O que podemos esperar? A Consciência Mundial no século XXI

Edgar Morin

Apresentadora 
 
Boa noite. Bem-vindos a todos. Estamos aqui para assistir a palestra: O que podemos esperar? A Consciência Mundial no século XXI, com Edgar Morin. O Sesc de São Paulo mantém relações com o pensamento de Edgar Morin desde a década de 1990, quando ocorreu sua participação no Seminário Internacional A Cultura das Metrópoles. A aproximação intensificou-se nos anos seguintes, destacando-se a realização de seminários destinados a técnicos do Sesc, em 1999, o Encontro de formação sobre o pensamento complexo, em 2000; a participação no Seminário Internacional Cultura e Educação em 2012 e a palestra Pensar o Sul, em 2009. 
 
Atualmente, as Edições Sesc preparam a publicação dos três volumes dos Diários de Edgar Morin, com lançamento previsto para este ano. Lembramos que perguntas poderão ser feitas por escrito e entregues aos funcionários que estão circulando na plateia. 
 
Então, agora, para fazer a abertura do evento, convidamos o Diretor Regional do Sesc de São Paulo, professor Danilo Santos de Miranda. E junto com ele, o pensador Edgar Morin. 
 
Abertura de Danilo Santos de Miranda
 
Boa noite a todos e todas. Muita alegria poder recebê-los aqui, para ouvirmos o nosso querido professor Edgar Morin, uma pessoa muito querida a nós do Sesc, do Brasil e de todas as pessoas que refletem, discutem e se preocupam com as grandes questões mundiais e que tem nos dado a honra de participar intensamente duma ampla gama de discussões, aqui conosco, em São Paulo, e em outras partes do Brasil, em outros estados, também, e mais recentemente, no Rio de Janeiro, no Sesc do Rio de Janeiro, uma vez que, através de sua participação aqui no Sesc de São Paulo, ele se tornou uma pessoa muito querida e importante no Sesc inteiro e sobretudo no Sesc do Rio de Janeiro, no Departamento Nacional, na Escola de Ensino Médio do Sesc em Jacarepaguá, onde ele tem contato com alunos, professores e tem participado de vários momentos importantes e, agora, recentemente, participou das discussões em torno da Rio+20, num evento paralelo que aconteceu no Sesc do Rio de Janeiro. Mas ele faz questão, todas as vezes que vem ao Brasil, de passar por São Paulo, antes ou depois desses diversos compromissos, além dos compromissos que ele tem tido conosco, aqui em São Paulo. 
 
Já tivemos a oportunidade, o privilégio extraordinário no Sesc de tê-lo conversando com nossos funcionários, com nossos assistentes, com nossos auxiliares, com todos os técnicos do Sesc, numa espécie de internação durante algum tempo num hotel, onde nós pudemos discutir e debater questões relevantes da cultura, do momento atual, numa perspectiva de preparar cada vez melhor o nosso pessoal para o trabalho. Então, para nós é realmente um motivo muito especial, de alegria tê-lo aqui conosco pra esse encontro. Esse encontro que julgávamos que teria alguma repercussão, mas não imaginávamos que a repercussão fosse de tal monta, que nós não temos espaço suficiente aqui, para poder abrigar a todos de maneira confortável. Eu sei que tem uma parte das pessoas que estão sentadas nas calçadas... na escada... Na calçada talvez tenha também lá fora. Mas, enfim... nas escadas aqui dentro e temos também algumas salas com telões, com televisão, aí pelo prédio, de modo a facilitar o ingresso e o fato das pessoas todas sentarem, assistirem. Pelo menos teremos essa oportunidade. Além de, naturalmente, transmitirmos via web, pra todo mundo! 
 
Teremos oportunidade, aqueles que desejarem, de ouvir a fala que o Morin terá a partir desse momento. Portanto, é com muita alegria que nós convidados, então, ao querido Morin, que inicie a sua fala. Nós teremos a oportunidade de ouvi-lo. Após, teremos também a oportunidade de debater ou de responder algumas questões. 
 
Tem uma questão... Na realidade, é que está tudo escuro aqui, eu sei que tem gente aí, mas é que nós não estamos acostumados com essa coisa dessas luzes intensas no palco. Ah! Melhorou.  Aqui temos ainda 2 lugares. Sei que tem uma pessoa com muita dificuldade, de bengala na mão... Ela já sentou? Por favor, senta aqui na frente.  Não tem cabimento. Senta aqui. Tem mais outro lugar aqui, não? Tem? Ah! Foi trocar o fone. Então, tem mais um lugar. Pelo menos um, tudo bem. Oh! Tem outro lugar ali, alguém que está em pé. Tudo bem. São pouquíssimos lugares. Quem está nos vendo de fora, não pense que têm lugares sobrando aqui dentro, porque vai dizer: puxa, por que estou aqui fora? Não, não. Poucos lugares. 
 
Muito bem. Estamos preparados... Um pouco de luz na plateia é importante. Nós não somos muito acostumados com esse negócio de se apresentar com muita luz na cara e não enxergar nada na frente. Muito bem. 
 
Então, com vocês, Edgar Morin. 
 
Palestra de Edgar Morin
O que podemos esperar: A consciência mundial no século XXI
 
Amigas e amigos, obrigado por sua presença e sobretudo pela sua amizade. Vou falar em francês. 
    
No fim do século XVIII, o filósofo Kant, tentando entender o mundo, no qual ele vivia, propôs as seguintes perguntas: "O que posso saber?" "Em que posso acreditar?" "O que posso esperar?" "O que posso fazer?"
 
Hoje, no décimo segundo ano do século XXI, antes mesmo de tratar da questão do destino do mundo, no qual estamos e vivemos, precisamos fazer essas questões preliminares. O que posso saber? Aparentemente, posso saber tudo. Entro na internet, acesso o Google, o Wikipedia, vou à biblioteca e posso saber tudo. No entanto, quando refletimos, percebemos que esse saber é disperso, é compartimentado. E, na verdade, todos os problemas mais importantes, os problemas globais e os problemas fundamentais que precisam religar mil saberes dispersos.
 
Na verdade, não estamos preparados. A nossa maneira de saber não é capaz de enfrentar esse problema. Como, por exemplo, todos nós sabemos sobre a globalização, acumulamos relatórios de especialistas, da ONU, dos economistas, dos  sociólogos e assim por diante. E ao mesmo tempo, não sabemos nada. Porque não sabemos como esse fenômeno tão complexo com tudo misturado, a economia, a sociologia, a demografia, a psicologia, a religião, não sabemos como unir todos esses problemas. De forma paradoxal, vivemos em uma época na qual há uma grande quantidade de saber e de conhecimento, mas em que estamos desarmados diante dos problemas fundamentais da nossa vida pessoal, da nossa vida enquanto cidadãos e da nossa vida enquanto seres humanos. Então eu diria que é necessário reconstruir um saber e um conhecimento que sejam pertinentes.
 
Em que posso acreditar?
No século passado, acreditou-se no socialismo, no comunismo, alguns acreditaram no fascismo, o que quer dizer que houve crenças muito fortes. Mas todas essas crenças
estão em colapso hoje em dia. Há a desilusão, há o desencantamento. O neoliberalismo, que se apresentava como uma solução para todos os grandes problemas da humanidade, hoje em dia mostra-se também como uma ilusão. Ele se Ele se pretendia uma ciência, quando é apenas uma ideologia.
E hoje começamos a pensar: "Em que podemos acreditar para o futuro da humanidade, 
para a salvação do nosso planeta?"
 
