Contribuição dos estudos “descoloniais” para os desafios propostos por Edgar Morin para a organização do pensamento do Sul
Paulo Henrique Martins
As reflexões de Edgar Morin relativas à organização de um pensamento do Sul enfatizam a necessidade de se recusar a redução do complexo a um dos seus elementos e a disjunção que separa ideias aparentemente antagônicas, mas que são, de fato, complementares. Tais comentários colocam várias possibilidades de exploração teórica para que avancemos na construção do diálogo entre Sul e Norte, que, no fundo, é o diálogo entre várias modernidades e campos diferenciados de pensamento e ação.
Considerando que o texto de Morin abre um vasto leque de reflexões, decidimos explorar um foco particular sugerido pelo autor, a saber, que o pensamento do Sul deveria conciliar “o sentido da diversidade concreta da natureza expressa pelos deuses dos politeísmos antigos, principalmente o grego e o latino, assim como o sentido da unidade do universo que o Deus único exprime”. No nosso entender, os estudos pós-coloniais, surgidos nas sociedades que se libertaram parcialmente da colonização planetária e, sobretudo, os estudos “descoloniais”, que radicalizam a crítica ao progresso econômico com vistas ao resgate do diverso e do ausente, podem ser de muito valor para se aprofundar este debate de integração da diversidade na unidade que impede a fragmentação cultural.
Assim, me parece interessante começar nossa reflexão com uma pergunta: que grau de interação existe entre os chamados estudos pós-coloniais, que questionam a modernidade eurocêntrica e que buscam organizar um pensamento do Sul, e a crítica antiutilitarista complexa formulada por Edgar Morin, que permite avançar na crítica da modernidade desde o Norte?
Uma primeira resposta a essa pergunta é a constatação de que o reconhecimento de lugares diversos de produção da crítica teórica — crítica desde o Norte e desde o Sul — já constitui, em si mesmo, o reflexo dos deslocamentos das fronteiras nacionais modernas. Se essas, anteriormente, eram fundadas na ideia do universalismo do Estado nacional, agora, tais fronteiras se abrem para a diversidade e para o surgimento de territórios transnacionais, que contribuem para tornar os territórios nacionais mais complexos do ponto de vista linguístico, cultural, social, econômico, político e jurídico. Nessa perspectiva, a busca de novos nexos entre Norte e Sul não significa que as antigas fronteiras nacionais estejam borradas, mas que elas agora são atravessadas, no pensamento e na prática, por zonas de contato intermediárias que favorecem o surgimento de entendimentos plurais da realidade, desenhando uma configuração de poder plural e diversificada.
Considerando que o texto de Morin abre um vasto leque de reflexões, decidimos explorar um foco particular sugerido pelo autor, a saber, que o pensamento do Sul deveria conciliar “o sentido da diversidade concreta da natureza expressa pelos deuses dos politeísmos antigos, principalmente o grego e o latino, assim como o sentido da unidade do universo que o Deus único exprime”. No nosso entender, os estudos pós-coloniais, surgidos nas sociedades que se libertaram parcialmente da colonização planetária e, sobretudo, os estudos “descoloniais”, que radicalizam a crítica ao progresso econômico com vistas ao resgate do diverso e do ausente, podem ser de muito valor para se aprofundar este debate de integração da diversidade na unidade que impede a fragmentação cultural.
Assim, me parece interessante começar nossa reflexão com uma pergunta: que grau de interação existe entre os chamados estudos pós-coloniais, que questionam a modernidade eurocêntrica e que buscam organizar um pensamento do Sul, e a crítica antiutilitarista complexa formulada por Edgar Morin, que permite avançar na crítica da modernidade desde o Norte?
