Considerações sobre Edgar Morin e a defesa de um pensamento do Sul

Danilo Santos de Miranda

A modernidade tem sido um problema para diferentes filósofos e pensadores sociais. De Hegel a Max Weber, diferentes interpretações trataram da interrelação entre a razão ocidental e a modernidade, considerando sua extensão nos núcleos organizadores da empresa capitalista e do aparelho burocrático de Estado; elaborando e reelaborando seus vínculos na atualidade até o limite das teses contrárias, que puderam forjar novas concepções como a de pós-modernidade. As teorias da modernização, com abordagem econômica, política e sociocultural, buscaram identificar na ordenação dos países industrializados os fatores sociais e institucionais que teriam sido responsáveis pelo desenvolvimento para que, como teoria ou conhecimento instrumentalizado, pudessem, inclusive, ser aplicados em países ditos subdesenvolvidos ou do Terceiro Mundo. Com características referidas aos processos que se acumularam e internamente foram reforçados a partir do desenvolvimento das forças produtivas, da formação de capital e mobilização de recursos, do aumento da produtividade do trabalho, da formação de identidades nacionais, dos direitos de participação política e das formas de vida urbana e escolarização, as teorias da modernização conceberam, em sua maioria, as diferenças sociais como estágios de um percurso histórico, cuja etapa superior culminaria com o padrão ocidental da sociedade europeia, então moderna e desenvolvida.

Além dessas configurações estabelecidas e já diante de determinadas revisões sociológicas, a teoria da modernização também entende que, em dado momento histórico, a modernidade separa-se de suas origens europeias e das referências históricas do racionalismo ocidental para criar um padrão estilizado, sem tempo e lugar, a ser apropriado como parâmetro para os processos de desenvolvimento social em geral. Vista desse ângulo, a modernização social alcançou uma existência autônoma, com processos que podem ser relativizados, tendendo a ser adotada como uma lógica, sobretudo em tempos de globalização, com assertivas e proposições, ou, ainda, como ethos.

Na direção da compreensão da modernidade e dos processos da dita modernização, Edgar Morin, de acordo com sua trajetória intelectual, tem postulado a necessidade de um pensamento complexo, visto que a fragmentação do conhecimento, como desdobramento dessa dinâmica expansionista, que cresce por meio da segmentação técnica, tem minado o entendimento do mundo e das coisas, sujeitado saberes e fazeres e, ainda, impedido que a transdisciplinaridade se estabeleça como racionalidade. De outro modo, e diante da produção de saberes cada vez mais especializados e mais distantes dos grandes temas do mundo, da vida, do planeta e da humanidade, o autor  tem buscado unir a cultura das humanidades à  cultura científica, fazendo com que ambas  dialoguem, reavivando as conexões e virtudes cognitivas entre as artes, literatura, ciência e poesia. Mas o princípio de conjunção, defendido por Morin, apresenta-se de forma sistematizada também nos estudos do início da década de 1990 denominados O método, em que o autor propõe não um manifesto de desconstrução do método científico, como Paul Feyerabend e Imre Lakatos, mas novas formas de compreensão do humano em suas determinantes universais bio-psico-socioculturais; delineando uma metodologia libertária capaz de abrigar, entre outros aspectos ditos contraditórios, o senso comum menosprezado e a norma culta. Mas a religação de sonhos, mitos, saberes e fazeres tradicionais na metodologia do pensamento complexo é apreensível em um terreno de flexibilidade e sem os rigores que marcam o método científico, propriamente.

Nesse antimétodo, por assim dizer, pode-se perceber como um pensamento do Sul está esboçado e implica os pressupostos para a convergência de todos os pensamentos e para uma “maneira radicalmente complexa de pensar”. No volume IV de O método — As ideias (a organização das ideias — noologia), Morin defende, por exemplo, a linguagem natural (*) de diferentes sociedades, em contraposição aos postulados científicos que defendem a linguagem formalizada como instrumento mais competente para o desenvolvimento do pensamento. Nesse exemplo, o  autor refuta o formalismo, inclusive citando  Roman Jakobson e Blaise Grize em suas ponderações sobre a inferioridade da linguagem formal e seus impedimentos à capacidade de invenção, imaginação e criação humanas.

