Pensando a modernidade
O seminário A Cultura das Metrópoles, em comemoração aos 50 anos do Sesc, reuniu antropólogos, sociólogos e pensadores em torno de questões relativas aos centros urbanos contemporâneos
No século XIX, Londres e Paris se estabeleciam como os primeiros conglomerados urbanos da Idade Moderna. Escritores da época, como Victor Hugo, Baudelaire e Charles Dickens exploravam em seus romances o fenômcno novo da multidão que explodia pelas ruas e impunha uma nova ordem no mundo. Maria Stella M. Bresciani, no livro Londres e Paris no século XIX: O espetáculo da pobreza, coloca que "milhares de pessoas deslocando-se para o desempenho do ato cotidiano da vida nas grandes cidades compõem um espetáculo que, na época, incitou ao fascínio e ao terror'' e completa o pensamento dizendo que a multidão confere à paisagem urbana uma imagem associada ao caos, ao turbilhão e "às ondas metafóricas inspiradas nas forças incontroláveis da natureza". Hoje, quase no século XXI, a situação dos centros urbanos se agravou consideravelmente. São Paulo, por exemplo, apresentava, em 1890, 65 mil habitantes. Em 1970, sua população era de 5,3 milhões e, em 1991, saltou para 10 milhões. O aumento demográfico da cidade foi consequência direta das transformações políticas, econômicas e sociais ocorridas após a Segunda Guerra Mundial e do êxodo das populações rurais, em busca de melhorias na qualidade de vida. A metrópole cresceu e se firmou como um centro em ebulição que, ao lado dos progressos econômicos, dos avanços tecnológico e dos meios de comunicação, apresenta problemas de aumento populacional, trânsito, ineficácia dos serviços públicos, poluição, criminalidade, miséria, violência e exclusão social.
Atento a essas questões e participando do crescimento da cidade e da vida cultural dos cidadãos que a habitam, o Sesc, em comemoração aos 50 anos da sua fundação, realizou em São Paulo, dos dias 22 a 25 de outubro, o seminário A Cultura das Metrópoles, com a presença de personalidades nacionais e internacionais, a fim de discutir e debater possíveis soluções para os problemas dos grandes centros urbanos e melhorar a qualidade de vida da população. Na abertura do seminário, o presidente do Conselho Regional do Sesc do Estado de São Paulo, Abram Szajman, explicou que o tema do evento não foi escolhido ao acaso, pois "aproximadamente 75% da população brasileira vive na cidade, agrupando-se nas nove regiões metropolitanas do país e sofre os problemas típicos da urbanização", e ainda, "que com a globalização cada vez mais acentuada, pensar a cultura é refletir sobre várias questões que envolvem a metrópole."
Em torno do urbano
O primeiro convidado a falar, no dia 22, foi o pensador francês Edgar Morin, que em seus estudos sobre o mundo contemporâneo mistura várias disciplinas, como a literatura, a psicanálise, a biologia e a física. A partir do tema Política da Cidade ou Política da Civilização?, Morin propôs ao público a reflexão segundo a qual "hoje a cidade vive seus habitantes. Ela não é apenas uma organização, mas um tipo de ser vivo que nutre as nossas vidas e se nutre de nós." Durante as quase duas horas de palestra, o pensador falou sobre o caráter antagônico de ordem e desordem contido na organização da metrópole, da diversidade populacional "que se une e se separa" e que a crise da cidade é a crise da civilização porque "é ela que comporta todos os nossos problemas". Segundo ele, o caminho para se encontrar as soluções para o caos urbano está na humanização da cidade, isto é, deixar de lado o "subdesenvolvimento afetivo", resgatar a solidariedade, desenvolver a comunicação informacional e subjetiva e ressuscitar a crença no futuro.
No segundo dia do evento, o arquiteto argentino Rodolfo Livingston deu início às atividades. Especialista em reformas de moradias e fundador em seu país do Primeiro Consultório de Arquitetura que presta consultoria a pequenas obras destinadas à habitação, Livingston desenvolveu o tema Cultura e Estética nas Metrópoles: a Cultura como Organizadora da Conduta Humana. Preocupado com a maneira que o homem urbano ocupa os espaços da cidade e com o papel da arquitetura na vida social da metrópole, o palestrante colocou que todos nós vivemos em um espaço, seja ele interno ou externo. "Estar dentro significa saber que existe um fora. São duas categorias da nossa vida." Ele enfatizou que a comunicação entre as coisas é fundamental pois "a casa, as pessoas que a habitam, o bairro, a cidade e o mundo são um complexo de ligações". Para ele, um dos maiores problemas dos arquitetos e urbanistas que cuidam das cidades é que eles estão desestruturando o comportamento humano e a pergunta que deixou no final da exposição - Onde fica o espaço do afeto? - esbarra na questão da solidariedade entre homens, tão defendida por Edgar Morin. Em seguida, o historiador e antropólogo brasileiro, Roberto da Malta, falou sobre a Cidade e as Comemorações. Com um trabalho voltado às expressões culturais e populares urbanas, da Malta, usando Bakhtin, que estabeleceu o termo carnavalização para designar a troca temporária de posição social, caracterizou a festa ou o Carnaval brasileiros como o tempo da renovação, da inversão de papéis, da destruição das barreiras e da celebração do divertimento. "O movimento das festas que caracteriza o espaço urbano tem como importância o peso da concentração e da magnitude populacional. Todos como peregrinos, sem distinção de classe. A cidade está lá inteira. É o momento em que a estética da população aparece. A massa não como problema, mas como beleza", expôs.