Havia uma grande fé em uma lei que se acreditava ser histórica, a lei do progresso.
Pensava-se que o progresso fosse um movimento irreversível, que iria sempre em direção ao melhor, mas hoje em dia essa crença caiu por terra. Para nós, o futuro não é um amanhã melhor. Para nós, o futuro é  incerteza, é angústia. Diante de tal situação, será que podemos acreditar no ser humano? Será que podemos acreditar na humanidade? Aqui também temos um problema, porque já na época de Kant havia aqueles, como o filósofo Hobbes, que acreditavam que os serem humanos não eram bons e que era necessário prendê-los em leis e regras para impedi-los de fazer o mal.
Mas Jean-Jacques Rousseau acreditava que os seres humanos eram bons por natureza e que era preciso fazer o contrário, liberá-los de todas obrigações  sociais. Mas hoje em dia sabemos que o ser humano pode ser bom ou mau. 
 
Vamos analisar um pouco essa questão que será importante para o problema da esperança. Então, o que podemos esperar? O problema permanece, nós não sabemos. .Podemos temer muitas regressões. Podemos temer até mesmo que duas barbáries se unam. A velha barbárie que acontece ao longo dos séculos e que se traduziu pelo desprezo, pelo orgulho, pelo massacre, pela dominação. E uma nova barbárie que é fria, gelada, técnica, calculista. Elas estão associadas hoje em dia. Estamos desarmados? Podemos ter esperança?
 
E, então, chegamos às questões: o que posso fazer? O que devo fazer? Evidentemente, essas questões, não podemos responder agora, porque o filósofo Kant dizia que para responder essas questões, era preciso passar pela antropologia. Quer dizer, saber o que é o ser humano, quais são as suas capacidades, as suas possibilidades. É justamente aqui que iremos descobrir  aquilo que eu dizia sobre a globalização,  que temos um conhecimento múltiplo, mas não sabemos o que são. Podemos dizer isso ainda mais sobre o humano, como dizia o filósofo que se chamava Heidegger: nunca tivemos tanto conhecimento sobre o homem, nunca soubemos tão pouco sobre o que ele é. De resto, em nenhum lugar se ensina o que é o ser humano.  Aqui também vemos que o homem não é somente uma definição de um animal  dotado de razão, homo sapiens, mas um animal capaz de delírios e de loucuras. E que a mistura de razão e de loucura foi responsável por todas destruições e por todas as criações na história das civilizações e da humanidade.
 
Sabemos que o homem não é apenas um técnico que faz ferramentas. No ser humano, desde a pré-história, há a capacidade de acreditar nos mitos, acreditar na vida após a morte, acreditar em religiões. Esses dois aspectos não podem ser  dissociados. Já se definiu o ser humano como um homo economicus, isto é, um ser que é movido pelos seus interesses pessoais, mas sabemos também que somos capazes de gastar, de brincar com a vida, de desperdiçá-la. Então, é algo muito complexo. E volto àquela questão. Será que somos bons? Será que somos maus? É preciso considerar que em cada um de nós há dois princípios. Dois princípios de vida e de ação. O primeiro é o princípio egocêntrico. Quer dizer, sou o centro do meu mundo. Sou o centro do mundo. E como sou eu o centro do mundo, vou pensar em mim primeiro. Tal princípio egocêntrico é útil, evidentemente, para se defender, para se alimentar, para se proteger contra agressões. Mas é evidente que isso nos aprisiona dentro do egoísmo, o mais monstruoso Porém temos um segundo princípio. Esse segundo princípio manifesta-se desde o nascimento. O bebê espera o sorriso da mãe para poder sorrir. Ele espera ser embalado, espera ser acariciado. Não é um princípio do "eu", mas do "nós". O princípio da comunidade. O princípio do altruísmo. E tal princípio vai se desenvolver no seio familiar, que será a primeira comunidade. Vai se desenvolver no meio escolar quando se vai à escola, no ambiente do trabalho, no seio da nação, é o “nós” da pátria. E eu diria mesmo que esse "nós", que somos cada vez mais numerosos, considerando que esse "nós"... Não é somente um “nós” da nossa nação, da nossa família ou do nosso continente. É o "nós" do conjunto da espécie humana que vive hoje os mesmos problemas fundamentais. Nós somos seres humanos e esse "nós" deve nos unir à coletividade humana. 
 
Vivemos em uma época, em uma civilização, uma civilização que se formou no ocidente, na Europa Ocidental que se espalhou pelo mundo, que ainda não destruiu
todas as outras civilizações, mas que superdesenvolveu o egocentrismo e também o egoísmo. Ela também desenvolveu aspectos positivos do individualismo, como o senso da autonomia. Mas também desenvolveu aspectos negativos, como o egoísmo e esse fechamento em si. Então vemos muito bem que o verdadeiro problema de hoje em dia é: será que podemos esperar que o que há de  melhor nos seres humanos possa ser favorecido, possa ser ampliado, possa ser capaz de nos dar esperança? 
 
Vamos ver se consigo responder essa questão no final da minha fala, então vou deixá-los esperando por isso. Mas quando o filósofo Kant dizia que era preciso passar pela antropologia, na época, a antropologia era, digamos, uma mistura de filosofias e ciências que estudava o ser humano. Mas hoje em dia a antropologia é o fato de que toda a humanidade vive em uma comunidade do destino  na Terra, com o processo de globalização. Essa globalização que é, ao mesmo tempo, uma ocidentalização e um desenvolvimento, essas três faces de um mesmo fenômeno. 
 
A globalização criou, de certo modo, esse destino em comum. Ou seja, todos os   humanos são confrontados pelos mesmos problemas fundamentais. São os problemas de uma economia não regulados e em crise, aqueles de uma biosfera ameaçada de degradação ou que sofreu uma degradação maior, e que, infelizmente, a Conferência do Rio não tomou nenhuma decisão capaz de deter esse processo. Temos os mesmos problemas com o desenvolvimento de armas de destruição em massa que se multiplicam em novos países. Temos os mesmos problemas fundamentais com a  dominação de uma especulação financeira, que fez os Estados estremecerem e que submete os povos, como vimos na Grécia e em outros lugares. 
 
Vivemos em uma época na qual as múltiplas angústias e os medos criam esse fechamento, um fechamento sobre o passado. O retorno a um antigo fanatismo racista que, principalmente, na Europa e em outros países do mundo desenvolve-se cada vez mais. Então temos todos  esses problemas de vida e de morte em comum. Vamos analisar um pouco esse processo que, evidentemente... Podemos chamar... que eu chamei de "A Era Planetária", que começou com a conquista das Américas, com o Vasco da Gama, e que assumiu a forma da globalização de hoje em dia. Esse processo, de fato, é ambivalente. Disse há pouco que, por exemplo, ele desenvolve um pouco por todo o lugar o individualismo com as suas qualidades de autonomia e com os seus defeitos, com o fechamento egoísta. De fato, vemos em várias regiões do mundo que a juventude alcançou a autonomia. Pode-se casar-se livremente, sem precisar obedecer a vontade da família, pode usufruir do tempo livre de forma independente. Então vemos todas as qualidades. Vemos  também que a globalização criou zonas de prosperidade e a formação de novas classes médias na maior parte de países que chamamos de emergentes, como o Brasil. Podemos pensar que são aspectos positivos, mas é preciso ver os outros aspectos também. Os outros aspectos da globalização é que se por um lado ela  permitiu que uma parte da população pobre conseguisse  ascender à classe média, ela fez também com que a outra parte da população pobre, que tinha certa autonomia, como por exemplo um camponês, dono de sua  pequena terra, perdesse essa autonomia quando eles foram expulsos de suas terras. Foram obrigados a ir para as cidade e agrupam-se nas favelas que atualmente comportam, em todo o planeta,  um bilhão de habitantes. Um bilhão de seres humanos, dos sete bilhões de pessoas, vivem nessas condições, beirando a miséria. É preciso dizer também que o progresso da autonomia foi  proporcional à destruição das solidariedades tradicionais. A solidariedade das grandes famílias, com os tios e com os primos, entre os ascendentes e os descendentes. A solidariedade entre os vizinhos, a solidariedade de trabalho. E, de certa maneira, esse é um dos aspectos mais negativos desse processo de globalização e ele mesmo está amparado pelo desenvolvimento. 
 