Uma primeira resposta a essa pergunta é a constatação de que o reconhecimento de lugares diversos de produção da crítica teórica — crítica desde o Norte e desde o Sul — já constitui, em si mesmo, o reflexo dos deslocamentos das fronteiras nacionais modernas. Se essas, anteriormente, eram fundadas na ideia do universalismo do Estado nacional, agora, tais fronteiras se abrem para a diversidade e para o surgimento de territórios transnacionais, que contribuem para tornar os territórios nacionais mais complexos do ponto de vista linguístico, cultural, social, econômico, político e jurídico. Nessa perspectiva, a busca de novos nexos entre Norte e Sul não significa que as antigas fronteiras nacionais estejam borradas, mas que elas agora são atravessadas, no pensamento e na prática, por zonas de contato intermediárias que favorecem o surgimento de entendimentos plurais da realidade, desenhando uma configuração de poder plural e diversificada.
Assim, não é mais problema o reconhecimento das diversidades de experiências intelectuais em cada lado das fronteiras, pois tais diversidades estão condicionadas por experiências cognitivas e práticas que revelam diferentes experiências culturais, históricas e políticas. Assim, se no Sul o pensamento “descolonial” interroga as teorias pós-coloniais tradicionais, prisioneiras da ideologia do desenvolvimento, como a teoria estruturalista cepalina e a teoria da dependência, no Norte há outros marcos interpretativos a interrogar como, por exemplo, as críticas às teses reducionistas e utilitaristas que inspiraram o desenvolvimento do capitalismo e das ideologias mercantilistas como o neoliberalismo.
Nossa reflexão neste texto se baseia, então, em duas teses complementares: uma epistemológica e outra epistêmica. A epistemológica propõe fazer uma conexão estreita entre os estudos pós-coloniais e “descoloniais” — que objetivam revalorizar as tradições, lutas e possibilidades sócio-históricas das sociedades do Sul —, e os estudos antiutilitaristas e da complexidade do Norte, que criticam os reducionismos teóricos, os moralismos travestidos de universalismos éticos, assim como as ações depredadoras voltadas para a mercantilização do mundo. Assim, não se pode falar de crítica “descolonial” na América Latina sem referência a uma série de esforços de renovação teórica que apontam para a diversidade de saberes propostos por Morin, como aqueles dos postcolonials studies, dos subalterns studies, dos gender studies, ou sem revisar Marx. Ou seja, o avanço da teoria crítica num lado, o do Sul, se faz em paralelo às mudanças da teoria no outro lado, no Norte.
Segundo nossa hipótese, os giros epistemológicos em curso têm origens diversas definidas pela colonização, mas articuladas por uma globalização que é produzida nos espaços da política e da tradução cultural e linguística que se formatam desde as origens da modernidade europeia. No Sul, o giro é conduzido desde a práxis anticolonial e desde a crítica pós-colonial, que nasceu da reação contra a subalternidade hierárquica colonial; no Norte, o giro é produzido desde o avanço da crítica antiutilitarista e antirreducionista, sobretudo sociológica, que passa a interrogar a subalternidade não somente a partir da exploração econômica, mas também a partir dos fatores culturais e morais, como o provam as teorias da complexidade, do dom e do reconhecimento, nos últimos anos.
A tese epistêmica, por sua vez, sugere que o avanço simultâneo da crítica teórica nas três últimas décadas, no Sul e no Norte, é produzido por deslocamentos progressivos e cada vez mais acelerados do imaginário da modernidade, passando-se gradualmente de um olhar eurocêntrico para outro, “mundialocêntrico”. A tese epistêmica propõe que a modernidade é um discurso que se gera, desde suas origens, por rupturas e deslocamentos entre as representações do passado e do futuro, desde o Leste e o Oeste, e entre imaginários diversos da colonização, que constituem importantes zonas linguísticas de contato no momento presente. Cada imaginário aponta para uma equação híbrida, como são os casos de latinização, indianização, ocidentalização, orientalização, modernização, entre outros. Eles apontam sempre para deslocamentos epistêmicos que permitem se entender Norte e Sul como metáforas de uma mesma coisa, que envolve as duas regiões de construção da colonialidade na modernidade. Isso significa que há uma articulação permanente entre os produtores do conhecimento das duas regiões, articulação que se expande progressivamente na conjuntura global com a ampliação de interioridades e exterioridades, permitindo novas visibilidades teóricas nos espaços de produção da liberdade entre os ex-colonizados.
