemplo, a mulher na História, a justiça na História etc. Ela me perguntou se eu já tinha escolhido um tema e respondi: “a morte”, sem saber muito o que iria fazer...
 
Sem dúvida, escolhi este tema da morte não somente pelas marcas deixadas pela morte de minha mãe, ou por ter arriscado a vida, ou ainda pela morte de diversos amigos durante a guerra, porém sem dúvida também por uma espécie de fascínio.
 
No começo, qual era a minha ideia? Eu havia lido, por curiosidade biológica, os trabalhos dos biólogos russos Metchnikov e Metalnikov, que diziam que a morte provinha da esclerose do tecido conjuntivo. Havia também os estudos de Alexis Carrel demonstrando que as células embrionárias poderiam viver indefinidamente, portanto, sendo praticamente imortais, ou seja, que a morte destas células não fazia parte de sua programação. Em função disso, eu me dizia que talvez a ciência permitiria retardar a morte. Não evitaríamos a morte acidental ou cósmica, porém os seres humanos poderiam viver um tempo bem maior, sem as vicissitudes de uma velhice avançada, mas sim com todo o vigor espiritual, moral e físico. 
 
Eu acreditava na ciência, mas eu me dizia que isso não era suficiente, que era preciso estudar e conhecer as atitudes humanas diante da morte. Iniciei ampla pesquisa na Bibliothèque Nationale (Biblioteca Nacional), onde trabalhei durante um ano. Que embriaguez maravilhosa é passar dias numa biblioteca! Um mar de livros, leituras sem fim, incontáveis anotações. Sair para fumar um cigarro, comer qualquer coisa e regressar. Vive-se uma vida pseudomonacal numa biblioteca. Descobri que inexistia uma bibliografia sobre a morte. Por que não? Porque os rituais da morte restringiam-se à Antropologia e à Etnologia em sociedades ditas primitivas e arcaicas, ou então às grandes religiões, como o Cristianismo, Islã, etc. Do ponto de vista psicológico, era preciso pesquisar Freud, com a questão da “pulsão da morte”, da ideia de morte, duas concepções da morte. Era preciso pesquisar a psicologia infantil, o livro "The Child's Discovery of Death" de Sylvia Anthony, que mostrava que para a criança a morte é, primeiro, uma rejeição, o esquecimento. Depois, eles tomam a consciência de que é a destruição do eu. 
 
Era preciso fazer uma investigação generalizada em todos os domínios, assim como, evidentemente, na biologia. Na biologia, o problema antropológico é que os humanos são igualmente mortais como os demais seres vivos, como todos os animais, mas são os únicos que creem numa vida após a morte. Em todas as sociedades, sobretudo nas arcaicas, existiam ritos que asseguravam esta vida após a morte. Isto me fez estudar estes ritos. Era um trabalho apaixonante, pois era um campo inexplorado. Imediatamente, por exemplo, através da leitura pude determinar que havia duas concepções fundamentais sobre a morte. Uma é a sobrevivência do duplo, do ghost, do espectro, do fantasma. Cada um vive com o seu duplo, com um outro si mesmo, estranho e presente em si mesmo, que se pode "ver" no reflexo da água, no espelho, que se evade no sonho. Após a morte, este duplo continua a viver, levando as sociedades arcaicas a enterrarem os mortos com suas armas e comida. Outra concepção era a do renascimento e o morto era colocado em posição fetal para renascer como outro, humano ou animal. Tudo isto dá origem a todas as concepções ulteriores à morte e suas metamorfoses. Em seguida, estudei a história das religiões e o surgimento de uma consciência não religiosa, que afirma não existir nada além da morte e que se manifesta desde os filósofos gregos. Acompanhei a morte no decorrer da História e como este tema volta na sociedade moderna como uma fonte de angústias e tormento. Eu me debruçava sobre o paradoxo: como pode um ser humano que tem horror da morte, ao mesmo tempo arriscar sua vida e estar pronto a sacrificá-la por uma causa? Uma situação vivida por mim e que me dizia que quando havia tido uma participação coletiva, uma integração em uma comunidade, em um “nós”, podemos arriscar nossa vida... Quando estamos sós, um indivíduo só tem horror à morte. 
 
Comecei, então, minhas investigações, conforme meu método, tomando notas sem cessar, reunindo-as, cruzando-as, e sem me aperceber, havia criado um método, que me mostrava ser necessário reunir elementos das mais diversas disciplinas separadas e não ficar restrito a uma única, para poder tratar do problema da morte, usando também as reflexões dos filósofos sobre o tema. Existem dois excelentes livros sobre a morte, um de Landsberg e outro de Jean Kellevitch. 
 
Havia o luto e havia a vitória sobre a morte, quer dizer, os ritos que asseguram a sobrevivência do duplo ou o renascimento. Era possível assim dar uma certa esperança.
 