Podemos mesmo dizer  que essa noção de desenvolvimento é uma noção padronizada. Nós a aplicamos da mesma forma em países com culturas diferentes, em países da América Latina, em países da África subsaariana, em países das ilhas da Oceania, ignorando que cada país, cada nação tem a sua própria cultura, não somente as suas tradições, mas também as suas artes de viver, as suas sabedorias, os seus conhecimentos e também as suas ilusões e os seus erros. Mas isso também é verdadeiro para a cultura europeia, que também tem as suas qualidades, assim como as suas carências, entre as quais a destruição da solidariedade e o desenvolvimento do egocentrismo. Temos, portanto, esse fenômeno extremamente ambivalente. Aplicamos o mesmo esquema e tendemos a ignorar os valores e as qualidades de cada civilização. A sua medicina, os seus conhecimentos. Pensemos nos pequenos povos indígenas da Amazônia que possuem conhecimentos extremamente ricos sobre o mundo vegetal e o mundo animal da floresta na qual eles vivem. Eles têm artes médicas por meio dos xamãs.  Então podemos dizer que o verdadeiro problema é que em vez desse processo irreversível de destruição da diversidade de culturas,  desse  processo de homogeneização, seria necessário, pelo contrário, uma política de simbiose que oferecesse o melhor do mundo ocidental e que isso se unisse ao melhor das diversas civilizações, nas quais a globalização atua, seja na Ásia, na África ou na América do Sul. Eis um processo ambivalente, porém há uma ambivalência fundamental nesse processo de globalização. Ele é, ao mesmo tempo, o pior e o melhor do que pode acontecer com a humanidade. Por que ele é o pior? Porque a nave espacial que é o nosso planeta Terra é carregada pelo desenvolvimento descontrolado da ciência, da técnica, da economia, do lucro, do fanatismo. E esse desenvolvimento descontrolado que destrói a biosfera que nos ameaça de morte, vai em direção à catástrofe se não o  modificarmos. 
 
De fato, estamos indo em direção ao abismo. Mas, ao mesmo tempo, foi a melhor coisa que aconteceu com a humanidade. Por quê? Porque, pela primeira vez em toda a história da humanidade, os seres de todos os continentes têm o que eu chamo de uma comunidade de destino, eles têm essa unidade fundamental e podem aspirar e esperar que a partir dessa comunidade, a Terra se torne uma pátria. Não uma pátria que destrói as outras pátrias, mas uma pátria que englobe, sempre as respeitando, as diferentes pátrias. Porque a questão essencial para entender o fenômeno humano, é que é preciso entender, ao mesmo tempo, sua unidade e sua diversidade. Sua unidade porque somos todos idênticos, semelhantes em relação à anatomia, à fisiologia, ao cérebro, à afeição. Qualquer que seja a nossa cultura, todos somos capazes de rir, de sorrir, de chorar, de amar, de odiar. Existe, portanto, essa unidade fundamental do ser humano. Mas essa unidade expressa-se sempre na diversidade. Somos todos parecidos, mas ninguém é  igual ao outro. Até mesmo gêmeos  homozigotos que aparentemente são idênticos, percebemos que são diferentes entre eles. Não é só uma questão de sermos diferentes, mas o que também é diferente na humanidade em relação ao mundo animal, é a cultura, quer dizer, a linguagem, a música, as artes, as técnicas.
 
A cultura não existe, ou melhor dizendo, ela só existe através das culturas. A linguagem humana tem, em todo lugar, a mesma estrutura, mas as línguas são todas diferentes umas das outras. Não conhecemos a música por si só, conhecemos a música por meio das diferentes músicas. E se quisermos uma Terra Pátria, se quisermos o desenvolvimento da humanidade, precisamos respeitar, precisamos reconhecer essa unidade que nos une e, ao mesmo tempo,  essa diversidade que buscamos. É esse o caminho que devemos seguir e que nos obriga, de fato, a não seguir o caminho que estivemos percorrendo até agora. Então, a questão  “como mudar de caminho?” parece impossível. Mas vamos refletir um pouco sobre o passado da humanidade.  
Ela mudou de caminho várias vezes. Em primeiro lugar, na Terra, havia sociedades arcaicas, pequenas sociedades de caçadores e coletores e que ainda existem algumas na Amazônia. Pequenas sociedades sem  Estado, sem agricultura, sem exército, sem classes sociais. Isso se espalha por todos os continentes. Mas em alguns pontos do globo, isto é, na Ásia Menor, na China, na Índia, na bacia do rio Indo, no México dos dias de hoje e no Peru, isto é, nos Andes surgiram civilizações com agricultura, cidades, Estado, religião, filosofia, classes  sociais, escravidão, assim por diante. E com guerras, infelizmente. A história é inseparável da história das guerras e ainda estamos nessa história. É por isso que acredito que é preciso ultrapassar essa história. Não podemos acreditar, como diz o filósofo Fukuyama, que estamos no fim da história e que a humanidade encontrou, enfim, soluções para os seus problemas com: um, a democracia parlamentar; dois, com a economia liberal do mercado. Não. Devemos pensar que precisamos chegar no fim da história porque essa história, ao multiplicar as guerras, as técnicas de morte, os canhões... A Primeira Guerra Mundial fez milhões de mortos, a Segunda, ainda mais, e produziu a arma nuclear, a grande ameaça contra a humanidade. Podemos pensar, portanto, que a história sinônimo de guerras deve cessar. 
 
Ao contrário do pensamento do Fukuyama, eu diria que a humanidade ainda não encontrou as soluções fundamentais. A solução não é somente a democracia parlamentar nem a economia liberal, a solução seria uma sociedade de um tipo novo, que seria uma sociedade em escala mundial e que teria estruturas totalmente diferentes daquelas das sociedades que conhecemos atualmente. Mas eu poderia dar outros exemplos. 
 
Na história das ideias e da religião é extraordinário pensar que três grandes religiões nasceram da mensagem de um indivíduo isolado, seja o budismo, com o  príncipe Shakyamuni  que teve a revelação do sofrimento da vida e da mensagem de compaixão que é preciso levar aos seres vivos, que é o modo de sair desse ciclo de sofrimento. A mensagem do Buda foi rejeitada na Índia. Buda quer dizer "O Desperto". A sua mensagem foi propagada pelo resto da Ásia, na China e no Japão, e é uma das grandes religiões do mundo. A mensagem de Jesus de Nazaré foi uma mensagem desviante. Ele era chefe de um pequeno grupo. E, como vocês sabem, foi  crucificado. E parecia que nenhum contemporâneo do Império Romano percebeu a existência de Jesus, de sua vida e de seu suplício. Foi preciso que Paulo, perseguidor dos cristãos, se convertesse para nascer uma religião que, a partir de alguns adeptos, virou uma grande religião em todo o Império Romano e hoje em todo o mundo. Pensemos em Maomé, o profeta do Islamismo, ele foi obrigado a sair de Meca, a sua cidade, foi expulso de lá e se refugiou em Medina. E, a partir da sua mensagem, muito rapidamente, nasceu uma religião colossal que se espalhou pela Ásia, África e Europa. 
 