Na sintonia de uma resistência e optando por outras vias de transformação da fragmentação, da especialização e da “disciplinarização” do conhecimento, formas também presentes na educação fundamental e universitária, o autor tem reforçado a abordagem sobre pensamentos hegemônicos e sujeitados, ilustrados nessa oportunidade, como os pensamentos do Norte e do Sul, geograficamente relativos.

O pensamento do Sul é um pensamento em potencial, a ser elaborado a partir de premissas extraídas dos diferentes “suis” do planeta, sem submetê-las, no entanto, a uma concepção única, como pretende o pensamento do Norte diante da necessidade de ordenar o que lhe parece fora da ordem e de onde parecem se destacar apenas o atraso e o subdesenvolvimento.

Em sua progressão globalizante, o pensamento do Norte avança na direção de “devorar”, conforme Morin, os “suis”. Diante disso, o potencial pensamento do Sul deve ser fortalecido por meio da proteção das culturas locais, suas “artes de viver, saber e fazer”, para que possa, sem rejeitar certos ditames e virtudes do pensamento do Norte, criticá-los, na medida da necessidade de sua autoelaboração enquanto pensamento complexo e de ligação.

Por meio da proposta de elaboração de um pensamento do Sul, o autor recusa a abreviação de um complexo a um de seus elementos, como seria a diversidade rica em tradições culturais e aspectos da realidade de diferentes “suis” reduzida a uma de suas imperfeições sociais, como a violência, a corrupção ou os conflitos gerados no cotidiano.

Nesse sentido, retrata as possíveis contribuições do Mediterrâneo para a elaboração de princípios capacitados à conjunção, desde a Antiguidade. Para tanto,  refere-se à diversidade politeísta dos faraós, no Egito, destacando a unidade dada pela supremacia divina do deus-sol, passando pelo mono teísmo do Cristianismo, do Islamismo e do Judaísmo, como elemento que desponta na compreensão da unidade e universalidade humanas, retomadas no Renascimento, que, a exemplo da democracia ateniense, oferece o debate como meio para a sabedoria, reanimando a vontade de reflexão sobre o mundo, essa grande herança que nos permite, ainda hoje, problematizar a vida, o cosmos e a natureza.

Do Humanismo, o autor critica a arrogante crença da supremacia humana diante da natureza, enaltecendo sua outra face, que valoriza e dignifica o ser humano, hoje na condição de integrar a “comunidade de destino” na era planetária. Mas, diante do humanismo que dignifica, é necessário problematizar a própria razão, entendendo-a não como um bloco hegemônico de ideias e pensamentos fechados, mas como racionalidade aberta, que reconhece seus limites no desvendamento dos mistérios do universo.

Das críticas feitas à racionalidade especializada e dividida em muitos setores, destaca-se o imperativo da regeneração crítica, particularmente da autocrítica. Dito isso, o autor propõe a mistura das heranças culturais mediterrâneas com as sul-americanas e africanas, para delas extrair sua “verdade profunda”, a que nos reunirá à “nova consciência ecológica” e à solidariedade, capazes de frear a degradação mundial estimulada pelo Norte, integrando os diversos conhecimentos sobre a vida e a natureza, sem sobrepujança e destruição.

A civilização caminha, hoje, em meio à crise. Crise da razão, da ocidentalização e da mundialização. O projeto do progresso ilimitado diante da abundância de recursos e matérias-primas há décadas demonstra sua inviabilidade. São rechaçados, sobretudo pelo Norte, os tratados e acordos globais para minimizar o impacto sobre a natureza e as condições climáticas nessa atual fase do modelo econômico de enriquecimento dos países. De outro lado, quanto mais se promove a unificação técnico-econômica do planeta, tanto mais se dão reações de desagregação socioculturais e étnicas. Uniformidade prostrando a diversidade e isolamento defensivo são resultados incompatíveis com os desígnios que nos levariam à unidade na diversidade. unidade que não pode ser apenas econômica, pois, a unidade econômica não realizará a  complexa unidade humana na diversidade, assim como o isolamento defensivo das etnias e culturas diversas não produzirão a solidariedade e a responsabilidade, vitais ao século XXI.