Da cidadania às tecnologias
No dia 24, Antonio Augusto Arantes, professor-titular do Departamento de Antropologia da Unicamp, ex-presidente da Associação Brasileira de Antropologia e ex-presidente do Condephaat, conduziu a palestra Cidadania e Espaço Urbano para a necessidade de se refletir sobre a paisagem de desigualdade e diferença da cidade. Logo de início leu um trecho do Art. nº 5 da Constituição Federal de 1988, que estabelece que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (...)" Este artigo orientou toda a sua explanação, que colocou a questão da cidadania como ponto básico para que os habitantes da metrópole considerem-se situados e pertencentes à sociedade e tenham direitos culturais e políticos de identidade. "O ser humano precisa trabalhar contra a devastação no nível mental e cultural. Aí reside a importância prática da cidade", conclui.
A Marginalização das Culturas Regionais foi a discussão que se seguiu à palestra de Antonio Arantes. O secretário de Educação do Estado do Pará, João de Jesus Paes Loureiro, que também é professor de Estética e Teoria de Comunicação na Universidade Federal do Pará e poeta, apresentou uma reflexão sobre as relações entre a transculturalidade e as culturas regionais. O paraense desenvolveu seu pensamento de forma sentimental pois, segundo ele, liga-se pela vivência às questões que envolvem os aspectos culturais da cidade. Em seguida, o inglês Mike Featherstone, diretor do Centro Teoria, Cultura e Sociedade da Nottingham Trent University e professor-pesquisador de Sociologia e Comunicação na mesma, abordou o tema O Problema da Cidadania nos Espaços Virtuais. Contrário à tendência que vê a globalização como um estágio de homogeneização cultural, Featherstone acredita que a unidade mundial pode acirrar ainda mais as características locais. O sociólogo inglês, dentro do contexto das novas tecnologias e da economia global, afirma que a cidade mundial perde seus limites geográficos, passando a ser espaço virtual e que, dentro dessa perspectiva, a questão da cidadania passa a ser fundamental.
Partilhando essa opinião, o antropólogo italiano Massimo Canevacci aprofundou o assunto. O autor de A Cidade Polifônica acha que os conceitos geográficos, sociais e sexuais já não fazem mais sentido no contexto atual. Com o tema Cultura, Comunicação e Consumo, Canevacci mostrou a importância dessas três palavras para a compreensão das megalópoles. No quarto dia do seminário, o antropólogo colocou o seguinte paradoxo: "Para entender o consumo contemporâneo é preciso visitar o shopping center com a mesma seriedade que se visita um museu." Dando continuidade à atividade, Helena Severo, secretária municipal de Cultura do Rio de Janeiro, contou a experiência de sua gestão e afirmou a importância do intercâmbio das vivências culturais entre duas metrópoles do porte de São Paulo e do Rio de Janeiro.
Na palestra de encerramento, o cineasta e deputado federal, Fernando Solanas, iria falar sobre O Imaginário das Metrópoles Latino-americanas, mas, segundo o diretor "não se pode falar em imaginário, se nós, latinoamericanos, não temos os canais veiculação de nossas imagens". Solanas vê o processo de globalização e a guinada neoliberal de alguns países da América Latina com preocupação, pois corremos o risco de perdermos nossas raízes culturais ao assimilarmos a estrangeira. Usou o exemplo da experiência de privatização da telefonia argentina e a imediata queda de qualidade nos serviços, e o aumento abissal das tarifas, que chegou a 400%. Outro exemplo bastante significativo foi o dos jovens que preferem consumir fastfoods americanos à excelente carne argentina.
Todas as palestras do seminário A Cultura das Metrópoles foram finalizadas com numerosas questões e interferências por parte do público. As discussões, calorosas, tornaram-se prova de que eventos como esse são necessários e fontes de férteis trocas.
fonte: Revista E, ano 06 nrº3, dezembro de 1996