Podemos ver, portanto, que o começo de grandes mudanças é sempre modesto. Mas se pensarem, por exemplo, no pensamento revolucionário europeu que nasceu no século XIX, com o socialismo, o comunismo e o anarquismo, seus  pensadores, seja Karl Marx, Proudhon, Kropotkine, Bakounine, Fourier... Todos esses pensadores eram completamente isolados. Eles não eram reconhecidos nem pelo mundo intelectual nem pelo mundo universitário.  Eles eram solitários. E, no entanto, bastaram alguns anos para que nascesse na Alemanha o primeiro partido socialista, o Partido   Social-Democrata, e para que o socialismo, depois o comunismo e o anarquismo se espalhassem pelo século XX para o bem e, por vezes, para o mal. Portanto, vejam que todos os começos podem ser modestos, incluindo o início da ciência moderna, que, no século XVII, era sobretudo a obra de algumas mentes, como Descartes, Bacon, Galileu e assim por diante. Essa é uma razão para não se desesperar, pois é verdade que se seguirmos o caminho atual da história do planeta é provável que caminhemos para  uma catástrofe, mas o provável nunca é uma certeza e o pior também não.  Por quê? Porque na história da humanidade frequentemente o improvável aconteceu como um  elemento de salvação. Vou dar um exemplo, e eu poderia dar vários outros, mas vou dar um exemplo histórico que talvez seja o mais belo. É o fato de que cinco séculos antes de nossa era, cinco séculos antes, havia um grande Império Persa que já tinha englobado a maior parte das cidades gregas da Ásia Menor e que quis tomar a pequena cidade de Atenas. Esse império lançou o seu exército e encontrou o pequeno exército ateniense com os seus aliados espartanos. De forma improvável, os persas tiveram que recuar na Batalha de Maratona. Mas os persas voltaram uma segunda vez. E, nessa segunda vez, conseguiram tomar Atenas. Eles a queimaram, destruíram e pareciam ter ganho a guerra, mas a frota grega, que tinha se refugiado no Golfo de Salamina, lançou uma armadilha para a grande frota persa e pode destruir os navios persas um atrás do outro. Atenas foi salva duas vezes, de forma improvável. E o resultado desse salvamento foi que cinquenta anos mais tarde nasceram a democracia e a filosofia.
 
Então, é isso. Não é porque não vemos nenhuma mudança hoje que ela não existirá.
Quando acreditamos que o presente será eterno, nós nos enganamos. Acreditamos que somos contra a utopia, que rejeitamos a utopia, mas como dizia o meu mestre Groethuysen: "Ser realista, que utopia!" Porque esse realista que acredita que o presente não mudará, não está consciente  das forças subterrâneas que trabalham, sem parar, nos subsolos da sociedade. Temos, portanto, atualmente o problema dessa realidade que parece ser tão sólida. Começamos a ver que ele abalou um pouco todos os lugares com essas crises que surgem. Então podemos pensar que o que parece ser altamente improvável pode acontecer. E por que isso pode acontecer? Pode acontecer em função do seguinte princípio: quando um sistema  não é capaz de resolver seus problemas vitais e fundamentais, o que acontece? Acontece que ou esse sistema se desintegra em um caos total, ou esse sistema regride e torna-se mais bárbaro do que era, ou esse sistema é capaz de provocar nele mesmo uma força criadora que o metamorfoseie, isto é, crie um metassistema que seja capaz de resolver os problemas fundamentais. 

 
Atualmente, esse sistema planetário no qual vivemos é incapaz, e eu repito, de resolver seus problemas fundamentais, de vida e de morte, seja nuclear, ecológico, econômico ou de guerra. Que problema é esse? Ele está condenado a se desintegrar ou a regredir e tornar-se ainda mais bárbaro, ou ainda, a criar esse metassistema. O problema está definitivamente nesse ponto. E qual é o fundamento dessa ideia? É a capacidade criadora que sempre se manifestou na espécie humana. Ora o  problema da criatividade humana é um problema ainda mais interessante se considerarmos que na maior parte das sociedades estáveis  desde que os jovens se integram na sociedade, com a educação, começam a ser domesticados e acabam totalmente domesticados. É a domesticação sociológica que adormece as capacidades criativas e só se manifestam nos marginais como artistas, poetas, músicos, artesãos, cientistas e assim por diante. Mas quando uma sociedade está em crise, ou ela pode regredir ou ela pode progredir por meio da criatividade. Aqui também, se um sistema está diante de desafios fundamentais, tal sistema pode encontrar forças criativas para a metamorfose. E a metamorfose não é somente um fenômeno que se observa nos insetos, nas libélulas, nas borboletas e assim por diante. É um fenômeno que é próprio da história da humanidade. Pensemos que a Europa da Idade Média, a Europa feudal, metamorfoseou-se ao longo dos séculos para se tornar uma Europa moderna.  E o mundo moderno também pode, ou melhor, deve se metamorfosear daqui para frente. Mas isso não vai acontecer com um passe de mágica. É preciso começar mudando o caminho, é preciso encontrar um novo caminho. E como encontrar esse novo caminho? Em primeiro lugar, é preciso ter uma visão mais rica, mais complexa dos processos atuais e ver qual é a sua parte negativa e a sua parte positiva e, nesse momento, ter um duplo princípio. Globalizar e desglobalizar. 
 
Hoje em dia há um certo número de pensadores que insistem na necessidade de desglobalizar, ou seja, parar esse curso de crescimento desenfreado resultando,  então, em um decrescimento. Globalizar e desglobalizar, o que isso significa? Significa continuar o que a globalização tem de positivo, como as trocas culturais, vantajosas para uns e outros, mas lutar contra todas as forças de desigualdade, de exploração. Pensemos, por exemplo, nos países africanos nos quais as terras são compradas  pelas empresas, pelas multinacionais, sejam elas do ocidente, da China, da Coréia ou da Arábia Saudita, para ter uma agricultura industrializada de exportação para esses  países, o que reduz  esse povo à fome.  É evidente que essas nações devem proteger a sua agricultura de subsistência. Desglobalizar é se proteger contra as forças negativas da globalização, precisando dessa proteção que pode ser provisória. É salvar os territórios vivos, é salvar as economias que correm risco de morrer. E, ao mesmo  tempo, é continuar progredindo com as trocas fecundas  entre as nações. É esse o fenômeno de crescimento e de decrescimento.
 