Foi preciso estudar estas noções complexas, estes dados aparentemente contraditórios, e cheguei à ideia que, graças à ciência, obteremos a vitória sobre a morte. Era a conclusão do livro que escrevi em 1949 e 1950 e publicado em 1951. Apesar das críticas favoráveis, foi pouco vendido, já que a morte era um tabu e um assunto não consumível à época. 
 
Ao transferir-me para outro editor, "Le Seuil", solicitei a reedição deste livro que se concretizou vinte anos após, em 1970, com uma edição de bolso. Mesmo sendo um autor modesto quantitativamente, é o meu livro mais vendido, com 70.000 exemplares. 
 
Nas diversas edições, fiz conclusões sucessivas para, de certa forma, refutar minha primeira conclusão e dizer que era utópica, idealista e que não podemos dominar a morte. Por quê? Em razão do segundo princípio da termodinâmica que afirma ter sempre um momento que conduz à deterioração dos tecidos. Por quê? Porque havia lido as teorias de Orwell que afirmava ser a vida uma série de comunicações entre moléculas de DNA, RNA e proteínas e que, certamente, existirá algum erro nestas comunicações, resultando numa desorganização da vida, numa degradação da vida, tornando a morte inevitável. Havia outras teorias afirmando que em inúmeras espécies a morte já está programada. Observem certas árvores onde o ramo que mantém a folha se rompe para que esta possa cair mais facilmente. A cada nova edição, então, escrevia diferentes conclusões contestando aquela ilusão científica. 
 
No ano passado, eu participava de um debate sobre a morte e um eminente biólogo me disse: "Você estava certo na sua primeira edição, pois agora já é possível com a decodificação dos genes, encontrar aquele que faz cessar o funcionamento e, se não se programa a morte, permite suprimir o processo da senectude, prolongando de fato a vida"... Aliás, vocês sabem que esta prática está autorizada na Inglaterra e nos Estados Unidos, com a possibilidade de, a partir de células tronco dos embriões, cultivar os mais diferentes órgãos, fígado, cérebro, coração, rins, possibilitando a qualquer pessoa cultivar os órgãos para reimplante, não somente próteses artificiais ou corações artificiais, mas também um coração natural. Atualmente, o desenvolvimento da biologia permite entrever uma vitória sobre a morte, ou pelo menos, a primeira grande vitória humana sobre a morte. É evidente que, além disso, as possibilidades de manipulação da biologia são assustadoras e os fatos não ocorrem com tanta euforia como eu imaginava na época. Penso refazer um novo prefácio, retomar as conclusões iniciais por mim rejeitadas e situá-las no contexto atual. Pode-se dizer que é um livro que evoluiu, mesmo havendo muitos outros que ficaram parados. 
 
Escrevi “Autocrítica”, a reflexão de um problema que para mim era capital e, sobretudo, após minha exclusão do Partido Comunista, passei um período politicamente vegetativo e não fiz nenhuma intervenção durante alguns anos. O que me fez acordar foram os acontecimentos na Polônia e na Hungria, mas antes disso o relatório Kruschev, que denunciava Stalin e seu regime e a insurreição húngara onde todo um povo tentava se libertar, onde havia conselhos operários, onde o proletariado húngaro havia sido destruído pelo exército Vermelho, dito exército dos proletários.
 
Neste momento houve uma total ruptura em meu pensamento e compreendi que o comunismo não era somente um erro que já havia abandonado, alguma coisa que havia me tornado estranho, mas um perigo real. Havia uma explicação para a vida e a morte. Eu queria refletir sobre tudo isso. Perguntava-me como era possível que antes da guerra tinha todos os elementos críticos contra o comunismo stalinista, que havia lido Trotsky, Victor Serge e muitos outros, indagava-me como pude me tornar comunista durante a guerra. E como pude, por assim dizer, desintoxicar-me em seguida? 
 
Tratava-se evidentemente de um problema crucial e de autoexame, pois me considerava inteligente, lúcido e racional. Como eu, racional, professava uma religião? Pois repito, o comunismo era uma religião. Esta reflexão me foi de um proveito pessoal extraordinário. 
 
O livro não era uma obra difícil, não era preciso reunir documentos de origens diversas, bastava mergulhar no meu âmago e ressuscitar fatos daquele período. Não era uma autobiografia completa, situando-me unicamente no plano das ideias políticas. Procurava compreender as diversas etapas e processos, sobretudo por algo que me fascinava muito: a experiência da Segunda Guerra e suas consequências que eu chamei de "à deriva". De um lado, possuía amigos pacifistas de esquerda que durante a ocupação não participaram da resistência. Por outro lado, eles sustentavam a hipótese de que nada poderiam fazer. Estávamos sob a "pax" hitleriana. Mas esta teve pouca duração, pois imediatamente, querendo eles ou não, participávamos da Segunda Guerra Mundial. Nesta ocasião, alguns se tornaram colaboradores, ou seja, o pacifismo levou-os de fato a colaborar com a guerra nazista. Revi estes amigos depois e tentei compreender o processo psicológico deste desvio. 
 