Como o pensamento do Norte não aceita e não entende a realidade e a sinergia do Sul, simplesmente os desconsidera. A lógica do Norte é a prosa que faz sobreviver com eficácia, ordem e coerência. “A prosa é o que fazemos por obrigação, por imposição, para ganhar nossa vida”, diz Morin (2010). Para viver é preciso mais. É preciso poiesis. É preciso amor, poesia e sabedoria, que são complementares e faces do mesmo humanismo. A sabedoria, nesse sentido, precisa ser integrada sem ser imperativa, permitindo a “arte de viver” da hospitalidade, da comunicação, da alegria, dos afetos em sua manifestação lúdica e estética. Pois viver significa poder desfrutar do extraordinário entendendo, a importância da realização em si e por si.

Segundo Morin, ao recusarmos o pensamento do Norte, recusamos suas vicissitudes, seu niilismo, suas sutilezas de controle e de aprisionamento. Nessa medida, dá-se poder (empowerment) ao pensamento do Sul para que possa resistir, fazendo-se lembrar do que é feita a vida, e como o belo e o sonho estão sempre a povoá-la. Como um pensamento que potencialmente liga o que está cindido e disperso, o pensamento do Sul está mais propenso a problematizar as questões e o repto fundamental de nosso tempo, para os quais a ciência, a filosofia e a política estão em silêncio.

Ao reconhecer e defender os valores pouco utilitários da vida, debatendo e questionando os excessos que são cometidos contra a vida comum no planeta, parece caber ao pensamento do Sul a missão de legitimar, de fato, aspectos vitais, valores e ideais que desafiem e desconstruam a predominância do consumo como sentido imperativo da vida.

A condição humana, nesse patamar civilizatório, depende de um pensamento reformador capaz de ajudá-la a escapar das armadilhas criadas pelos processos descontrolados originados pela busca de eficácia voltada a interesses parciais, pouco ou nada coletivos; capaz de propor alternativas para um projeto histórico de educação para a cidadania planetária, com poder de redimensionar o que é prioritário hoje e no futuro.

Elegendo a educação como princípio de unidade para as atuais e futuras gerações, redefine-se parte de seus propósitos não utilitários e as possibilidades de transformação para a vida coletiva na complexidade. Mais educação, cujos saberes possam ser ministrados de diferentes maneiras e por diversas instituições. Desse modo, e assumindo a responsabilidade por sociedades educativas, elaboraremos novos e possíveis caminhos para garantir o sentido da diversidade na unidade, como propõe Morin.

Assim, e nesse foro a ser promovido, esperamos que as propostas para um pensamento do Sul permitam boas oportunidades de fortalecimento de um dos  últimos territórios potencialmente subsistentes à uniformidade orientada pelos padrões técnico-eficientes do pensamento hegemônico. E que possa conduzir nossa criatividade como um arquétipo à espera de sua realização  e configuração.

REFERÊNCIAS

MORIN, E. Amor, poesia e sabedoria. São Paulo: Bertrand Brasil, 1998. 
MORIN, E. Para um pensamento do sul. 2010. Mimeografado. 
MORIN, E. A religação dos saberes. São Paulo: Bertrand Brasil, 2001.

(*) Linguagens naturais são as linguagens comuns aos membros de uma cultura e as linguagens correntes que servem aos diversos usos da vida cotidiana (MORIN, 2000, p. 214).


fonte: ANAIS ENCONTRO INTERNACIONAL PARA UM PENSAMENTO DO SUL, SESC, Rio de Janeiro, agosto 2011