Atualmente há essas economias de desperdício, de futilidades, de ilusões que devem diminuir. Em contrapartida, o que precisa crescer é uma economia verde, ou seja, uma economia com energia limpa, uma economia que mude completamente as condições da nossa economia. Voltarei a falar sobre isso em alguns instantes. Portanto, é preciso ter crescimento e decrescimento. Eu diria que é necessário desenvolver e envolver. Desenvolver significa continuar o processo de desenvolvimento da democracia, da liberdade, das autonomias. Mas, ao mesmo tempo, envolver significa salvaguardar tudo que permite envolver as pessoas num tecido comum, cultural, um tecido de solidariedade, pois é evidente que um dos grandes problemas da humanidade hoje em dia é a solidariedade, não somente no nível local ou no nível nacional, mas no nível do planeta. Um dos grandes problemas discutidos na conferência  Rio+20 não foi somente aquele de caráter muito diferente dos mais de 150 países que estavam ali, cada um com seus problemas particulares. Foi também a falta de uma consciência de solidariedade forte o suficiente para empurrar os dirigentes em busca de soluções para os problemas mortais, como bem sabemos. Portanto, temos aqui um   novo caminho e também uma nova economia. Diria que uma nova economia é o que chamamos de economia verde, não somente aquela com energia limpa, mas que traga também uma mudança radical na agricultura. Quer dizer, a substituição da agricultura e da criação industrializadas que destroem e matam os solos, que abusam de produtos químicos e de pesticidas, que padronizam a alimentação, uma pecuária intensiva que destrói os lençóis freáticos, tudo isso deve ser substituído por um movimento pela promoção da  agricultura biológica, da agricultura familiar, da pecuária familiar. Uma economia de despoluição das cidades, de reumanização das cidades, uma economia social e solidária, há toda uma nova economia a ser desenvolvida. Ela sim deve crescer. Enquanto deve decrescer uma economia de morte, uma economia de grandes recursos, ou que vão para a fabricação de armamento ou que vão para as grandes máfias que se aproveitam da  proibição das drogas para enriquecer. Se todas as drogas fossem descriminalizadas, isto é, fossem liberadas, é certo que o poder econômico dessas máfias desmoronaria. Foi o que aconteceu nos Estados Unidos quando houve a proibição. Foi graças a proibição do álcool  que as máfias norte-americanas se desenvolveram com a sua criminalidade. Quando o álcool foi liberado, a máfia não lucrava mais com isso, mas é evidente que lucrava com a droga, com a prostituição. E hoje poderíamos fazer o mesmo com a droga também. Poderíamos encontrar recursos extraordinários para o planeta se pensássemos em todo esse desperdício enorme de dinheiro e de energia da humanidade. Portanto,  uma nova economia. E, evidentemente, é preciso...
 
O grande problema no qual nós, os serem humanos falhamos foi em criar um mundo  melhor, uma sociedade melhor. No entanto, como sabem, desde sempre, com  sociedades, com classes, obrigações, uma vida sujeita a uma organização, à repressão, um sonho que sempre esteve presente na humanidade era o de ter uma sociedade harmoniosa, uma sociedade justa. Como sabem, na antiguidade romana, houve a revolta dos escravos, a revolta de Espártaco. E qual era o objetivo de Espártaco?  Uma sociedade de liberdade. 
 
E o sonho da harmonia continuou. Projetamos esse sonho da harmonia para depois da morte, no paraíso, como temos no islamismo e no cristianismo. Mas esse sonho da harmonia retornou à Terra quando, a partir do século XIX, pensamos em fazer uma sociedade melhor com o socialismo, com o comunismo, com o libertarismo, pois o libertarismo quer o desenvolvimento do indivíduo, o socialismo quer que a sociedade seja melhor e o comunismo quer que o mundo seja comum, comunitário, fraternal. Essas três fontes devem talvez se unir hoje, e devem encontrar novas encarnações, as quais poderiam ser de uma nova consciência planetária, de um novo humanismo planetário que, evidentemente, é necessário.
 
E então vamos a esse problema. É preciso primeiro mudar as estruturas sociais e econômicas para mudar a vida dos seres humanos? Ou precisamos mudar as nossas  vidas para podermos mudar as estruturas sociais e econômicas? Precisamos começar  por nós ou pela sociedade? A experiência mostra que um sem o outro é insuficiente. Houve a Revolução Soviética na União Soviética de 1917 que queria destruir a exploração do homem pelo homem, que queria destruir e destruiu de fato a classe capitalista, a burguesia, que pensou em suprimir a religião. Ela não só não conseguiu estabelecer uma verdadeira sociedade fraternal uma vez que criou uma ditadura totalitária. Como, depois de 70 anos, ela desmoronou, implodiu e provocou o retorno de um capitalismo pior do que aquele que ela  havia destruído, uma religião mais forte do  que aquela que acreditava ter destruído. Portanto, foi um fracasso. 
 
Não podemos transformar apenas a estrutura social e econômica, é preciso transformar as nossas vidas, os indivíduos. Conheci muitas experiências de comunidades, principalmente   na Califórnia nos anos 1960 e 1970, mas lá também depois de um certo tempo por causa, sem dúvida, de um ambiente não favorável e porque as pessoas que vivendo em comunidade não conseguiam chegar a uma compreensão mútua para conseguirem continuar vivendo juntas, essas comunidades foram destruídas. Então, o verdadeiro problema é que todas as reformas precisam começar ao mesmo tempo. Todas as reformas precisam se desenvolver simultaneamente. Reforma de vida, da sociedade, da justiça, do consumo, da agricultura, das empresas e assim por diante. Tudo deve mudar e tudo vai começar como os pequenos riachos começam a se desenvolver para depois formar rios e, então, tornar-se um grande rio. É assim, ao meu ver, que se deve criar um novo caminho. E se esse novo caminho se desenvolver, então o caminho que seguimos vai esfarelar e se desfazer e poderemos esperar uma metamorfose. É isso que podemos dizer. 
 
Agora volto para as primeiras questões. Volto para as primeiras questões. 
 
O que posso saber? Bom, primeiramente, agora sei que estou rodeado por mistérios e incertezas. Sei que o conhecimento só pode ser complexo para tratar dos problemas fundamentais e globais, que são os nossos. Sei que o humano é de uma  complexidade particularmente cheia de contradições. E que há o melhor e o pior no ser humano. Sei que se a humanidade provavelmente corre em direção a sua perda, o improvável pode acontecer e um movimento que a faça mudar de  caminho pode acontecer. 
 
Em que posso acreditar? Posso acreditar nas melhores possibilidades humanas que são o altruísmo, a bondade, a amizade e o amor. Posso acreditar que é preciso lutar
contra a crueldade do mundo e contra as barbáries humanas. Posso acreditar que o pior não está garantido. E aqui posso citar uma frase do velho filósofo grego, do século XI antes da nossa era, Heráclito, que diz: "Se você não procurar o inesperado, não o irá encontrar”.  
 
O que posso esperar? Posso esperar, como já lhes disse, o improvável. Posso esperar a bondade, a amizade e o amor. Posso esperar o progresso da consciência humana. Posso esperar que as forças criativas sejam capazes de criar um novo mundo, a metamorfose. Posso esperar que poderemos evoluir, mesmo sendo improvável, para a Terra Pátria. 
 
O que posso fazer? Bom, posso trabalhar para reconstruir o conhecimento e o  pensamento. Posso agir em conformidade com as minhas aspirações e as minhas esperanças. Posso agir pela maior causa que jamais encontrei: a humanidade. Porque essa causa é absolutamente nova. Até hoje, as causas mais justas tinham uma sombra. Por exemplo, eu mesmo participei de uma causa que foi muito justa. Quando a França foi ocupada pela Alemanha nazista, participei da Resistência francesa. E essa foi uma causa justa. Muitos jovens quando me encontram, dizem: "O senhor teve sorte porque na época havia uma causa justa pela qual o senhor arriscava a vida. Mas não temos nada hoje em dia. Não podemos acreditar em nada". Eu respondo: como sabem, primeiramente, a nossa causa era justa, mas havia sombras. De fato lutamos para libertar a nossa pátria, mas não pensávamos que uma vez essa pátria liberta, ela iria retomar as suas colônias. Ou que no próprio dia do aniversário da vitória contra o nazismo, o exército francês massacraria os argelinos em Sétif. E que, depois, haveria uma guerra cruel para impedir que a Argélia se tornasse independente. E que, no fundo, a França voltasse a ser colonialista, depois daquela vitória que, ao contrário, deveria torná-la sensível ao sofrimento dos países oprimidos por ela.
 