Vi amigos que eram bastante céticos e lúcidos, como Pierre Coutarde, se perderem. Coutarde entrou para o jornal "L'Humanité" para escrever sobre política externa, e ele era muito lúcido, tinha estado em Moscou em 1938 e na época ele me disse: "eu não serei comunista". Porém ele era de esquerda, era um pró-comunista, porque a Rússia significava a vitória dos Aliados e a nossa libertação. Ele disse a Maurice Thorez, o chefe do Partido Comunista, que o havia feito entrar no "L'Humanité": "Camarada Thorez, eu não sou comunista". Ao que Thorez respondeu: "de agora em diante, você é". Ele começou então a produzir artigos que não tinham nada a ver com a sua lucidez. Além disso, ele foi indicado para acompanhar o processo do principal representante comunista húngaro que confessou ter espionado para todos os serviços ocidentais, um fato evidentemente falso, que eu sabia que era falso. Coutarde fez artigos absolutamente ignóbeis sobre isso para “L`Humanité”.
 
Foi a perdição desse rapaz, que era cético, inteligente, lúcido. Eu me dizia sem parar: "é a História, a roda da História, que nos arrasta a esses desvios". Eu mesmo poderia ter sofrido o mesmo, porém resisti e formei minha opinião que não era exatamente indulgente. Pessoas são arrastadas pelos furacões da História, jogadas à deriva, e procuramos combatê-los e depois tentamos compreender o que se passou e principalmente tirar uma lição de lucidez.
 
Este livro me imunizou, não apenas contra o comunismo stalinista, mas contra toda uma série de raciocínios que consistem em ter uma visão maniqueísta do mundo. 
 
É preciso prestar atenção sempre e conservar-se lúcido e jamais me deixei influenciar pelo maoísmo, pelo castrismo. Mesmo sem falar das justificativas dos sistemas e seus argumentos, havia me tornado alérgico a certos tipos de condenação, de vontade de liquidar psicologicamente e moralmente o adversário. Isto me conduziu a não querer oprimir os vencidos e a inúmeras consequências. 
 
Podemos terminar com um pouco de música. E se ouvíssemos “La Varsovienne” para terminar esse período? Pois ela nos traz tantos impulsos, tantas esperanças que não foram realizadas, que foram truncadas...
 
MÚSICA
 
La Varsovienne
Notre ennemi nous attaque en rafales,
Son joug cruel nous opprime odieusement
Nous sommes entrés dans la lutte finale
Qui sait encore quel sort nous attend?
Mais nous prendrons en nos mains,
prolétaires,
Le drapeau rouge de tous les travailleurs,
Nous lutterons pour la cause ouvrière,
La liberté et le monde meilleur.
Frères, en route, tous à la lutte! (bis)
Marche hardiment ouvrier, en avant
Le travailleur meurt toujours de famine,
Nous ne pouvons plus nous taire, mes amis,
Ni retenir notre haine en sourdine,
Ni avoir peur d’échafauds ennemis.
Ceux qui sont morts en honneur, avec gloire,
En combattant pour le monde ouvrier,
Ne périront pas dans notre mémoire,
Et ne seront nullement oubliés!
Nous haïssons les tyrans et les trônes,
Pour délivrer notre peuple martyr,
Nous détruirons leurs palais et couronnes
N’en laisserons plus aucun souvenir
Notre vengeance sera impitoyable
Aux parasites du travail humain,
Car tous leurs crimes sont impardonnables,
Et notre jour de revanche est prochain.
 
O que ouvimos é uma gravação do exército Vermelho. Foi colocado tudo no mesmo plano, mas na realidade, o início deveria ser em tom de uma marcha militar e a segunda parte, a retomada, é um hino. Eles não fizeram diferença entre o que é marcha militar e o que é hino. De todo modo, é muito bonito. 
 
Muito obrigado por sua atenção hoje. 

[1] Do Apocalipse, de São João. "Para a maior glória de Deus.” Mote dos jesuítas.[2] "Jovem, levanta-te. " - São Lucas, C. VII, v. 14. Palavras da linguagem aramaica, pronunciadas por Jesus Cristo quando da ressurreição do filho da viúva de Nain. [3]  “Tenho dito” - Expressão latina empregada antigamente no final dos discursos. [4] Ao norte do lago de Neuchâtel.[5] É a primeira vez que Rousseau emprega esta palavra. Do inglês Romantic, Rousseau a emprega com o sentido de romanesco e pitoresco. [6] Funcionário encarregado de receber, de arrecadar contribuições e impostos. Trata-se do Recebedor Engel. [7] A flora da ilha de Saint-Pierre: A expressão latina é criada por Rousseau.[8] Obra de Carl von Linné, naturalista sueco, publicada em 1735. [9] Engano de Rousseau. La Fontaine perguntava se haviam lido Baruch.

Agosto de 2000, Sesc Vila Mariana, São Paulo

fonte: DOS DEMÔNIOS - Atelier ao vivo do pensamento de Edgar Morin Agosto de 2000, Sesc Vila Mariana, São Paulo Primeiro dia.