Um filósofo e seus diários
Edgar Morin, pseudônimo de Edgar Nahoum, nasceu em Paris, em 8 de julho de 1921. Pesquisador emérito do CNRS (Centre National de la Recherche Scientifique), ele é formado em Direito, História e Geografia e realizou estudos em Filosofia, Sociologia e Epistemologia. Considerado um dos principais pensadores sobre a complexidade, Morin é um dos intelectuais mais importantes dos séculos XX e XXI, tendo escrito mais trinta livros, entre os quais figuram: O método (seis volumes), Introdução ao pensamento complexo, Ciência com consciência, Os sete saberes necessários para a educação do futuro e Meu caminho.
Quando era adolescente, Morin mantinha um diário – bastante irregular, segundo ele mesmo – sobre leituras, reflexões, angústias... E decidiu continuar a escrevê-lo até os 21 anos, quando ingressou na vida ilegal, participando da Resistência Francesa à ocupação nazista e, simultaneamente, do movimento comunista. A última anotação de seu diário, então, dizia: “Necessidade de ação ou convicção profunda? É o que veremos mais tarde”. Durante os anos decisivos de sua vida intelectual, Morin não fez nenhum diário. Nem sobre os importantes anos do pós-guerra, as desilusões pessoais, as decepções políticas, as fortes amizades, o engajamento contra a guerra da Argélia, o início do seu caminho rumo ao pensamento complexo... Mas retomaria o antigo hábito, a partir da década de 1960, praticando uma espécie de meditação por meio das notas que registrava.
Os diários de um pensador humanista como Edgar Morin são atemporais e neles estão registradas memórias e experiências vividas: das ações simples do cotidiano às reflexões mais consequentes, complexas, que atingem o ser humano e o mundo. As Edições Sesc SP publicam agora, pela primeira vez no Brasil, um conjunto de três diários do intelectual francês: Diário da Califórnia, Um ano sísifo e Chorar, amar, rir, compreender, nos quais o leitor poderá entrar em contato com o repertório cultural sofisticado e a inteligência privilegiada de Edgar Morin.
Chorar, amar, rir, compreender é não somente um relato sobre as constantes viagens internacionais de Edgar Morin e as correspondências que ele trocou com outros filósofos e intelectuais, como também uma aguda reflexão sobre questões do mundo contemporâneo, como o nacionalismo e a xenofobia, as desigualdade sociais, as más condições de trabalho... Traduzido para o português por Nurimar Falci, Chorar, amar, rir, compreender registra o que aconteceu a Morin no ano de 1995, articulando pequenos acontecimentos pessoais – nos quais o intelectual concentra toda a sua atenção, divertindo-se ou aborrecendo-se com eles – à especulação mais intensa sobre a terrível situação na Bósnia ou em Ruanda.
Do domingo, 1º de janeiro de 1995 (“Lá pelas duas da manhã, evito Saint-Germain-des-Près e Saint-Michel. Muitos jovens caminham pelas ruas. Aqui e lá, violentas lufadas de rock. Ah, como eu gostaria de dançar rock, isso me faz falta nesta noite do ano-novo.”) à terça-feira, dia 30 de janeiro de 1996 (“Finalmente, após tantos sobressaltos póstumos, Mitterrand torna a ser, após sua morte, aquilo que ele era quando vivo, admirado por uns, abominado por outros. Mas daqui em diante tudo isso é magnificado. Em vida, alguns o viam como sombra, outros como luz. Hoje, ele é divinizado por uns e demonizado por outros. E, uma vez mais, minha “missão” é respeitar a complexidade no olhar sobre o homem, sobre o político e sobre o mito.”), podemos acompanhar um vívido processo de desdobramento observador/observado experimentado por Morin. O filósofo espanhol Emilio Roger-Ciurana – professor da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Valladolid – afirma na orelha do livro:
“Na tradição de Michel de Montaigne, a obra que o leitor tem diante de si não é um olhar frio sobre o mundo, não é um simples anotar em diário eventos que ocorrem no mundo e acontecimentos que ocorrem ao autor no viver cotidiano; desde assuntos de saúde e domésticos a viagens, conferências, debates, congressos etc. O livro trata de algo mais importante: Edgar Morin olha o mundo, olha a vida e a vive. Trata-se de um olhar e um viver que são reflexos de sua enorme complexidade, universalidade e da concretude da condição humana. Morin afirma-se na vida e afirma a vida: frente aos acontecimentos do mundo faz sentido chorar, amar, rir, compreender. Trata-se de viver a vida em sua multidimensionalidade e complexidade, em sua ordem e sua desordem. Trata-se, no cotidiano, de resistir à barbárie humana de uma época bárbara, cruel, devido a uma incapacidade generalizada de ver a vida e o mundo além da linearidade, previsibilidade e fragmentação. Resistir à insensibilidade e à crueldade que se estendem por toda a parte.”
O leitor disposto a buscar visões de mundo rigorosas e precisas, temperadas com aquele tipo de bom humor que faz um bem enorme à filosofia, encontrará nos diários de Morin acuradas reflexões sobre os problemas que envolvem o homem, a sociedade e a vida. Falando de si mesmo quando retrata o outro e tratando de complexos temas socioculturais quando discorre sobre sua própria vida, Edgar Morin confere uma nova dimensão ao pensamento, inaugurando uma “sabedoria dos afetos”, que ele formula com a humildade e a sensibilidade típica dos grandes mestres:
“Posso afirmar, entretanto, que é nos meus diários que dou o melhor de mim mesmo: são observações, reflexões, julgamentos nos quais me encanto ou me revolto, nos quais minhas qualidades literárias se expressam ou desabrocham. No fundo, é normal que o melhor permaneça desconhecido, uma vez que não obedece a norma alguma. Ainda que eu seja percebido de maneira restrita como sociólogo e, por vezes, de maneira mais aberta, mas ainda classificadora e limitada, como “sociólogo filósofo”, sou antes de mais nada um ser humano que ama o que existe de maravilhoso na vida e tem horror ao que ela tem de cruel, um ser humano bastante comum enraizado nos séculos XX e XXI, que neles viveu e sofreu todos os grandes e pequenos problemas. É por tudo isso que sou escritor, ou seja, adoro expressar-me por meio das palavras, brincar com elas, encontrar metáforas, desfrutar do prazer de descrever, ou melhor, do prazer de escrever”.
fonte: Edições SESC online