É verdade que tive esperanças na União Soviética. Pois, efetivamente, ela fez a resistência mais forte ao nazismo. Mas como disse o escritor Vassili Grossman que escreveu um livro magnífico chamado "Vida e Destino", um romance sobre  Stalingrado, ele disse: "Stalingrado foi a maior vitória e a maior derrota da humanidade." Foi a grande vitória porque foi o primeiro golpe mortal contra o nazismo. E foi a grande derrota porque ela consolidou, ao longo dos anos, o despotismo de Stalin. Como podem ver, até mesmo nessa época havia uma boa causa, mas havia também  sombras. Mas hoje não há mais sombras. A causa de toda a humanidade não tem nenhuma sombra. Não se trata de privilegiar um povo em detrimento de outro. É preciso agir em função da solidariedade planetária. É por isso que digo para não se  desencantarem, para não se sentirem desiludidos, vocês têm, diante de si, a mais linda causa, a mais justa e a mais salvadora de todas. É nesse sentido que é preciso  avançar!
 
Obrigado.
 
Perguntas do público – coordenação de Danilo Santos de Miranda
Muito bem. Maravilha ouvir Edgar Morin com esse entusiasmo, com essa vitalidade. Um homem que, daqui a alguns dias, no dia 8 de julho completa 91 anos. 

Palmas. 

O seu aniversário!
Muito bem. Antes de iniciarmos aqui algumas questões, de antemão, pelo movimento que estou vendo, não vai ser possível responder a todas. Estou vendo que várias pessoas já entregaram e enfim já temos algumas aqui. Antes disso, queria ressaltar a presença da esposa de Edgar Morin, que está aqui conosco, na frente, Sabah Abouessalam. Aqui na primeira fila. 

Palmas

Muito bem. Diante de tantas questões colocadas e diante de tantas provocações e questões, vamos tentar dar conta através de algumas perguntas que o público está fazendo e, naturalmente, vou dar a liberdade para o Morin respondê-las, claro, dentro de um tempo razoavelmente rápido e curto, porque são muitas as perguntas e outras que estão chegando. Estou vendo várias pessoas entregando. 

Primeira pergunta. É feita por um grupo de pessoas: 

Na sua opinião, a academia (a universidade) será capaz de superar o seu histórico disciplinar e agregar diferentes saberes, considerando que ainda hoje, até mesmo universidades com propostas inovadoras possuem dificuldades na implantação e execução de projetos de inter e transdisciplinariedades? Quais as barreiras para que estes problemas epistemológicos seja resolvido? 

Assinado por 3 pessoas: Mariana Moreira, Debora Tomazesqui e Isabella Vallin. 

- Entendeu?
 
Morin: Obrigado pela pergunta. Quero começar dando um exemplo de uma mudança improvável. Como, na Europa, passou-se da universidade medieval, que era fundamentalmente religiosa, à universidade moderna, aquela que encontramos em todos os lugares hoje em dia. Tal revolução foi feita em um país, um pequeno país, a Prússia, com um rei, um déspota esclarecido, e neste país, Humboldt, um pensador que aliás conhecia  em a América do Sul, teve a ideia de introduzir as ciências modernas, as ciências que se desenvolviam na época, no fim do século XVIII e início do século XIX, introduzi-las nas universidades em forma de departamentos científicos. Ao fazer isso, ele secularizou a universidade. Essa universidade foi criada em Berlim no começo do século XIX, cujo modelo foi levado em seguida para a Bélgica, para a Universidade Livre de Bruxelas e se tornou europeu.  É a universidade mundial. Quero dizer que bastaria que em alguns pontos do globo, e eu gostaria que fosse no Brasil, fosse criada uma universidade de um novo tipo onde seriam introduzidos justamente os problemas que só podem ser tratados  transdisciplinarmente para que isso se tornasse exemplar.
 
Mas é claro que as resistências são enormes pois elas estão presentes tanto na mente
quanto nas instituições. Dupla  resistência. Porque elas estão na mente, porque é muito difícil para um professor, que é soberano na sua especialidade, acreditar que perderá essa soberania para entrar em um sistema novo. É como uma nação que se vê como soberana e tem grande dificuldade de ser vista de outra forma, como é o caso da Europa. No entanto, quando as mentes começam a amadurecer, quando se cria uma minoria, tanto entre os cidadãos, como entre os educadores e na vontade dos estudantes, então pode surgir tal reforma. Acredito que hoje a resistência à reforma vital e necessária está se enfraquecendo, mas mesmo assim ainda é forte. É uma das coisas nas quais tenho esperança. 
 
Danilo: muito bom. Dando sequência às questões: 
Podemos supor que o universo virtual nos forneça o caminho para uma elevação do conhecimento e de sociabilidade, que indique a mudança improvável sobre a qual você falou? 
 
Morin:  Sim, é claro que algo novo surgiu no planeta com, evidentemente, a internet e que constitui uma espécie de sistema neurocerebral artificial que está presente em todos os lugares. Mas aí também encontramos os mesmos problemas  que aquele da língua e da linguagem que permite dizer a verdade ou a mentira. Vemos que essa força que é a internet desenvolve tanto o melhor quanto o pior. O que é o melhor? O melhor, como vimos, é como esse sistema de trocas por meio do Twitter ou do celular foi  fundamental nas revoltas juvenis e estudantis, especialmente na juventude da Primavera Árabe.
 
Vemos também como um matemático talentoso como Assange pôde decifrar segredos que estão escondidos no Estado-maior, nos bancos ou nos cofres do governo. Vimos como o site WikiLeaks revelou segredos que pareciam estar fora de alcance. Portanto, há possibilidades efetivamente de liberdade e de ação. Vemos que as minorias inteligentes puderam intervir, assim como uma juventude que quer mudar s coisas. Mas sabemos também que os Estados podem controlar hoje os fatos e os gestos de uma pessoa. Podem estar presentes nos apartamentos, nas ruas e assim por diante. Ou seja, o poder de emancipação e o poder de escravidão crescem ao mesmo tempo. É essa toda a complexidade das coisas humanas. 
 
Por outro lado, é evidente que os  conhecimentos que encontramos na internet podem ser de grande utilidade para a educação. Claro que, na minha opinião, isso não eliminará os professores, pois é o contato direto, é a paixão de um professor que pode instigar algo profundo nos alunos. O contato humano é o contato afetivo que permite transmitir, por meio da emoção, um conhecimento e uma vontade de conhecimento. Mas todos os  conhecimentos da internet podem contribuir efetivamente para a educação. Acontece o mesmo nos relacionamentos. É certo que... Vocês têm hoje em dia... Tem uma  pesquisadora brasileira que fez uma tese cujo título é "Amor.com". Ela diz que... Na verdade, isso também é ambivalente. De um lado temos o filósofo Zygmunt Bauman que disse estar revoltado porque um jovem disse a ele que tinha duzentos amigos graças ao Facebook e Bauman disse que, aos 85 anos de vida, só tinha três ou quatro. Então existem essas pseudoamizades em todas essas redes sociais. Mas é verdade, falando dessa tese "Amor.com", que dois seres que se amam podem se comunicar imediatamente mesmo um estando na Austrália e o outro no Brasil. Há uma facilitação para as relações de amizade e de amor. Então, como podem ver, é uma grande ambivalência. Por um outro lado, vocês também têm um universo virtual.  Cada um pode fazer o seu avatar em um mundo virtual. "Second Life", certo?
 
É possível ter sensações muito concretas no nível do imaginário. Isso é algo novo. É isso que permite a tecnologia da informática. Mas, na verdade, se de fato há algo novo,  isso se liga à algo muito antigo, o poder do imaginário dos seres humanos. É o poder dos sonhos, das fantasias e dos mitos. Mesmo em nossa realidade cotidiana, sem precisar desse universo virtual vivemos de uma forma semivirtual, sempre estamos em uma certa virtualidade. Então aqui também acredito que é preciso tentar desenvolver o melhor da internet e desse mundo virtual, mas tentar lutar contra o pior e, sobretudo, como sabem em relação à informação, é verdade que esse mundo permite uma informação que em países onde há ditadura ou censura, é proibida. Há também muitas informações falsas impossíveis de controlar e que circulam nesse universo. Portanto, isso nos obriga a ter uma consciência, vigilância e inteligência bem maiores para poder fazer com que esse universo nos seja útil. 
 