A produção teórica pós-colonial e “descolonial” na Europa (Fanon, Memmi etc.), na América Latina (Quijano, Escobar, Dussel, Lander etc.) na Ásia (Spivak, Chaterjee, Chakrabarty etc.) contribuem para provar que as duas regiões do conhecimento e do poder das modernidades planetárias conhecem ontologias diversas, mas articuladas por traduções e tradutores, por meio das várias fronteiras históricas, políticas, simbólicas e epistemológicas, inter e transculturais. Nesse sentido, é necessário esclarecer que Norte e Sul não são somente pontos geográficos, administrativos, jurídicos e políticos, mas também, lugares de produção do conhecimento e de imaginários sociais e culturais diversos que se movem em paralelo. Suas cartografias de poder e de saber são redimensionadas desde as tensões e conflitos que nascem nas fronteiras compartilhadas do imaginário eurocêntrico com os imaginários próprios da Ásia, da África e da América Latina.
A valorização dos espaços de conhecimento transnacionais que envolvem os dois campos imaginários, ou melhor, os dois lados das fronteiras do imaginário da mundialização, aqueles situados desde dentro e desde fora, desloca a relação tradicional espaço-tempo que inspirou a cartografia da colonização e dos territórios dos Estados nacionais. Essa antiga cartografia da colonização foi produzida por um saber colonizador organizado a partir das forças da burguesia e do Cristianismo e que valorizou a ideologia do progresso, da mercantilização e da expropriação. Com a crítica “descolonial” produzida desde as exterioridades esse marco tradicional é interrogado, o que provoca o nascimento de outro marco espacial-temporal que se impõe sem eliminar o antigo. Consequentemente, são criados novos territórios transnacionais de organização das experiências da vida cotidiana e novas modalidades de ação coletiva e da política.
A superação dessas fronteiras nacionais modernas está contribuindo para mudar as noções de espaço e tempo, permitindo integrar novos horizontes cognitivos e emocionais na produção das experiências individuais e coletivas, de gênero, de etnias, de sexualidade, entre outras. Assim, é interessante observar que, a partir do olhar europeu, ser homem e branco implica enorme diferença na constituição das hierarquias de respeitabilidade em nível mundial. Mas, hoje, ser negro, mulher ou aimara deixa de ser símbolo de arcaísmo ou inferioridade cultural para significar o valor das distinções, da revalorização do diferente, o que é fundamental para a expansão de um novo humanismo que, como sugere Morin, se afirme pela consciência do pertencimento a uma mesma comunidade de destino. Ou seja, as manifestações de exterioridades mudam as representações do mundo desde fora e desde dentro.
Por consequência, a sombra do “bárbaro” passa a questionar diretamente a dominação colonial, simultaneamente desde o Sul e desde o Norte. Pois se, por um lado, temos a emergência dos movimentos indígenas, por exemplo, como prova da afirmação dos novos territórios de produção de movimentos sociais e culturais inéditos no Sul, temos também que reconhecer que no Norte há em curso mudanças importantes sobre a vida política, social e cultural, como demonstram as reações dos imigrantes e das grandes mobilizações coletivas urbanas nas grandes cidades.
Para concluir, gostaríamos de dizer que se o pensamento do Sul é “solicitado a reproblematizar a sabedoria” como propõe Morin, então é importante que essa reproblematização não se faça de costas para o Norte, mas em diálogo compreensivo e complexo que respeite as diversidades e promova as dignidades.
Paulo Henrique Martins Professor-titular de Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), membro da Associação Mauss (Moviment Anti-Utilitariste dans les Sciences Sociales), com sede na França. Vice-presidente da Associação Latino-Americana de Sociologia (Alas) e presidente do Comitê Brasileiro da Alas Recife 2011.
fonte: ANAIS ENCONTRO INTERNACIONAL PARA UM PENSAMENTO DO SUL, SESC, Rio de Janeiro, agosto 2011