Entre perdas e danos

Edgar Nahoun nasceu no dia 8 de julho de 1921, em Paris, filho único de um casal de judeus sefarditas – descendentes dos judeus expulsos da península ibérica -, Vidal Nahum e Luna Beressi. Entre os anos de 1942 e 1944, já envolvido com o comunismo, assume o sobrenome Morin e passa a viver, então, uma dupla clandestinidade: como judeu e como comunista. Aos 40 anos, fez sua primeira viagem ao Brasil - país com o qual mantém constante intercâmbio. O roteiro incluiu outros países da América l_atina, como o Chile, onde frequentou cursos na Faculdade Latino Americana de Ciências Sociais, em seguida a Bolívia, o Peru e o México. Autor de uma vasta bibliografia - entre os traduzidos para o português, estão As Duas Globalizações (Editora Sulina, 2007) e Cultura e Barbárie Européias (Instituto Piaget, 2007) -, o convidado da seção Depoimentos deste mês esteve em palestra no Sesc Pinheiros, no dia 10 de dezembro de 2007, na qual focou seu raciocínio no excesso de informações do homem contemporâneo. "Esse grande número de dados cai como chuva sobre nós, e, se não houver uma forma de ligar os conhecimentos, acabamos não entendendo nada", afirmou no início de sua fala. A explanação enveredou para "regras" de como é possível ser levado por essa enxurrada com o mínimo de proteção contra a iminente "perda de sabedoria e conhecimento" que ela provoca. "O conhecimento e a consciência sempre nos chegam com um grande atraso", disse o pensador. "E sempre existe o risco de chegarem tarde demais. Então, para resistir a todos os efeitos negativos dessa situação, quais poderiam ser as regras?" Entre elas, segundo Morin, estariam a consciência acerca da ambiguidade e ambivalência dos fatos, a noção da imprevisibilidade dos acontecimentos e a ciência dos princípios de um fenômeno que ele chama de ecologia da ação. A seguir, trechos de sua fala, em que explica como funcionam esses conceitos.

Nós estamos hoje em um período no qual há uma enorme quantidade de informações e um grande progresso do saber em todos os âmbitos. Porém, esse grande número de dados cai corno chuva sobre nós, e, se não houver uma forma de ligar os conhecimentos, acabamos não entendendo nada. Estamos no escuro. A informação sozinha não é nada. É preciso que ela esteja ligada [a outras informações] para que haja algum sentido. Se adquirirmos saberes separadamente, o que ocorrerá será a perda de sabedo­ria e de conhecimento. Eis o problema. Podemos dizer que estamos em um pe­ríodo no qual a multiplicidade dos saberes não nos ajuda.

O conhecimento e a consciência sempre nos chegam com um grande atraso. E sempre existe o risco ele chegarem tarde demais. Então, para resistir a todos os efeitos negativos dessa situação, quais poderiam ser as regras?

AMBIGUIDADE

A primeira (regra), eu diria, é da sensibilidade para a ambiguidade. E o que é ambiguidade? É quando, em relação seja a uma pessoa seja a um acontecimento, existem aspectos que podem nos parecer muito positivos de um lado e muito negativos de outro. Somos incapazes de dizer se os positivos são mais importantes que os negativos. Talvez, depois de certo tempo, nós consigamos compreender e dizer: "Bom, finalmente, esse detalhe foi mais positivo que negativo", ou o contrário. No entanto, é importante saber que de início as coisas se apresentam de forma ambígua. 