Danilo: Muito bom, muito legal. 
Uma questão relativa à arte: A arte pode fornecer modelos de pensamento e prática para novas formas de encaminhamento dos problemas planetários? Ela pode atuar no espaço em que a filosofia e a teoria parecem ter fracassado? 
 
Morin: Sim, acredito que... Primeiramente, temos as artes literárias, temos o romance e a poesia. O romance tem uma qualidade que a ciência psicológica não tem. Ou seja, o romance pode nos fazer viver na subjetividade dos personagens desse romance. Entramos em um universo onde os seres estão vivos e vemos as suas relações, os seus amores, as suas paixões e até mesmo seus contextos sociais e históricos. Temos romances como "Guerra e Paz" de Tolstói, romances de Dostoievski e de Proust, que são universos que nos ajudam a compreender melhor o ser humano, lá onde as ciências são limitadas. Penso que os romances nos dão o que há de melhor. E, sobretudo, quando consideramos os romances, o teatro, o cinema, vocês podem perceber que,  por exemplo, quando estão em uma sala de cinema, pelo  fenômeno de empatia que sentem pelos personagens, vocês se tornam melhores do que são normalmente, na vida quotidiana.  Por quê? Porque vocês são capazes de entender aquilo. Quando vocês veem, por exemplo, o Poderoso Chefão, interpretado por Marlon Brando, ou por, esqueci seu nome, enfim... Vemos um criminoso, mas esse criminoso é também pai, marido e amigo e, no entanto, tem aspectos odiosos. Ou seja, vocês percebem a complexidade dos seres humanos. Quando veem Carlitos, o pequeno vagabundo, que quando o veem pela rua, acabam se desviando dele, mas no cinema vocês sentem simpatia e um sentimento de amizade por ele. Vocês sentem  simpatia e amizade por pessoas que vocês desprezam na vida cotidiana. Graças ao cinema, graças ao teatro e graças ao romance vocês são melhores. Mas vocês se esquecem que são melhores  quando saem do cinema ou quando saem do teatro. Essas são as artes.  Por outro lado, estou convencido de que a poesia é uma maneira de aprender algo, a qualidade poética da vida. Porque a vida, na minha opinião, tem duas polaridades. A polaridade da prosa e a polaridade da poesia. A prosa são as coisas que fazemos por  obrigação, sem prazer, sem alegria, só para sobreviver. Mas a poesia é o que nos faz viver. É a plenitude, a amizade, o reencontro, a festa, a alegria. E, no fundo, o  verdadeiro problema é que cada um tem que entender que é preciso desenvolver a parte poética de sua vida. Não podemos nunca eliminar completamente a prosa, mas a tragédia é que muitos seres humanos são submissos e têm raros momentos de poesia em sua existência. Esse é um problema político e social. Acredito que podemos compreender isso graças à poesia. 
 
Também tem a música, a pintura e essas artes e acredito que as grandes obras nos dão também uma consciência mais rica. Pensemos, por exemplo, na Capela Sistina em Roma no Vaticano. Na Capela Sistina, temos um afresco no qual vemos o despertar de Adão. Nesse afresco vemos o pai eterno, Deus, que estende a mão para Adão, o qual, meio reclinado, também estende a sua mão. Adão está de olhos abertos, mas não vê nada ainda. Ele não existe ainda, não vive ainda. Vemos esse gesto por meio do qual Deus lhe dará o sopro de vida. O interessante é que no afresco de Michelangelo podemos ver pequenos anjos voando ao redor porque Deus está sobre uma nuvem. Mas podem ver que Deus, o criador, segura pelos ombros... Com licença. Ele segura pelos ombros uma criatura feminina que não é um anjo. O que isso quer dizer? Michelangelo quis dizer que não basta ter um princípio masculino, é preciso também um princípio feminino para a criação. Portanto, ele expressou essa filosofia nessa pintura. E o fez de maneira clandestina, pois evidentemente isso não seria tolerado pelos papas. Então se quiserem... 
 
Pensemos em um último exemplo, um exemplo musical. Beethoven, em seu último quarteto, quis expressar toda a filosofia e concepção da vida. Ele escreveu na partitura: "Muss es sein? Es muss sein!", o que quer dizer, será que aquilo é possível? Sim, é possível! Ou seja, será que esse mundo é aceitável? Será que é um grito de revolta? Será que podemos suportar isso? Ele disse que sim, que é preciso. Ou seja, para se revoltar é preciso aceitar. Mas se aceitamos, é preciso também se revoltar. Ele nos dá um duplo princípio da revolta e da aceitação. Podemos ver isso em todas as artes. As artes realizam, através das metáforas,  através das imagens, coisas que fazem parte da vida. Acredito que esse também é um grande problema. A sensibilidade estética é algo, assim como o sentido poético da vida... a sensibilidade é um tal enriquecimento para os seres humanos que todos nós devemos fazer de tudo para desenvolver essa cultura e essa sensibilidade. É isso que vocês fazem aqui. 
 
Danilo: Parfait, monsieur.  Olha... estamos gravando tudo. Ainda bem. 
Tem duas questões que vou juntar, que falam dessa questão da nacionalidade.  
Como depositar nossas esperanças no conceito abstrato de humanidade? Ao mesmo tempo em que assistimos a uma exacerbação das divisões, das nacionalidades, dos interesses de grupos.  E juntando aqui uma outra:  Em que pontos podemos comparar e diferenciar as noções tradicionais de pátria e a sua concepção de pátria universal? 
 
Morin: Muito bom. Algo que eu deveria ter dito para vocês nessa minha fala,  Uma coisa paradoxal. Nós estamos vendo a unificação técnico-econômica do mundo. Pode-se telefonar do Afeganistão para Moscou, de qualquer lugar para qualquer lugar. O mundo está unificado. E, no entanto, essa unificação em vez de criar uma unidade de compreensão entre os povos e nações, aumenta as divisões. É interessante porque a partir do momento em que essa unificação começou, isto é, após a implosão da União Soviética em 1990, houve fenômenos de fragmentação dentro da União Soviética, a guerra entre o Azerbaijão e a Armênia, nações ficaram hostis umas às outras. Vocês viram a Iugoslávia se partir em pedaços sob o poder do nacionalismo croata, sérvio e bósnio. Viram também um pouco no mundo inteiro, as forças de dissociações, de divisões, de fechamento, é verdade. É isso que é abstrato, isto é, a unificação técnico-econômica não foi a criação de uma unidade humana.
 
Acredito e repito que a unidade humana deve reconhecer as diversidades, mas as diversidades são complementares. Além disso, uma cultura forte é uma cultura aberta,
capaz de integrar o que vem do exterior. Ao passo que uma cultura fraca é uma  cultura que se desintegra quando se relaciona com o mundo exterior. Então é verdade que temos esse problema atualmente pelo fato de que a unificação técnico-econômica criou apenas a infraestrutura de uma sociedade que não existe mais em escala mundial, isto é, sociedades onde há laços afetivos e são laços da pátria. Não me refiro a uma pátria universal, mas sim a uma Terra-pátria. E por que esse modo de pátria é importante? Porque esse modo de pátria começa de forma paternal masculina e termina de forma feminina, maternal. É por isso que falamos "pátria-mãe". A autoridade paternal é uma autoridade justa, é o Estado, e a autoridade maternal é o amor. É o amor que as crianças têm pelas mães e as mães pelas crianças. Portanto, é certo que isso não é uma ideia abstrata da humanidade, é uma ideia concreta que hoje a humanidade é uma comunidade de destino e pode criar a sua própria pátria se ela desenvolver essa consciência planetária e se ela não desenvolver isso... É verdade que o humanismo permaneceu abstrato, enquanto então não havia comunicação entre as nações, mas hoje o humanismo é concreto. Além disso, quando vocês veem, por exemplo, o desastre de um tsunami no Japão ou, antes, na Indonésia, suscitou na França em outros países, como, tenho certeza,  no Brasil também, um sentimento de solidariedade quando vemos crianças sem a mãe chorarem e mães sem seus filhos chorarem. E tivemos muitas doações generosas que infelizmente foram desviadas. O mesmo aconteceu quando teve a catástrofe no Haiti. Portanto, esse sentimento de solidariedade, esse sentimento de fazer parte da comunidade humana, esse princípio do "nós" é despertado em todos quando acontece algum desastre porque entendemos o sofrimento de outro ser. Mas esse princípio fica adormecido no resto do tempo. Devemos  despertar esse tipo de consciência. Obrigado.
 
Danilo: Bem, gente, nós temos aqui muitas perguntas ainda e eu creio que o tempo já está bastante adiantado, mais de uma hora que estamos aqui e, naturalmente, não é muito adequado prolongarmos muito essa conferência, essa exposição do caro Edgar Morin. Tem perguntas sobre os intelectuais e a contemporaneidade, a questão do termo economia verde. São muitas as questões que chegaram relativas às perspectivas, à reflexão acadêmica, que já foi mencionada, a questão da ética, o incentivo ao comportamento criativo que um grupo jovem solicita uma certa luz sobre essa questão, o paradigma da sociedade... mas como nós estamos no final da palestra, da fala...
 
Morin: na próxima vez, podemos responder. 
 
Danilo: e como temos o debate recente da Rio+20 e o Edgar Morin participou, esteve presente e há uma questão aqui que coloca esse problema, então, eu pediria, para finalizar - infelizmente são muitas as perguntas que não vão poder ser tratadas individualmente, mas no genérico, muitas dessas questões já foram tratadas.  
Qual a sua análise dos resultados da Rio+20? Existe algum paradigma a ser seguido? O multilateralismo pode ser a regra do planeta unido? 
E com essa resposta, encerraremos a participação do nosso querido Morin nessa nossa palestra de hoje.  Por favor. 
 
Morin:  Considero que a Rio+20 foi um retrocesso e um pequeno passo para frente. O retrocesso foi porque voltamos para trás, isto é, ausência de decisões, ausência até mesmo do que a França propôs que foi criar uma organização internacional diferente capaz de tratar desses problemas. Então, como podem ver, houve um fracasso nesse sentido. Mas qual foi o passo para frente? Foi que... Aliás, é preciso dizer que esse fracasso é compreensível não somente porque havia mais de 150 países presentes, cada um com seus interesses particulares e diferentes, mas porque não há uma consciência do perigo planetário comum forte o suficiente para que esses países deixassem de lado esses diferentes interesses e levassem em conta o interesse comum. Portanto, é evidente que talvez teremos que esperar desastres,  catástrofes, dificuldades para que possamos progredir. Mas o importante foi que entendemos que o problema da biosfera ambiental, assim como é chamada, é que esse problema não pode ser isolado em uma esfera e separado de todos os outros problemas da sociedade. Não é apenas um problema de criação de energias limpas. Não é apenas um problema que nos pede para respeitar a biodiversidade. Não é apenas um problema que nos pede para tomar cuidado com as taxas de carbono na atmosfera. É um problema que pede para nós mudarmos o sentido da nossa   civilização, que é fundada na produção quantitativa e que se esquece da qualidade da vida. É mudar o sentido das nossas vidas, pensar que o principal da vida é poder aproveitar a poesia, como já lhes disse, e aproveitar a amizade...  Aliás, um político francês chamado Michel Rocard escreveu um livro no qual ele disse: "As cinco vezes que fui feliz na minha vida nunca foi por causa de dinheiro, sempre foi por causa do amor e da amizade." Acredito que é essa consciência que devemos ter. É claro que precisamos levar em conta as questões financeiras, não para multiplicar o dinheiro, as grandes fortunas dos grandes milionários, mas porque o mundo pobre precisa de dinheiro para satisfazer as suas necessidades. Não podemos negligenciar isso. Mas acredito que o problema da desigualdade, não apenas a desigualdade entre as ações, mas a desigualdade no interior das nações porque a globalização aumentou a desigualdade no mundo, esse problema deve ser tratado. O problema de uma nova economia deve ser tratado ao mesmo tempo, o problema do sentido da civilização deve ser tratado. 
 
Em outras palavras, a Rio+20 nos permitiu ter essa consciência de que é preciso unir esses diferentes problemas. Agora a questão do multilateralismo. O multilateralismo tornou-se uma realidade e ele se tornará uma realidade a cada dia mais. Isso quer dizer que vemos uma hegemonia absoluta dos Estados Unidos e que ainda é muito importante em várias áreas. A era de uma hegemonia do ocidente, europeia, a Europa não tem mais nenhum poder. Então é evidente que o surgimento de novas potências,  que chamamos de emergentes, é certo que se tudo isso mudar, teremos um mundo multilateral. Esse mundo multilateral não poderá ser possível se nesse mundo, ao mesmo tempo, não houver um sentido profundo de unidade, de necessidades vitais da Terra e dos humanos. Em outras palavras, se não houver progresso na consciência planetária, se não houver progresso na consciência de que a Terra-pátria é capaz de aceitar todos os multilateralismos, então entraremos em uma era de regressão e de barbárie. O multilateralismo em si não é de forma alguma uma regressão. Por quê? Porque ele suprime uma hegemonia por algo que é uma multiplicidade. É claro que temos pretensões de hegemonia, regional ou local, a China e assim por diante. Mas sabemos, daqui em diante, não há uma hegemonia dominante.
 
Sabemos que, daqui em diante, temos um mundo múltiplo. E pensemos também que entre esses países emergentes, o Brasil tem uma qualidade particular. Primeiramente porque é um país democrático, é um país que também tem uma capacidade social e, sobretudo, é um país aberto para o Atlântico e para o Pacífico, para o oeste e para o sul, para a China e para a África do Sul. O Brasil é hoje um país que pode assumir uma missão de compreensão e de união dos diferentes aspectos do planeta. Esse é o meu desejo e acredito que o Brasil pode seguir por esse caminho. 
 
Danilo: Muito bem. Meu caro Morin, meus amigos, tivemos esta noite, aqui, uma oportunidade ímpar de refletir, de pensar na nossa realidade, de dizer coisas pro mundo inteiro. Morin, sem dúvida nenhuma, tem uma mensagem fundamental para que o mundo se torne melhor, em todos os sentidos, pra todo o universo.  Gostaria, portanto, de agradecer sua enorme contribuição nesse debate e agradecer também a sua disponibilidade em se colocar à disposição de todos para o debate, para uma conversa como essa. Eu acho que isso revela seu grande interesse, sua vitalidade, sua juventude, que faz com que a gente possa se entusiasmar diante de uma pessoa como essa, diante da vida que ainda temos e que de certa maneira devemos valorizar cada vez mais e respeitar cada vez mais. 
 
Tradução: Amanda Gouveia
LEGENDAS ETC FILMES

tradutor: Amanda Gouveia