AMBIVALÊNCIAS 

A segunda regra diz respeito à suscetibilidade às ambivalências. As ambivalências são processos que sempre têm dupla face. Tomemos, por exemplo, o desenvolvimento. O que chamamos de desenvolvimento é também, para quem preferir, a globalização - os dois estão ligados. Ou seja, o desenvolvimento nos faz ganhar muitas coisas, mas também nos faz perder. Nós perdemos a antiga solidariedade, perdemos a grande família, aqueles laços entre os membros da grande família. Perdemos certo ritmo de vida, perdemos certa qualidade nos produtos, nos alimentos. Mas, por outro lado, ganhamos novos produtos, facilidades, melhorias na área dos transportes. Mas, o que é mais importante, aquilo que ganhamos ou o que perdemos? De qualquer forma, é preciso constatar as duas coisas e depois refletir. É certo que o desenvolvimento cria zonas de prosperidade, isso é claro, mas ele cria também zonas de miséria, como a encontrada em torno das grandes cidades - como São Paulo ou em outras cidades do mundo. Subúrbios, favelas, bairros periféricos ou a miséria em alguns países da África - onde as pessoas viviam na pobreza, porém com dignidade, com o mínimo de recursos na sua policultura, mas foram expulsas pela agricultura industrial, e tiveram de ir para grandes cidades onde têm de viver na miséria, que é diferente da pobreza. Na miséria se é completamente dependente e humilhado. Esses emigrantes que saem da África arriscam suas vidas para tentar chegar à Europa e encontrar o mínimo de trabalho. O desenvolvimento e a globalização são fenômenos ambivalentes. Há economistas que dizem que se trata de algo maravilhoso, que traz o melhor para os seres humanos. Mas outros dizem que não, que traz o pior, que vai nos conduzir a perdas irreparáveis, a males terríveis.

OS ACONTRCIMENTOS

Há uma terceira sensibilidade, que se deve ter em relação aos acontecimentos. E chamo aqui de acontecimento aquilo que nos surpreende, algo inesperado, como um terremoto, por exemplo. Quem diria que haveria um terremoto em Minas Gerais? Pois houve. Talvez seja melhor, então, pensar em outras possibilidades com relação ao solo de Minas Gerais. Coisas em que não se pensava antes. As surpresas que nos provocam os grandes acontecimentos significam que nós nunca temos conhecimento suficiente. Esses acontecimentos nos ensinam a revisar nossa visão do mundo. Outro exemplo: os ataques de 11 de setembro, que destruíram as duas torres do World Trade Center em Nova York, nos Estados Unidos. Esse ataque era algo totalmente imprevisto e mudou as coisas. Ele nos mostrou que havia uma organização chamada AI­Qaeda. E uma organização que chegou a ser favorecida pelos próprios norte-americanos durante a guerra no Afeganistão - uma vez que os EUA preferiram apoiar um grupo de fanáticos religiosos a apoiar a sociedade civil na resistência contra a invasão da União Soviética. Essa organização favorecida saiu do Afeganistão e se transformou um movimento místico religioso anti-Ocidente e pronto para usar todos os meios. Isso levou a mudanças tanto na política americana quanto na de vários países ocidentais envolvidos.

ECOLOGIA DA AÇÃO 

Outra regra é a da sensibilidade ao que chamo de ecologia da ação. O que significa essa expressão? Significa que, quando uma ação começa, ela entra no mundo e sofre influências do meio - seja social, seja político ou natural. Finalmente, essa ação escapa do controle de seu autor, e é possível que tome uma direção que não era a desejada, e pode surtir um efeito contrário ao que originalmente se intentava. Foi o que ocorreu quando se decidiu fazer uma intervenção militar no Iraque a fim de reduzir o terrorismo. O resultado foi o crescimento do terrorismo justamente como conseqüência dessa ação. E esse não é um caso isolado. Muitas vezes, na política se tomam decisões que no início parecem ir em uma direção, mas depois se voltam na direção contrária. Adolf Hitler estava certo de que conquistaria a União Soviética. Ele conseguiu, é certo, mas até o momento em que encontrou uma resistência que acabou provocando sua queda. Sempre temos casos parecidos na história. A própria Revolução Soviética. O levante tinha o objetivo de liquidar o domínio do capitalismo e da burguesia. No entanto, não somente criou uma sociedade muito desigual, como também fez com que a classe operária, em vez de ser liberada e obter o mínimo de direitos, visse, em 1989/90, o capitalismo voltar ainda mais selvagem e mais forte do que antes. Trata-se de algo muito importante no que pensar. Porque, quando adotamos uma causa, um partido político ou uma idéia, devemos ver se em algum determinado momento, pelo princípio da ecologia da ação, o sentido daquilo que nós fizemos vai continuar no caminho desejado ou se vai fugir do controle e provocar um efeito contrário ao que queríamos.

fonte: Revista E, ano 14 nrº9, março de 2008